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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

MAIS UM ROMANCE DE RYOKI INOUE

Dia 10....
Dia de mais um romance de Ryoki Inoue, desta feita
Herança Maldita!
Mais um presente, deste notável romancista!

HERANÇA MALDITA

À memória
do Mestre
Paschoal Zampinni


PRÓLOGO





UM




O som dos atabaques e os cânticos lamuriosos que os filhos e filhas-de-santo entoavam, pareciam transportar Laura para uma outra dimensão.
Sentindo-se levemente inebriada e entorpecida — talvez também pelo forte aroma de incenso que reinava no ambiente — ela tentou fixar a atenção em Raimundo de Ogum, o chefe do terreiro.
Sim...
Não tinha sido impressão.
Raimundo, apesar de estar em transe, mantinha o olhar dirigido para ela e pareceu-lhe entender que ele a chamava.
Laura não estava gostando disso.
Não estava gostando de estar ali, de estar presente a uma sessão de Candomblé, algo que de maneira nenhuma fazia parte de seu caráter ou de sua religiosidade.
Não tinha sido por sua vontade que fora até a Tenda de Raimundo de Ogum, um dos mais conceituados pais-de-santo de Vitória. Muito pelo contrário, ela estava ali por acaso, unicamente por não saber negar um favor a quem quer que fosse.
E Dona Júlia, proprietária do apartamento em que Laura residia, tinha pedido que a levasse até lá, em seu carro...
— Deixe-me na porta, Laura — dissera ela — Não precisa me esperar. Você sabe que não estou podendo andar a pé depois que operei as varizes. Para voltar, eu conseguirei uma carona ou pegarei um táxi
Mas Laura não gostava de fazer as coisas pela metade.
— Não se incomode — retrucara — Eu a esperarei. Não estarei perdendo nada, pois tenho muita coisa para fazer, muitas anotações para passar a limpo por em ordem. Saberei aproveitar o tempo, não ficarei à toa.
Porém, a jornalista estava redondamente enganada.
Uma vez lá no terreiro, tudo acontecera de maneira muito diferente do que ela estivera planejando.
Não fosse ela mulher e jornalista, ou seja, uma pessoa que tinha duas vezes justificada a curiosidade.
Por isso, era mais do que natural que ela ficasse atraída por tudo aquilo — afinal jamais estivera num lugar assim. E, para cúmulo, antes da sessão começar, o próprio Raimundo de Ogum viera lhe dizer que entrasse, que assistisse ao ritual.
— É muito bonito — falara o pai-de-santo — Você terá oportunidade de ver muitas coisas diferentes, poderá aprender um pouco sobre o Candomblé e sobre a cultura religiosa do povo brasileiro, o seu povo. Aposto como vai gostar.
Sorriu e, piscando o olho esquerdo para Laura, dissera:
— Mesmo você, que acabou de chegar de um país super-evoluído, vai gostar...
Baixando a voz, quase num murmúrio, ele acrescentara:
— Além do mais, Ogum tem uma mensagem para você.
— Para mim? — espantara-se a moça.
— Sim — respondera Raimundo — Há uma mensagem que deve ser transmitida para Laura Vieira de Souza, jornalista, que mora na rua Aristóbulo Barbosa Leal, Jardim da Penha, número 90, apartamento 302.
Laura sentira um arrepio a lhe percorrer todo o corpo.
Ia perguntar como é que aquele homem poderia saber seu nome completo — ninguém o sabia, nem mesmo a Dona Júlia — e seu endereço, pois ela se mudara para aquele apartamento havia pouco mais de um mês.
Não seria pelo fato de Laura ser uma jornalista.
Estava em Vitória havia apenas dois meses, recém-chegada de um curso de aperfeiçoamento que fizera em Lyon, na França e, apesar disso, enfrentava duramente a concorrência na Capital Capixaba, ainda engatinhando na carreira, apenas executando um ou outro trabalho como free-lancer para alguns jornais e revistas da cidade.
Porém, não tivera tempo de perguntar nada.
Raimundo de Ogum já se afastava e, mesmo contra sua vontade, Laura acompanhara seus passos, entrando na Tenda.
De fato, o ambiente era bonito.
A princípio, a jornalista chegara a se assustar com a imponência do templo, uma espécie de grande auditório construído na forma de anfiteatro, capaz de abrigar mais de cem pessoas sentadas em confortáveis poltronas estofadas, e com um palco — talvez fosse mais apropriado dizer arena — onde um altar ocupava a parte central. Ali, bem arrumados, havia uma cabeça empalhada de cabra, várias medalhas, sete medalhões e sete pratos de barro com frutos de obi — uma espécie de noz — e um alguidar que depois, ela ficou sabendo estar cheio de azeite de dendê. Pendurados à parede, sete objetos se destacavam: uma espada, uma lança, uma enxada, uma torquês, um facão, uma ponta de flecha e uma enxó.
Tímida, achando-se mais deslocada ali do que um peixe fora d’água, sentara-se numa das poltronas da última fileira e ficara observando.
Vira chegar os filhos e filhas-de-santo, vira aparecer Raimundo de Ogum, empunhando uma grande espada prateada, vestido com uma calça de cetim azul e uma camisa vermelha, trazendo sobre os ombros uma espécie de capa branca, debruada em vermelho e enfeitada com fitas azuis e com pedras de vidrilho colorido.
— Bonito... — murmurara, involuntariamente.
— Sim — respondera, para sua surpresa, um senhor que estava ao seu lado e que, até aquele instante, não lhe despertara a atenção — É muito bonito. Raimundo é o pai-de-santo, o Chefe do Terreiro. Neste instante, ele está representando Ogum.
Sem que Laura perguntasse, o senhor continuara:
— Ogum é um deus guerreiro, mestre das artes e senhor da metalurgia. Veio ensinar o valor e a utilidade do ferro e de todos os outros metais. Ensinou a construir ferramentas de trabalho e a fazer armas, preparando o homem para a guerra. Em contrapartida, ele também o iniciou em várias outras formas de arte, como a música, a pintura e a dança. Assim, Ogum firmou-se como o primeiro mestre do ser humano. Por isso, é considerado pelos estudiosos, como um dos mais antigos Orixás. Para muitos, Ogum é a confrontação direta com o Mal, ou seja, com Exu. Mas isso não está confirmado. O fato é que Ogum é o mais cultuado dos deuses yorubás. Seu nome é invocado em todos os rituais, até mesmo quando são homenageados outros Orixás, desfilando na frente, abrindo o cortejo dos que vão ser cultuados.
Mostrando o altar para Laura, ele perguntara:
— Notou como em seu peji tudo tem o número sete?
— Peji? — fizera Laura.
Com um sorriso, o homem explicara:
— Peji é o altar... E sete é o número associado a Ogum. O número sete, sob qualquer prisma, está ligado a Ogum. Ele possui sete nomes: Ogum Onirê, Ogum Akorô, Ogum Alagbedê, Ogum Já, Ogum Mejê, Ogum Omini e Ogum Wari. Seus fetiches também são sete e ele pede sempre para que se acendam sete velas por ocasião de suas homenagens.
Nesse momento, Raimundo de Ogum e seus filhos-de-santo, pararam, voltaram-se para o peji e, enquanto todos ficavam de pé, o homem dissera, quase ao ouvido de Laura:
— Ogum corresponde, no sincretismo com a religião católica, a Santo Antônio ou São Jorge... Por isso é que esses santos são considerados santos fortes!
Laura voltara a prestar atenção ao que se desenrolava junto ao peji e vira Raimundo erguer os braços, gritando:
— Patakori! Ogum iêêê!

*******

A jornalista se deixou levar, sem nem mesmo perceber, pelo encantamento e pela magia do ambiente.
O som ritmado dos atabaques, o cheiro de incenso e de uma infinidade de ervas que queimavam diante do peji, a dança das filhas e filhos-de-santo, o cântico yorubá, tudo fazia com que ela se sentisse transportada para muitos anos atrás, quando os escravos ainda existiam e se reuniam secretamente na mata, para os seus rituais proibidos pela Igreja Católica.
Permitindo que seus pensamentos voassem para muito longe, tanto no espaço quanto no tempo, Laura demorou alguns minutos para perceber que o pai-de-santo estava atendendo individualmente os fiéis, ditando-lhes receitas para suas doenças e indicando-lhes trabalhos e despachos para seus conflitos pessoais, enquanto os tambores e os cânticos prosseguiam em uma quase surdina.
De repente, Raimundo de Ogum, fez calar os atabaques, olhou intensamente para a jornalista, e disse:
— Dona Laura... Faça o favor de vir até aqui.
Sentindo um súbito calafrio a lhe percorrer todo o corpo, moça empalideceu.
Aquilo era demais para ela.
Não... Ela não queria ir!
Ela não tinha nada a ver com o que estava acontecendo!
Muito pelo contrário, nem mesmo acreditava naquelas coisas de Candomblé, Umbanda, Quimbanda...
Para ela, tudo era espiritismo, era uma religião ou, que fosse, uma tendência religiosa que se confrontava direta e violentamente com tudo quanto aprendera dos pais e das Irmãs Marcelinas, quando menina!
Não!
Ela não iria, não poderia ir!
Não poderia aceitar uma participação ativa num ritual que, no seu entender, não passava de um ritual primitivo e pagão!
E Laura não gostava de se destacar, de ser diferente dos outros, ainda mais num lugar como aquele, num local onde não conhecia ninguém além de Dona Júlia e, mesmo esta, apenas superficialmente.
Mas, a despeito de tudo isso, ela se viu levantando, como se suas pernas não obedecessem mais às ordens emitidas por seu cérebro consciente...
— Estou sendo comandada pelo meu inconsciente! — pensou, aterrorizada, lutando consigo mesmo para retomar o controle de sua vontade.
Mas, era muito mais forte do que ela...
Assustada, trêmula, sentindo claramente que não estava sendo dona de suas próprias atitudes, ela desceu os degraus da escada central do auditório e, muito tímida, aproximou-se de Raimundo de Ogum.
O pai-de-santo fez-lhe um sinal para que se sentasse num banquinho que se encontrava diante do peji e, estendendo ambas as mãos sobre a cabeça de Laura, disse:
— Que os Orixás abram seus caminhos, minha filha... E que Ogum permita que você tenha sucesso em sua missão aqui na Terra!
Fez um movimento circular com as mãos, abrindo-as e fechando-as repetidas vezes, como se estivesse tirando da cabeça de Laura alguma coisa que a atrapalhava.
Fitando a jornalista com uma intensidade tal que a obrigou a baixar o olhar, Raimundo de Ogum falou:
— Você sabe que todos nós temos uma missão nesta vida. E do cumprimento dessa missão vai depender a nossa vida futura.
Laura bem que desejava responder, mas...
Sua garganta estava seca como uma folha de papel, seus lábios pareciam colados...
Não conseguiu emitir um único som e o pai-de-santo, prosseguiu:
— Uma pessoa de quem você até já se esqueceu, está correndo um grande perigo — disse o pai-de-santo — E será sua missão impedir que lhe aconteça algo de ruim.
Laura franziu as sobrancelhas, intrigada.
— De quem o senhor está falando? — perguntou — Quem é essa pessoa e que perigo ela está correndo?
Raimundo de Ogum sorriu, pousou a mão direita sobre o ombro de Laura e falou:
— Não estou autorizado a lhe dizer mais nada. Saiba apenas que terá essa missão. E, é claro, terá de se preparar muito bem para levá-la a cabo!
Antes que Laura pudesse protestar, ele continuou:
— Você precisará voltar aqui. Mas voltará numa hora especial, na hora de Ogum. Terça-feira, às seis da tarde. Você deverá trazer uma ferradura nova e sete cravos. Sabe o que é um cravo?
— Sim — respondeu a moça — É o prego que se usa para ferrar cavalos.
— Isso mesmo — concordou o pai-de-santo — E não tome álcool antes de vir para cá.
Raimundo de Ogum fez um sinal e os atabaques recomeçaram, num ritmo lento que, aos poucos, foi se tornando cada vez mais rápido e frenético.
Laura começou a perceber que seu corpo ficava leve, que sua cabeça rodava e uma deliciosa sensação de relaxamento principiava a dominá-la.
Viu Raimundo erguer os braços mais uma vez e ouviu-o gritar:
— Ogum! Guaramin-fô!
E, então, deixou-se mergulhar nas trevas da inconsciência...


DOIS




Na realidade, João Fernando Medeiros de Albuquerque, conhecido pelos amigos como Nando, era tido por todos como um exemplo no que dizia respeito à honestidade, ao trabalho e até mesmo à caridade. Nunca se soube de alguém que tivesse batido à sua porta com alguma necessidade, que ali não encontrasse apoio e, muitas vezes, a solução final para seus problemas.
Amigo de todos, Nando era indispensável em qualquer festa, era presença imprescindível em qualquer acontecimento social ou cultural, era uma espécie de mola que impulsionava para a frente não apenas os seus próprios negócios, mas também os dos amigos e companheiros. Com muita propriedade, alguns jornalistas — tanto colunistas sociais quanto articulistas da área de economia e política — não se acanhavam em afirmar que Nando Albuquerque era a alma dos negócios e da vida de Vitória.
Exagero?
Talvez...
Mas o fato é que não se fazia nada na Capital Capixaba, sem que antes Nando fosse devidamente consultado.
Enviuvara ainda jovem, tivera apenas uma filha e, nunca se soube por quê, não quis se casar outra vez.
Talvez porque um novo matrimônio acabaria se transformando num forte impedimento para que tivesse um amplo — e íntimo — relacionamento com muitas mulheres...
Era um conquistador.
Se gostava de mulheres bonitas, gostava muito mais das emoções da conquista, da aproximação, da consumação da vitória. E, depois de umas poucas semanas, partia para outra aventura amorosa, para um novo relacionamento, uma nova amante.
E, incrível!
Conseguia fazer as coisas de tal maneira que suas amantes, ao se separarem dele, não ficavam magoadas, acabavam achando que aquilo tinha de ser daquele jeito mesmo e que nada havia de extraordinário, de humilhante ou depressivo. A substituição era praticamente esperada, automática, irremediável e... natural. Elas continuavam suas amigas e não poucas, às vezes, chamavam-no, solicitavam sua presença para aquecer-lhes uma noite mais fria e mais solitária.
Nando era considerado irresistível e, quando cismava com alguma mulher, que seus concorrentes e rivais tomassem cuidado! Era líquido e certo que ele, de alguma maneira, haveria de conseguir carimba-la.
Tinha sido exatamente isso que acontecera com Daisy, uma loura exuberante e muito cheia de vida, representante em Vitória de uma empresa de informática.
Daisy surgira na Capital Capixaba vinda do Rio de Janeiro, cheia de sonhos e de ambições.
Era mais ou menos óbvio que Daisy tivesse ido procurar fazer algum negócio com a Medeiros de Albuquerque Empreendimentos, uma das maiores empresas do Estado e, o que era melhor e muitíssimo promissor, com bastante potencial para se transformar em sua maior cliente.
Assim, com muitos planos e projetos na cabeça, ela foi falar com José Miranda Pedreira, um dos diretores da empresa e, justamente o responsável pela área de Desenvolvimento Tecnológico.
Pedreira, na ocasião com apenas trinta e dois anos de idade, divorciado havia quase uma década, achou que não poderia perder aquela chance.
Afinal de contas, uma mulher bonita, alegre e ansiosa por subir na vida, não seria uma presa difícil... E ele, além do mais, estava acostumado a seguir os passos de seu patrão nas conquistas amorosas.
Não foi, de fato, a coisa mais complicada...
Bastou a compra de um equipamento, um jantar, alguns drinques a mais e eles foram passar um fim-de-semana dos mais agradáveis em Piúma, uma deliciosa praia a cem quilômetros ao sul da Capital.
Teria sido mais uma conquista...
Daisy ficaria apenas fazendo parte do acervo de Pedreira, pronta e disponível para qualquer outro, como sói acontecer nesses casos, se...
Em primeiro lugar, se Daisy não fosse o vulcão que era, se não tivesse feito Pedreira se sentir um autêntico super-homem...
Segundo, se ela não fosse tão ambiciosa e ciente de que o caminho mais fácil e menos áspero para alcançar seus objetivos seria justamente o caminho da cama de um homem importante, ou seja, precisamente como aquele executivo.
E ela trabalhou muito bem...
Mostrou alguma reserva na noite de sexta-feira, comportou-se como se fosse uma virgem que estava sendo seduzida e que, ainda receosa e envergonhada, obrigava-se a manter um certo recato.
Recato este que caiu por terra já na manhã de sábado, quando os dois despertaram com o sol piumense invadindo as janelas de seu quarto e a silhueta do Monte Agha parecia inspirar coisas mais elevadas e arrojadas.
Depois, durante a tarde, Daisy manifestou carinho e preocupação para com Pedreira, queria o seu bem-estar, queria que ele repousasse, que descansasse de todos os problemas que era obrigado a enfrentar na empresa.
Ouviu-o e concordou com suas idéias, quando ele começou a falar mal do patrão e de seus métodos administrativos. Mostrou-se interessada por tudo, deu conselhos, sugestões, disse que ele, Pedreira, era um homem maravilhoso e que, infelizmente para todos, ainda não tinha sido bem compreendido em seu trabalho.
E à noite...
Ah, à noite!
Daisy realizou todos os sonhos de Pedreira, concretizou todas as suas fantasias, levou-o ao sétimo céu.
No meio da madrugada, ainda com a respiração irregular depois de tantas horas de loucuras e de extravagâncias, ela disse: — Acho que nunca mais vou poder ficar sem você, Zezé... Você foi o único que me fez sentir verdadeiramente mulher... Jamais poderei me entregar a qualquer outro!
Para Pedreira, foi o bastante...
Desse dia em diante, ele começou a orientar a vida no sentido de se juntar à moça, de reiniciar um lar e, quem sabe, uma família.
Mas, há mulheres e mulheres, neste mundo...
E Daisy fazia parte de um bem determinado grupo delas que, por melhor que estejam servidas de homem e marido — ou amante — sempre há um outro melhor, mais interessante e óbvio, é justamente este o cobiçado.
No caso de Daisy, houve ninguém menos que o terrível, o temível Nando Albuquerque.
E o que mais atormentava e enraivecia Pedreira era o fato de que tinha sido ele mesmo o responsável por Daisy ter se apaixonado por seu patrão.

*******

Ele mesmo a apresentara a Nando, por ocasião de uma festa na residência de um importante político capixaba, lá no Planalto Central.
Era uma daquelas festas de Brasília, onde os importantes cavalheiros desfilavam não apenas as suas qualidades de negociadores, negociantes ou negociateiros, mas também as parceiras, as mulheres que naquele exato momento os estavam acompanhando.
Sim, pois na Capital Federal parece haver uma tendência estranha e por vezes incompreensível, de se medir o cidadão pela mulher que tem ao lado, como se ele fosse um criador de cavalos que estivesse expondo à apreciação de prováveis clientes, a mercadoria disponível.
Essa tendência, se benéfica para uns e para outras, por vezes trazia alguns pequenos problemas de consciência que, em sua grande maioria, eram solucionados da maneira mais simples possível, ou seja, com a separação do casal, com um arranjo amigável entre todas as partes interessadas.
Sem mágoas e sem ressentimentos.
Dessa forma, era muito comum encontrarem-se dois cavalheiros comentando que estavam trazendo àquela recepção, a terceira ou a quarta esposas.
Da mesma forma, entre as distintas e bem vestidas senhoras ouvia-se facilmente comentários a respeito de quarto ou quinto maridos...
Ora...
Nando Albuquerque não tinha qualquer problema de consciência e muito menos estava preocupado em apresentar à sociedade, fosse lá em Brasília, fosse em Vitória ou ainda em Bruxelas, a sua enésima conquista amorosa.
Afinal de contas, todos sabiam quem ele era, todos tinham pleno conhecimento de sua incrível capacidade de imitar o Barbazul e, no mínimo, o invejavam.
Assim, quando era convidado para uma recepção ou festa em Brasília, Nando achava muito mais fácil telefonar para uma dessas empresas de modelos fotográficos e escort-girls, e encomendar uma companhia para a noite.
O que, na realidade, trazia em seu bojo, uma série bem grande de vantagens.
Entre estas, a de que não havia qualquer envolvimento a não ser um contrato verbal de prestação de serviços e, com isso, havia muito mais liberdade para Nando que, se em plena festa cansasse da garota que tinha ao lado, estava perfeitamente à vontade para flertar com quem quer que fosse e que se deixasse impressionar por sua bela figura e — é claro — por seu potencial financeiro.
Mas...
Quis o Destino que, para aquela festa em Brasília, Nando não tivesse conseguido arrumar tempo nem mesmo para telefonar para a tal agência de modelos.
Assim, ele foi sozinho, acompanhado por Pedreira e por Daisy...
E Pedreira não conseguiu evitar que o patrão gavionasse sua companheira e, muito menos, que esta correspondesse, impressionada que ficara desde o momento em que Nando, muito cavalheiro e elegante, dissera-lhe para que sentasse ao seu lado, no banco do co-piloto, no Seneca II que ele mesmo comandava.
Era inevitável, era presumível, foi o que aconteceu.
Nando percebeu em menos de uma hora de vôo, que Daisy seria uma presa muito fácil...
Fácil e das mais tentadoras!
Porém, a presença de Pedreira poderia atrapalhar. Era público, todos sabiam — e ele, Nando, também — que Daisy estava praticamente vivendo com Pedreira, já fazia algum tempo.
O milionário precisava portanto, arrumar uma maneira de afastar seu funcionário do teatro de operações.
Assim, ele pousou em Belo Horizonte, lembrando-se subitamente de uma obrigação inadiável no Rio de Janeiro.
Pedindo mil desculpas para Pedreira, dizendo-se cheio de remorsos por ser obrigado a isso, ordenou-lhe que tomasse um avião para o Rio e tratasse de solucionar o problema.
— Vá sozinho — falou — É um negócio muito importante, vai lhe tomar muito tempo e Daisy se aborrecerá no hotel.
Voltando-se para a mulher, disse:
— Tenho certeza que ela preferirá ir para Brasília. Depois de amanhã, quando você já tiver posto tudo em andamento, ela irá encontrá-lo e eu o deixarei com uma semana de folga como recompensa pelo incômodo.
Pedreira não tinha nenhuma outra alternativa.
Embarcou para o Rio sabendo muito bem que estava simplesmente sendo dispensado para deixar o terreno livre para o patrão.
Dois dias depois, ainda hospedado no Hotel Glória, depois de rodar por toda a cidade em busca de um nome que não existia e de um endereço confuso e também imaginário, recebeu um telefonema de Daisy.
Em uma conversa franca e direta — até mesmo excessivamente crua e fria — Daisy falou para Pedreira, que estava apaixonada por Nando e que iria ficar com ele.
Pedreira ficou desiludido, revoltado e furioso e absolutamente impotente, tendo em vista que sabia jamais poder concorrer com seu patrão.
Daisy passou a ser par constante de Nando, os dois eram vistos juntos em todos os lugares da moda, em todos os restaurantes e acontecimentos da cidade e havia até quem dissesse — maldosamente — que Nando finalmente tinha se fixado em alguém.
Afinal de contas, aquele romance estava durando mais de dois anos e para Nando, isso era considerado incrível.
— Ele já está ficando velho — disseram alguns maldosos — Precisava, mesmo, criar juízo.
— Que nada! — disseram outros — A situação política e econômica do país anda mal... Nando está preocupado e sem tempo para mais nada além dos negócios. É mais cômodo, para ele, ter uma mulher em casa, sempre à disposição...
— E que mulher! — suspiravam os invejosos — Com uma égua daquelas amarrada no meu palanque, eu não iria querer outra vida! E não iria ter tempo para mais nada, também! Só que estaria usando cada minuto do dia para...
Para Pedreira, tudo aquilo era profundamente triste e humilhante mesmo porque ele sabia que, esses mesmos que comentavam sobre o envolvimento de seu patrão com Daisy, riam às escondidas, comentando que, no fundo, tinha sido ele que entregara, numa bandeja, a mulher para Nando.
Ora...
Um homem que está psicológica e sentimentalmente abalado, não consegue trabalhar bem.
Foi o que aconteceu com Pedreira.
Frustrado, desiludido, humilhado e diminuído perante si mesmo e todos os de sua roda de amizades, ele começou a beber, a jogar, a dispersar seus ganhos com as coisas mais idiotas.
Não foi preciso muito para que entrasse em uma situação crítica e, como se não fosse o bastante, o excesso de faltas ao serviço e as mostras de irresponsabilidade que estava dando, causaram-lhe as ameaças de demissão por parte de Nando.
Foi nessa ocasião que Pedreira foi procurar, pela primeira vez, o pai-de-santo e chefe de terreiro, Paulinho de Salvador.
— Você possui umas terras em Alfredo Chaves — disse-lhe Paulinho — Venda-as. Você verá que Nando Albuquerque vai comprá-las.
— Mas eu jamais as venderia para esse crápula! — protestou Pedreira.
— Pois você vai vender — insistiu o pai-de-santo — Vai vender e verá como tudo vai se resolver. E a solução de seus problemas surgirá no mesmo dia em que o negócio for efetivado.
Muito sério, finalizou:
— Receba o dinheiro, assine a escritura e volte para Vitória. Não fique mais nem um segundo com o seu patrão, não o acompanhe a nenhum outro lugar.
Desarvorado, perdido, sem conseguir enxergar uma outra alternativa, Pedreira obedeceu.
Pôs as terras à venda.
Não precisou esperar nem mesmo uma semana.
Nando soube que seu funcionário estava querendo vender a fazenda e, como sabia que Beatriz, sua filha, gostava muito daquela região e das histórias que por ali eram contadas sobre os antigos fazendeiros e suas famílias, resolveu comprá-las.
— Estarei ajudando você a se livrar de uma situação escabrosa — disse-lhe Nando — Quem sabe assim, você voltará a trabalhar como antes, sem problemas financeiros a lhe corroer o cérebro e a alma.
O empresário decidiu que iria para Alfredo Chaves, para regularizar os papéis da compra, acompanhado por Daisy e, é evidente, por Pedreira.
— Iremos em meu avião — disse ele — Assim, de lá, daremos uma passada por Campos e eu poderei aproveitar para resolver alguns negócios que ainda estão pendentes naquela cidade.
Assim fizeram.
A bordo do Seneca II de Nando Albuquerque foram para a fazenda, realizaram o negócio e de lá, enquanto Nando e Daisy seguiam para a cidade de Campos, ele mesmo pilotando habilmente seu aparelho, Pedreira voltava para Vitória, de ônibus, sem ter muita certeza de não estar fazendo papel de idiota, acreditando tão cegamente nas palavras daquele pai-de-santo.
Foi à noite, à hora do jantar, que ele ouviu, no jornal falado da televisão, a notícia do acidente aeronáutico:
— Esta tarde, por volta de 15 horas, o avião Seneca II pilotado por João Fernando Medeiros de Albuquerque, proprietário da Medeiros de Albuquerque Empreendimentos, caiu a cerca de trinta quilômetros da cidade de Campos, no Rio de Janeiro. O empresário e sua companheira tiveram morte imediata. Ainda não se sabe o que causou o acidente mas, testemunhas que presenciaram o desastre disseram que o avião explodiu no ar. Os corpos serão removidos para Vitória, no Espírito Santo.
Pedreira estava levando uma garfada de comida à boca quando escutou a notícia.
Imediatamente, perdeu o apetite e sentiu um calafrio a lhe percorrer a espinha dorsal.
Então aquele pai-de-santo estava certo!
Como é que ele poderia ter adivinhado?!



TRÊS




Beatriz olhou pela milésima vez para o seu relógio.
— Como o tempo demora a passar! — exclamou para si mesma.
Com um sorriso de sua própria impaciência, pensou:
— Também, quem é que me mandou chegar meia hora antes? Até parece que eu não conheço a pontualidade dos vôos domésticos, aqui no Brasil!
Sem ter mais o que fazer, dirigiu-se para a pequena livraria do Aeroporto de Goiabeiras, em Vitória. Pelo menos poderia folhear algumas revistas de moda e ver uma ou outra manchete dos jornais.
Estava nervosa, excitada, misturando uma sensação de ansiedade com a preocupação do que estava para acontecer.
Beatriz, em seu íntimo, sabia muito bem o que se passaria nas próximas horas...
Ela o reencontraria, depois de mais dois anos de afastamento.
Dois anos!
Era muito tempo!
Quanta coisa tinha acontecido nesse intervalo!
— E ele? — pensou — O que teria feito? Com quem será que esteve durante todo esse tempo?
Mais uma vez, ela se condenou pelo pensamento de adolescente.
Afinal, nada poderia exigir de Pierre, pois no fundo, fora ela mesma que não aceitara as condições que ele propusera para uma vida a dois, para uma união mais estável.
— Ora... União estável! Jamais teria sido estável! — disse ela para si mesma — Com aquela mania de achar que tudo é válido, com aquela história idiota de democratização do amor...! Para mim, isso tem outro nome... Promiscuidade! Exatamente isso e nada mais! Promiscuidade! E eu não posso suportar esse tipo de comportamento!
Apanhou uma revista de alta costura e começou, distraidamente, a folheá-la.
— De fato... — pensou — Preciso me atualizar um pouco... Estou completamente fora de moda, estou muito relaxada com a minha aparência, desde que voltei de Paris!
Não pode deixar de pensar que, durante os últimos meses, sua vida tinha sido tão cheia de complicações que mal lhe sobrava tempo para pensar em roupas, modas, costureiras, cabeleireiras...
As empresas precisavam dela, ela precisava estar à testa de tudo, vigiando, cuidando, policiando, evitando de todas as maneiras que aqueles homens, aqueles senhores que sempre tinham se mostrado tão amigos de seu pai, tirassem-lhe o controle da holding.
Tivera, afinal, que pedir socorro.
E era isso que esperava de Pierre.
Que a ajudasse, que ao menos lhe emprestasse seu braço forte, que não deixasse o barco afundar.
De mais a mais, depois de tudo o que acontecera, ela estava confusa.
A morte do pai, ela sentada à cabeceira da mesa do Conselho Administrativo...
A inveja e a competição dentro do Conselho...
Como se não bastasse tudo isso, havia as dificuldades que estava enfrentando na fazenda.
Dificuldades que Beatriz não conseguia explicar, que não tinham a mínima razão de ser e que, no entanto, estavam começando a deixá-la louca.
Sim...
Somente Pierre teria condições de resolver todos aqueles problemas.
Sorriu intimamente e pensou:
— Esses e muitos outros problemas...
Fechou os olhos apertando muito as pálpebras, como se isso a ajudasse a afastar da mente esses pensamentos.
Não...
Pierre estava vindo para o Brasil unicamente como um assessor.
— É bem verdade que será um assessor amigo... — disse ela, de si para consigo — Mas ele precisa ficar apenas como amigo e dependerá de mim manter essa posição!
Continuando a folhear a revista, murmurou:
— De qualquer maneira, não me sinto nem um pouco estimulada, aqui em Vitória... Para que vou ficar me preocupando com as roupas que uso? Para quem hei de me fazer bonita e atraente?
Torcendo o nariz, como se estivesse enojada, pensou:
— Para o Pedreira, por acaso?
Recolocou a revista na pilha e suspirou, pensando:
— Ainda se Pierre estivesse aqui... Para ele, sim, eu sentia o maior prazer em estar bem vestida, elegante, desejável...
Mas Pierre ficara em Paris.
E com ele, lá também ficaram muitas recordações, muitos momentos agradáveis e de que ela haveria de se lembrar para o resto da vida.
Como, por exemplo, aquele fim-de-semana passado dentro do apartamento de Pierre, arrumando suas roupas, cozinhando para ele e...
Aprendendo a amar...
Só que ele estava chegando.
Estaria novamente com ela dentro de alguns minutos!
E então...
Bem...
Talvez então, Beatriz voltasse a ser vaidosa, talvez ela se estimulasse novamente e passasse a enxergar o lado alegre da vida.
Mesmo sabendo que Pierre continuava a pensar como antes, mesmo ciente de que ele jamais conseguiria ser de uma só mulher.


PARTE I






BEATRIZ

UM




— Mas é maravilhosa! — exclamou a moça, olhando para a sede da velha fazenda — Eu adoraria morar num lugar como este!
— Pois eu estou pensando em comprá-la, Beatriz — disse Nando — O problema é que o Pedreira não quer saber de falar em negócios com estas terras. Ele disse que namorou esta fazenda durante muitos anos, só conseguiu adquiri-la às custas de muito sacrifício e...
Ergueu os ombros, um tanto quanto desanimadamente e completou:
— Você o conhece. Sabe muito bem quanto ele é teimoso. Está precisando desesperadamente de dinheiro e, no entanto, não quer se desfazer de nada!
— Ele tem esse direito, papai — ponderou Beatriz — Afinal, as terras são dele. Se não quiser vender... Será uma pena, mas nada poderemos fazer.
Puxando o pai pela mão, Beatriz entrou no velho casarão, dizendo:
— Veja só essa construção! Aposto que tem muito mais de cem anos e, no entanto, ainda está de pé! E olhe que não tem sido conservada há muito tempo!
Atravessando o amplo salão, pisou fazendo ecoar suas passadas pela casa e falou:
— Adoro esse tipo de chão! Tábuas largas... E devem ser de ipê!
Sorriu, virou-se para o pai e murmurou, sonhadora:
— Se fosse minha, eu faria uma reforma e tanto...
— Perderia a originalidade... — retrucou Nando — Desvalorizaria a casa.
— Está enganado, papai — falou Beatriz — Eu não mudaria nada. Apenas arrumaria o que está estragado e, é claro, acrescentaria alguns itens de conforto que, naquela época, ainda não eram devidamente valorizados. Coisas como um bom banheiro, por exemplo. E alguns equipamentos de cozinha.
Mostrou dois velhos candelabros que estavam caídos no chão e completou:
— Também energia elétrica. Isso seria fundamental.
E, com um trejeito coquete, explicou:
— Precisaria de eletricidade para fazer funcionar meu computador...
— Computador? E para quê você haveria de querer um computador aqui, minha filha? — indagou Nando, franzindo as sobrancelhas.
— Um lugar como este inspira, papai — explicou Beatriz — Eu escreveria um livro... Um livro formidável sobre a vida numa fazenda, no tempo dos escravos. E posso apostar que seria um imenso sucesso!
Nando meneou pensativamente a cabeça, num sinal afirmativo.
Sim...
Certamente seria um sucesso...
Ninguém, nenhum de seus conhecidos deixaria de comprar um livro escrito por Beatriz, mesmo porque todos desejariam agradá-la, todos estariam loucos para vê-la feliz, sorrindo e irradiando toda aquela sua simpatia...
Sorriu intimamente e pensou:
— O mais engraçado é que o livro será bom... Essa danadinha sabe fazer as coisas certas, é inteligente e esforçada... Se ela se decidir a escrever um livro aqui, aposto vinte anos de minha vida como será algo simplesmente sensacional!
Saíram da casa pela porta da cozinha, depois de Beatriz sonhar durante alguns instantes com as grandes preparações que seriam feitas para aprontar um banquete naquele velho casarão.
— Já pensou? — fez ela — As escravas, as aias, as cozinheiras... Aqueles pratos complicados e enfeitados, os bolos, os papos-de-anjo...
Nando riu, puxou a filha para perto de si e beijou-a na testa, dizendo:
— Com a sua gula, minha querida, não sei como pode continuar esbelta assim...!
— É que eu cuido de mim, papai — replicou Beatriz — Faço ginástica todos os dias, de vez em quando passo quinze dias fazendo dieta. Eu gosto de comer e, justamente por isso, não me descuido. Assim, de vez em quando posso abusar.
Voltando para o automóvel, Nando Albuquerque disse:
— Não entendo, na realidade, porque o Pedreira comprou esta fazenda. Entendo menos ainda o sacrifício que fez para poder adquiri-la...
Beatriz olhou interrogativamente para o pai e este continuou:
— Quando um homem tem suas raízes no campo, quando ele passou uma parte de sua vida em fazendas, entre plantações e criações as mais diversas, dá para aceitar que, um dia, ele envide todos os esforços no sentido de retornar às suas origens. Porém, quando ele jamais teve qualquer coisa que ver com a terra, quando sua educação e vida pregressa estão tão ligadas ao asfalto das grandes cidades quanto um poste de sinalização, não dá para entender que ele passe por privações as mais incríveis unicamente para poder comprar uma fazenda.
Balançou negativamente a cabeça e falou:
— Pedreira jamais foi fazendeiro. Jamais entendeu uma linha de criação de gado ou de plantações. A prova disso está aí... A fazenda está parada, ele está precisando de dinheiro e é incapaz de fazer o que quer que seja que transforme tudo isso em renda!
Ligando o motor do automóvel, arrancou em direção à cidade e, quando já estavam a cerca de um quilômetro da fazenda, Nando disse:
— Mas eu vou insistir, Beatriz. Sei que, cedo ou tarde, Pedreira vai precisar de muito dinheiro. Aí, ele não terá outra opção. Terá de se desfazer destas terras e eu estarei encabeçando a fila dos interessados.
— Por que tanto interesse, papai? — perguntou Beatriz.
E, com um sorriso maroto nos lábios, acrescentou:
— Você nunca se interessou por fazendas... Sempre foi um homem de cidade, cheirando a asfalto por todos os poros!
Antes que seu pai protestasse, Beatriz completou:
— Se o Pedreira está tão ligado ao asfalto quanto um semáforo, você está tão ligado à vida noturna das grandes cidades quanto uma unha ao dedo!
Nando riu e, acelerando o motor de seu potente Omega, disse:
— Você tem razão. Eu jamais me daria bem morando no meio do mato. Mas...
Olhou para a filha e prosseguiu:
— Você, ao que tudo indica, gostaria dessa experiência. Além do mais, é uma excelente idéia, escrever um livro ou, quem sabe, desenvolver uma tese a respeito da história deste lugar. Por último, tenho meios e recursos suficientes para transformar esta terra abandonada numa fazenda modelo que irá gerar lucros diretos com a sua produção e muitos lucros indiretos com a utilização desse casarão, depois de reformado, para receber e hospedar clientes e pessoas importantes que venham negociar conosco. Para uma empresa do porte da nossa, ser proprietária de um haras ou de alguma coisa nesse estilo é muito conveniente do ponto de vista político...
Beatriz anuiu com um balançar de cabeça e depois de alguns momentos, quando já estavam chegando à entrada de Alfredo Chaves, disse:
— Bem, papai... Se é que o conheço, quando eu voltar de Paris, terei um novo lugar para ficar e, o que é melhor, algo para construir ao meu modo...
— Pode apostar nisso! — exclamou Nando — E pode apostar, também, que esta fazenda estará produzindo normalmente, sem que seja preciso socorrê-la em nada!

*******

Beatriz desembarcou no Aeroporto Charles De Gaulle e sorriu satisfeita, quando avistou aquele senhor simpático segurando um cartaz de papel onde estava escrito, em letras floreadas, o seu nome.
Ficou ainda mais satisfeita quando notou que ele trazia um buquê de flores e uma caixa de marrons glacés, seu doce predileto.
— Soube que você gosta de marrons — disse Guy Lascard, o representante de seu pai na França — Não poderia deixá-la ir para casa sem levar consigo pelo menos uma caixa...
— É isso que eu amo nos franceses — falou Beatriz, beijando as faces de Lascard — Essas delicadezas só existem aqui!
— Você ainda não foi ao Japão... — replicou o francês — Lá, as delicadezas ainda são maiores! E muito mais difíceis de retribuir!
Oferecendo o braço para Beatriz, Lascard disse:
— Vamos... Já tomei todas as providências para desembaraçar suas malas e alguém do escritório vai levá-las para o seu apartamento.
Olhando com expressão preocupada para ela, arriscou:
— A menos que prefira ficar num hotel, esta noite. Afinal, acabou de chegar, imagino que possa estar cansada...
— Não — respondeu Beatriz, prontamente — Quero ir para minha casa. Estou louca para tomar um bom banho e ficar à vontade... Isso me fará descansar. Amanhã devo começar o curso sobre antigüidades luso-brasileiras e acho melhor deixar tudo pronto, tudo bem arrumado para não perder tempo ao acordar.
Saíram do aeroporto e rumaram para o estacionamento, onde um Citroën novo estava esperando por Beatriz.
— Este é o seu carro — explicou Lascard — Espero que goste.
Entregou-lhe um envelope e arrematou:
— Aqui estão os documentos de suas contas bancárias em Paris, cartões de crédito, talões de cheques e algum dinheiro que seu pai me pediu para lhe dar. Você já tem meus telefones e todas as maneiras de me encontrar. Se precisar de alguma coisa...
Com um olhar que pareceu a Beatriz, ansioso demais, Lascard disse:
— Será um prazer poder fazer alguma coisa por você...
Beatriz sorriu, apanhou o envelope e, dizendo para Lascard que não precisava se incomodar, pois ela sabia onde era o apartamento e jamais se perderia em Paris — afinal de contas, ela já residira na Cidade Luz por dois meses antes de se matricular naquele curso da Sorbonne — despediu-se do representante de seu pai, sentou à direção do Citroën e arrancou em direção a Montmartre.
Saindo do estacionamento, não pode deixar de pensar que alguma coisa precisaria mudar no relacionamento com seu pai.
Ela não estava achando muita graça em ser paparicada o tempo todo, em ser considerada como ainda adolescente, absolutamente incapaz de tomar decisões sozinha e até mesmo de viver sem ser à sombra protetora do pai.
Beatriz era perfeitamente capaz de entender que ele assim agia unicamente por amor, por não querer que ela passasse por qualquer dificuldade, pela menor necessidade...
Sim, Nando Albuquerque queria apenas protegê-la, queria evitar que ela sofresse.
Mas...
Esse excesso de zelo muitas vezes a constrangia.
E, ali em Paris, ele arrumara Lascard para substituí-lo.
Ela decidira ir para a França justamente para se afastar um pouco do pai, para acostumá-lo com a idéia de que a filha crescera, ansiava por liberdade e por uma vida independente.
Não que Nando a cerceasse, proibindo-a de fazer o que bem entendesse e quando quisesse.
Mas, ele tomava conta demais, se preocupava demais e com essa atitude, acabava por limitar a liberdade da filha.
A prova disso Beatriz teve pela milésima vez, assim que chegou ao apartamento: o telefone tocou, mal ela fechara a porta.
Não era nem mesmo preciso perguntar quem a chamava...
— Fez boa viagem, filha? — perguntou a voz ansiosa de Nando Albuquerque.
— Sim, pai — respondeu Beatriz — A viagem foi ótima, Lascard veio me receber no aeroporto e você já pode imaginar que apanhei meu carro novo, adorei, já cheguei ao apartamento e não estou precisando de nada a não ser de um bom banho e de algumas horas de repouso para me adaptar ao novo fuso horário.
Nando riu.
— Você é engraçada... — falou ele, sem conseguir esconder um certo tom de queixa na voz — Já respondeu por antecipação a todas as perguntas que eu ia fazer!
— Não precisa se preocupar comigo, papai — pediu Beatriz — Estarei bem, aqui em Paris, estarei fazendo algo que sempre quis e...
— E...? — fez Nando.
— E talvez arrume um bom casamento...
— Nem pense nisso! — exclamou Nando — Quero conhecer o homem a quem entregarei a minha filha! Nem pense em se casar por aí, sem que eu esteja do seu lado!
Foi a vez de Beatriz estourar em uma gargalhada.
— Não pretendo fazer isso, papai — garantiu ela — Vou avisá-lo quando chegar a hora. Mas ainda vai demorar. Antes preciso conhecer o homem que será o meu marido.
Despediram-se, Beatriz foi obrigada a jurar que estava realmente muito bem, que de fato não estava precisando de nada e que jamais pensaria em se unir a quem quer que fosse sem a autorização e consentimento do pai.
— Realmente... — pensou ela, dirigindo-se para o banheiro e ligando as torneiras para encher a hidromassagem — Preciso fazer alguma coisa para me libertar dessa tutela! Já estou com vinte e três anos e papai continua a me tratar como se eu fosse uma menininha inocente e completamente indefesa!
Contudo, em seu íntimo, Beatriz sabia que era dona de uma boa parte da culpa.















DOIS




Desde sempre fora perdidamente apaixonada pelo pai. Achava-o o máximo, o príncipe encantado que um dia gostaria de ter como marido.
Esse comportamento fazia, evidentemente, que estivesse sempre muito próxima de Nando, chegando a imitá-lo em muitos gestos e até mesmo na maneira de falar. O pai, por sua vez, se encantava com isso, achava-se lisonjeado, honrado, elevado às alturas e, como uma espécie de pagamento, não deixava de satisfazer a menor vontade de Beatriz.
Obviamente, tudo tinha seu preço.
A dedicação e carinho de Beatriz para com o pai, tinha a recompensa dos presentes, das férias maravilhosas... E esses presentes, as vontades satisfeitas, os mínimos desejos de Beatriz transformados em realidade, tinham como cobrança por parte de Nando, a aceitação da superproteção que ele dava à menina.
Até seus dezessete anos, Beatriz achava tudo isso muito bom. Afinal, perto das coleguinhas, ela era a princesinha mimada, tinha de tudo e conseguia do pai o que bem inventasse.
Mas, à medida que o tempo foi passando, Beatriz começou a perceber que todas essas facilidades acabavam por custar excessivamente caro: o preço era, na realidade, a sua privacidade.
Nando não admitia que a filha tomasse qualquer decisão, não a deixava fazer nada sozinha, não permitia que ela tivesse o menor trabalho.
O resultado seria óbvio — Beatriz se transformaria em uma preguiçosa sem a menor iniciativa — se ela não fosse Beatriz Medeiros de Albuquerque, uma moça cheia de vida, cheia de personalidade e dona de um caráter bastante forte.
Rapidamente, descobriu que, se fizesse o corpo mole, jamais chegaria a outra coisa na vida que não fosse uma dondoca de sociedade, casada com um milionário qualquer ou, então...
Acabaria se transformando numa revoltada, em alguém que só conseguiria encontrar novas emoções nas drogas, na promiscuidade, nos esportes perigosos e, nada a impediria, no crime.
E não era isso que ela esperava da própria vida.
Durante os dois anos seguintes, até completar dezenove anos, Beatriz conseguiu que o pai a levasse consigo em todas as viagens internacionais que fazia.
Talvez Nando não tivesse gostado muito da experiência pois a presença de Beatriz impedia-o de fazer muitas coisas a que já estava acostumado em suas viagens solitárias.
Coisas como, por exemplo, a companhia de garotas, de escort girls, que ele até então jamais dispensara e que considerava já como despesas rotineiras de viagem, para efeito de sua contabilidade.
Com Beatriz por perto, Nando não podia levar para a cama, amiguinhas desse tipo...
Assim, depois da nona ou décima viagem, ele achou que seria bem melhor deixar Beatriz viajar sozinha.
Mas...
Sozinha?
Não!
O sozinha dele, queria apenas dizer sem ele.
Ou seja, ela continuaria sozinha mesmo que estivesse acompanhada por uma dama de companhia...
Para quem possui um rio caudaloso de dinheiro, tudo é muito fácil...
Logo, para um homem como Nando Albuquerque, não foi nem um pouco difícil conseguir encontrar duas senhoras que, muito felizes, se dispuseram a acompanhar Beatriz para onde quer que ela inventasse ir.
E assim, menos de um mês depois, Beatriz estava desfilando por Londres, Paris, New York, Buenos Aires e mais uma porção de outras cidades, sempre acompanhada pelas duas babás.
Já era um passo, era uma vitória das mais significativas, para quem até então, mal podia sair de casa sem que o pai ficasse extremamente preocupado e acabasse por mandar em seu encalço um verdadeiro exército de seguranças.
Durante três anos, Beatriz conheceu o mundo acompanhada pelas duas mulheres.
Na realidade, não tinha do que se queixar: elas eram simpáticas, boas companheiras, cultas, carinhosas. De uma certa forma, no princípio, elas agiam exatamente como agiria Nando Albuquerque, realizando todas as fantasias e desejos de Beatriz e impedindo por todas as maneiras, que ela precisasse até mesmo pensar.
Porém, a jovem sempre foi muito inteligente, herdara do pai a esperteza para negociar e a perspicácia na análise da personalidade das pessoas bem como das situações que teria de enfrentar.
Dessa maneira, não foi nem um pouco difícil para ela, descobrir que as duas babás eram fanáticas por... jogos de azar.
Era o que ela precisava.
Arrumou uma viagem para Atlantic City, nos Estados Unidos, levou as duas para um dos muitos cassinos de lá e...
Conseguiu seu primeiro mês de liberdade absoluta.
Com uma mochila às costas, Beatriz atravessou os Estados Unidos, conheceu pessoas, viveu situações, apresentou-se ao mundo e à vida.

*******

Depois de ter deixado as duas velhas em Atlantic City, terrivelmente preocupadas em jogar da melhor e mais rentável maneira que pudessem, os dez mil dólares que Beatriz lhes deixara, a jovem tomou um ônibus com destino a New Orleans.
Amante dos blues e do jazz, Beatriz ansiava por conhecer a cidade que é considerada em todo o mundo como o berço da autêntica música popular norte-americana.
Assim, com o coração batendo mais depressa e cheia de entusiasmo, Beatriz chegou a New Orleans, a Rainha do Delta do Mississipi e que, não por acaso, é a terra dos ciganos cajuns, os ciganos do Mississipi, uma tribo já praticamente em extinção, que se dedicava, na época em que a Louisiania era possessão francesa, a piratear e saquear os navios que surgiam no Golfo do México e as barcaças que subiam o Mississipi em direção a Saint Louis.
Ora...
Beatriz já escutara falar a respeito dos cajuns, ouvira dizer que eles dominavam algumas artes mágicas e faziam predições as mais mirabolantes e por isso, era mais do que evidente que, depois de percorrer as mais famosas casas de música, depois de ouvir e ver ao vivo as diversas jazz bands da cidade, Beatriz quisesse conhecer esses ciganos e constatar, de perto, os prodígios que deles contavam, em matéria de misticismo, mágica e esoterismo.
Havia, porém, um problema: Beatriz não tinha a menor idéia de como fazer para chegar em segurança até eles.
No hotel em que estava hospedada, disseram-lhe que visitar os cajuns até poderia ser interessante, mas com certeza seria uma empreitada bastante perigosa, tendo em vista que eles eram pessoas consideradas marginalizadas, pessoas que não levavam muito em consideração as leis dos cidadãos comuns e que, por serem violentos, quase selvagens, e viverem permanentemente confinados em seus domínios — justamente os piores lugares de New Orleans — não havia muito interesse das autoridades municipais e estaduais, de efetuar qualquer tipo de diligência em seu território a menos que se tratasse de um caso extremamente grave e cuja repercussão pudesse por em risco a carreira dos próprios responsáveis pelo policiamento.
Em resumo: ninguém, nem mesmo a polícia, queria se meter com os cajuns.
Mas...
Beatriz era teimosa.
Juntamente com a esperteza nos negócios e a rapidez de raciocínio, ela herdara de Nando a teimosia e a perseverança.
A partir do momento em que punha uma idéia na cabeça, que caísse o mundo, mas ela jamais mudaria de opinião ou desistiria de um projeto!
Dessa maneira, mesmo avisada de que não deveria se aventurar em território cajun sem a companhia de um guia que fosse autorizado pelos próprios ciganos, ela tratou de se informar como chegar até eles e como deveria se comportar para evitar incidentes desagradáveis.
Depois de dois dias de fazer perguntas e de buscar informações, decepcionada, ela concluiu que jamais estaria preparada para enfrentar os famosos e temíveis cajuns.
Era frustrante e até mesmo humilhante ser obrigada a reconhecer essa impossibilidade, mas os riscos pareciam ser mesmo muito grandes.
— Tome cuidado, menina! — recomendou uma das arrumadeiras do hotel, a quem Beatriz tinha feito algumas perguntas — Você é moça bonita... Os cajuns são terríveis! Se despertar a paixão de um cigano, ele não sossegará enquanto não a levar para cima de uma pele de búfalo, em sua tenda!
Bem...
Não fazia parte dos planos de Beatriz ter a sua primeira noite sobre uma pele de búfalo e, muito menos com um cigano...
Afinal, o que diria Nando?!
Naquela noite, aborrecida consigo mesma por ter constatado que, para um momento como o que estava vivendo, bem seria útil a presença e apoio do pai, Beatriz desceu para o restaurante do hotel depois de já ter tomado quase meia garrafa de um excelente vinho californiano em seu apartamento.
Um pouco mais alegre — melhor dizendo, um pouco menos triste — ela sentou a uma das mesinhas externas do restaurante e, quando o garçom se aproximou, pediu-lhe que preparasse uma dose de uísque com gelo e água.
— Creio que não morrerei, se um dia na vida amarrar uma bela bebedeira... — falou para si mesma, recostando-se na cadeira.
Fechou os olhos tentando ouvir com toda sua alma, a banda de jazz que naquele instante começava a executar, o piston como sempre fazendo a voz principal, What a wonderfull world.
Foi quando voltou a abrir os olhos, que notou aquele rapaz sentado diante de si, em silêncio, com um meio sorriso em seu rosto, fixando-a com o olhar.

*******

Beatriz ficou encabulada, sentiu o sangue afluir ao seu rosto e, esboçando um sorriso sem jeito, disse, em inglês:
— Você me assustou... Não o ouvi chegar...
— Desculpe — disse ele, levantando-se e estendendo-lhe a mão — Não era minha intenção... Mas é que não pude resistir. Estou há seis meses aqui nos Estados Unidos e nunca vi uma mulher tão bonita!
Apertando a mão de Beatriz, ele juntou:
— Permita que me apresente... Meu nome é Pierre Bertrand, estou fazendo uma pesquisa sobre os recursos naturais do Delta do Mississipi para a Universidade de Sorbonne.
Beatriz sorriu, apresentou-se e explicou que estava em New Orleans de férias.
— Notei uma certa tristeza em seu olhar, agora há pouco — falou Pierre — Se é algo em que eu possa ajudar...
A moça sorriu, tomou um gole da bebida que o garçom lhe servira e, depois de alguns segundos, disse:
— Realmente... Eu estava um pouco aborrecida.
Olhou para Pierre e, em um sopro, explicou:
— Não estou acostumada a deixar de conseguir as coisas que desejo. E hoje passei por essa experiência. Posso garantir que é horrível!
Pierre continuou calado e Beatriz, vendo que ele não se manifestava, prosseguiu:
— Sei que está completamente errado eu me aborrecer por causa disso. Sei muito bem que, para se forjar uma vida, é preciso inclusive passar por algumas dificuldades, é preciso sofrer algumas derrotas.
Sorriu novamente e completou:
— Mas eu não achei graça nenhuma, pode acreditar. E não gostei nem um pouco de mim mesma quando percebi que estava precisando justamente daquilo que estou evitando ao máximo: o apoio de meu pai.
— Brigou com sua família? — quis saber Pierre.
— Não — respondeu prontamente Beatriz — Não se trata disso...
E, de repente, sem conseguir explicar por quê, ela começou a falar.
Quase sem nem mesmo fazer uma pausa para respirar, Beatriz contou para Pierre a sua vida, a tutela semi-obsessiva de seu pai, o desejo que tinha de ser definitivamente independente e de poder decidir sobre seu destino, sobre suas idéias, sobre sua vida, enfim.
— O que mais me irritou hoje, foi sentir de repente a necessidade de ter meu pai por perto para poder ir visitar esses cajuns — confessou ela.
Pierre sorriu e, tomando um gole do uísque que tinha pedido ao garçom, disse:
— De qualquer maneira, Beatriz... Seria mesmo perigoso você ir até lá sozinha. Todos sabem que os cajuns, como todos os ciganos, têm muito de selvagens. Para eles, não há limites dogmáticos e os instintos ainda são os principais e mais importantes parâmetros que utilizam para balizar o próprio comportamento. Basta querer e eles tentam tudo para atingir seus objetivos. Uma moça bonita e desejável como é o seu caso, caminhando pela margem esquerda do Tetche River, com certeza será vista como uma provocação evidente a esses instintos semi-selvagens. Não poderia se espantar se um cajun a agarrasse diante de todos e a levasse para a sua tenda.
Beatriz refletiu alguns instantes, tomou um gole de uísque e ponderou:
— Se é assim como você está dizendo, eu precisaria contar com o apoio de um batalhão de soldados... Estar acompanhada por um homem, seja ele quem for, de nada adiantaria!
— Não é verdade — replicou Pierre — Da mesma maneira que eles são ousados e até mesmo atrevidos, os cajuns levam muito em consideração o sentido da união entre um homem e uma mulher. Em resumo, eles levam a sério o matrimônio.
Com um sorriso, acrescentou:
— Basta ver quantos crimes passionais acontecem, entre os ciganos! Eles não são capazes de suportar uma traição e, muito menos, de tolerar quando uma mulher cigana é violentada por um cidadão qualquer! Justamente por isso, é que os cajuns, como todos os ciganos, respeitam uma mulher que esteja acompanhada por um homem e, da mesma maneira, respeitam um homem que está acompanhando uma mulher.
— É difícil acreditar — murmurou Beatriz — Se isso for verdade, os cajuns são mais civilizados do que a maioria dos homens do planeta! Não se poderia considerá-los, como você o fez, indivíduos semi-selvagens!
— Nesse ponto, você tem razão — admitiu Pierre — E há outras coisas igualmente interessantes mostrando nos cajuns, um desenvolvimento intelectual por vezes muito maior do que o das outras pessoas.
Vendo a expressão de espanto que Beatriz fazia, Pierre explicou:
— Os cajuns dominam a arte da mágica. E não estou querendo dizer com isso, a arte da prestidigitação. É bem verdade que eles são hábeis com as mãos e são perfeitamente capazes de tirar um anel de seu dedo sem que você veja ou perceba. Mas a mágica a que estou me referindo, é outra... É a magia em sua essência, a verdadeira mágica, aquela ciência que possibilita àqueles que a conhecem, modificar fenômenos da Natureza, utilizá-los a seu bel-prazer e até mesmo criar outros tantos. Para os cajuns, a magia é uma espécie de religião, eles a estudam e praticam, chegando muitas e muitas vezes a tirar dela até mesmo proveitos materiais e situacionais.
— É muito fácil tirar proveitos desse tipo — falou Beatriz com um tom sarcástico na voz — Basta que eles cobrem pelos espetáculos de mágica...
Pierre balançou a cabeça negativamente e replicou:
— Já lhe disse que não se trata de prestidigitação. É mágica mesmo. Clarividência, predições, levitações verdadeiras, telepatia e coisas assim.
Beatriz olhou intrigada para Pierre, tentando adivinhar se ele estava ou não falando a verdade, se estava ou não simplesmente querendo se divertir às suas custas.
— Não acredito que você esteja falando sério — murmurou — Não posso acreditar que um homem como você, culto, técnico, possa aceitar essas histórias fantásticas a respeito da clarividência dos ciganos...!
Muito sério, Pierre falou:
— Pois eu acho que só há um meio de você se convencer que há muito mais coisas estranhas entre o Céu e a Terra do que qualquer sábio possa imaginar.
— Sim? — fez Beatriz, interessada — E qual é essa maneira?
Pierre esvaziou o que lhe restava de uísque no copo e, pondo-se de pé, falou:
— Vamos! Eu vou levá-la até o reduto dos cajuns. Você poderá constatar com seus próprios olhos o que estou dizendo.

*******

A Gallatin Street, o ponto mais movimentado da cidade e o império dos Cajuns, os ciganos do rio, é uma rua comprida, estreita, suja e malcheirosa, que acompanha a margem esquerda do Tetche River, um dos milhares de cursos d’água que formam o Delta do Mississipi.
Quem por acaso se achar habilitado a dizer o que é o Inferno, quem se imaginar capacitado a definir o que seja pecado, ficará envergonhado e cheio dos mais sérios complexos de inferioridade, se passar pela Gallatin Street depois do anoitecer.
O que se puder imaginar em matéria de crimes, roubos e maldades, é simplesmente rotina ali e há quem diga que o próprio Mefistófeles vem, de vez em quando, a esse lugar, para aprender algumas coisas novas, em matéria de maldades.
Ladrões e assassinos trançam livremente de uma casa noturna para outra, prostitutas caminham seminuas pelas calçadas dizendo gracinhas e fazendo convites os mais obscenos possíveis aos que passam e nove entre cada dez homens que por ali perambulam, estão embriagados e têm alguma conta pendente para acertar com a Justiça.
Ambos os lados da rua são ocupados por casebres de madeira, construídos sem a mínima preocupação estético-arquitetônica e sem qualquer noção de urbanismo. As casas não têm o menor alinhamento, as paredes em sua grande maioria, estão fora de esquadro e os telhados mostram aquele aspecto mambembe dos barracos das favelas cariocas.
Com a diferença que ali, cada construção é um bar-boite-prostíbulo...
Não há nenhuma casa residencial, pois os cajuns moram em seus barcos, ancorados e amarrados uns aos outros, ao longo da margem esquerda do Tetche River, formando uma imensa e malcheirosa favela flutuante.
Para qualquer sociólogo, a Gallatin Street reúne o conjunto perfeito de condições para o crime e o pecado.
— Este lugar é assustador... — gemeu Beatriz, segurando instintivamente o braço de Pierre — Assustador e muito feio!
Pierre não retrucou.
Limitou-se a puxar Beatriz para mais perto de si e, depois de alguns momentos, sussurrou-lhe ao ouvido:
— O lugar é realmente feio, Beatriz. Mas veja as pessoas que estão na rua...
Com um sorriso, corrigiu:
— Não estou dizendo para observar as prostitutas, mas sim as outras pessoas.
Beatriz começou a prestar atenção e, sem demora, percebeu que Pierre estava certo.
Tanto os homens quanto as mulheres que estavam transitando por ali, eram belos exemplos da espécie humana: altos, a pele ligeiramente acobreada, os cabelos claros, a expressão do rosto, inteligente e viva.
— São todos descendentes de franceses — explicou Pierre — Vieram para cá quando a França enviou tropas para tentar manter a Lousiania sob seu domínio. Os cajuns logo encontraram aqui o paraíso dos paraísos, pois podiam fazer o que bem entendessem que jamais seriam molestados. A Coroa de Luís XIV apenas cobrava deles a prestação de serviços quando em situação de guerra, ou seja, quando os ingleses decidiam atacar, quando os americanos resolviam se rebelar, ou quando os piratas espanhóis apareciam em suas terríveis incursões, espalhando morte e miséria por onde quer que passassem.
Pierre tomou fôlego e continuou:
— Assim, para os cajuns, tudo ficou muitíssimo fácil. Os franceses não os perturbavam, em primeiro lugar por serem muito numerosos e, em segundo lugar, porque os ciganos do rio representavam uma força aliada muitíssimo importante e pesada em caso de um ataque dos piratas, dos ingleses ou dos próprios rebeldes norte-americanos, os chamados criollos.
Nesse instante, chegaram a um ponto mais escuro da rua onde, na calçada do lado do rio, Beatriz notou o colorido de lâmpadas de neon.
— Vamos entrar ali — falou Pierre.
Beatriz olhou apavorada para o francês e, por um breve instante, pensou em sair correndo rua acima, deixando para trás todas as intenções que ainda tinha de melhor conhecer os cajuns.
— Não tenha medo — disse Pierre, com uma risada — Não há perigo algum! Aqui é, realmente, o pior lugar do mundo... Mas só se você entrar com a pessoa errada.
Atravessaram a rua e, empurrando uma porta de vaivém, entraram numa espécie de saloon à maneira do Velho Oeste, onde meia centena de homens jogavam cartas e bebiam um líquido horrível, apelidado de suco de tarântula, e que era feito com uísque de batatas, tequilla, rum e água, tudo isso misturado com calda de pêssegos e de maçãs.
Provavelmente, se uma pessoa normal, um mortal comum, tomasse um gole daquilo, teria que ir para um hospital cuidar de uma hemorragia digestiva por várias semanas.
— Mas que lugar é este? — perguntou Beatriz, com a voz trêmula.
E, agarrando-se ao braço de Pierre, balbuciou:
— Estou com medo, Pierre... Estou morrendo de medo!
— Pois fique calma — respondeu o francês — Já lhe disse que não há o menor perigo.
Sorriu, segurou o queixo de Beatriz entre o polegar e o indicador da mão direita e perguntou:
— Não era você que estava querendo conhecer melhor os ciganos do rio? Pois agora, está no habitat deles! E aposto como vai aproveitar muito esta noite! Mas muito mesmo...!
Pierre, literalmente empurrando Beatriz para a frente, sentou-se a uma das mesas do salão e, inclinando-se para a frente, disse, ao ouvido da moça:
— Este lugar pode ser horroroso... Mas é aqui que se come o melhor cabrito assado de New Orleans, onde se toma o melhor vinho, onde se escuta as melhores rapsódias e...
Mostrou uma mulher imensamente gorda que estava sentada perto do balcão do bar e completou:
— E teremos a sabedoria de Madeleine... Talvez uma das últimas ciganas do mundo com reais condições de prever o futuro...!

*******

Beatriz estava abismada.
Ela, que já andara por diversos lugares, que já conhecera inúmeros países, não conseguia acreditar que num restaurante como aquele, onde a última preocupação dos proprietários parecia ser justamente a limpeza, se pudesse comer tão bem...
E isso, sem contar com a delícia que era escutar a música cigana que um conjunto de cordas executava ali, num dos cantos do salão!
— Mas é incrível! — exclamou ela, maravilhada — Tenho a impressão que esses músicos andaram fazendo uma pesquisa a respeito de meu gosto musical! Eles estão executando somente peças que eu conheço e que simplesmente adoro!
Pierre sorriu e, entre um pedaço de cabrito e outro, disse:
— Entre os ciganos, tudo é possível, Beatriz. Até mesmo eles adivinharem o que é que você prefere em termos de música!
Beatriz olhou desconfiada para o seu companheiro e, depois de alguns segundos, murmurou:
— Também acho incrível você me dizer essas coisas... Como se realmente acreditasse no que está falando!
Pierre parou de mastigar, fixou os olhos de Beatriz, e perguntou:
— E por que eu não acreditaria?
— Já lhe disse — respondeu a moça — Você é um homem culto, técnico... Exerce uma profissão diretamente ligada à matemática. Não há como vê-lo por um ângulo místico. Simplesmente essa imagem não se coaduna com você.
— Pois você está errada — falou Pierre, servindo vinho para ambos — A minha profissão e a matemática nada têm a ver com certos fenômenos que já presenciei e que somente poderiam ser explicados à luz do misticismo e do esoterismo. A magia dos ciganos é um deles.
Sorriu, tomou um gole de vinho e juntou:
— Posso ser um especialista em administração e economia empresarial. Está certo. Isso é matemática, é algo que está diretamente relacionado à matéria, tanto assim que o objetivo profissional é um maior ganho, um melhor aproveitamento dos recursos de uma empresa, sejam eles materiais ou humanos. Mas minha carreira, minha profissão, minha especialidade, não me impedem de achar extremamente interessante e importante o conhecimento das coisas místicas. Muito pelo contrário, já percebi que a magia interfere diretamente em tudo, inclusive no meu desempenho profissional e os estudos que tenho feito sobre esses assuntos, têm me ajudado bastante. Aprendi, por exemplo, a conhecer melhor as pessoas com quem tenho de lidar. Habituei-me a enfocar os fatos não apenas pelo lado palpável, material, mas também pelo lado espiritual e isso tem me permitido entender muito melhor até mesmo a razão de ser de determinados acontecimentos e de determinadas reações humanas.
Beatriz estava abrindo a boca para contestar, mas Pierre, com um gesto a impediu, dizendo:
— Se considerarmos a mística como um todo, ou seja, como sendo um ramo filosófico que abarca todas as manifestações espirituais do ser humano, poderemos entender melhor o por quê dos acontecimentos e até mesmo, as razões históricas da evolução da humanidade...
— Você está exagerando! — exclamou Beatriz — Não é possível explicar a invenção da lâmpada elétrica, por exemplo, através do misticismo!
— Pois mais uma vez, minha querida... — retrucou Pierre — Você está redondamente enganada!
Instigando Beatriz a tomar mais vinho, o francês prosseguiu:
— Você acha que Thomas Edson simplesmente juntou meia dúzia de elementos físicos e matemáticos, elaborou umas tantas quantas equações e, com isso chegou à lâmpada? Ou acredita que Einstein, com a sua Teoria da Relatividade, apenas fez uma seqüência de deduções?
Encheu mais uma vez os cálices e continuou:
— Houve a interferência de alguma Força Superior. Houve a pré-determinação astral de que aqueles homens, naquelas determinadas datas, iriam descobrir...
— A ciência não pode ser induzida pelo misticismo! — quase gritou Beatriz — Edson e Einstein eram gênios, eram homens com a inteligência privilegiada e, por isso, fizeram tudo o que fizeram!
— Sim... — admitiu Pierre — Mas será que essa inteligência não deve ser considerada como a somatória de muitas outras? Será que a teoria de Lavoisier não deve ser aplicada também ao mundo espiritual?
Antes que Beatriz dissesse alguma coisa, Pierre falou:
— Não se esqueça que a inteligência é apenas a manifestação visível de uma determinada quantidade de energia. E essa energia não pode desaparecer, assim pura e simplesmente, com a morte do indivíduo. Ela, com toda a certeza, deverá ser aproveitada em alguma outra coisa, de alguma outra maneira. Ora... O mais racional, o mais simples, é pensar que essa energia seja transferida para um outro indivíduo. A soma de várias energias desse gênero fazem um gênio...
Beatriz riu.
— Mas é muito primária sua maneira de ver esse tema, Pierre! — exclamou ela — Mais uma vez, não posso acreditar que você esteja falando sério!
Pierre olhou para Beatriz através de seu cálice de vinho e replicou:
— Não se trata de primarismo. E tampouco se trata de uma tentativa de explicar a formação da alma ou do espírito. Creio que eu jamais teria coragem de falar assim a um espírita kardecista... Ele, com toda a razão, acabaria por achar que eu sou um demente, um louco completo, digno de ir para um hospício fazer um tratamento dos mais severos. Porém, até o presente momento, para mim mesmo, não consegui encontrar uma explicação melhor. É uma teoria primária? Talvez seja, não sei e na realidade nem mesmo me interessa saber se estou certo ou errado. De minha parte, não posso admitir que a vida espiritual, ou seja, a inteligência, o espírito, aquilo que nos diferencia dos outros animais da escala zoológica, simplesmente desapareça com a morte física. Por outro lado, se há uma forma energética especial e ainda não explicada pelos conhecimentos científicos de hoje, que represente a alma como ela é entendida pela imensa maioria das pessoas, essa forma energética é que é a responsável pelos inúmeros fenômenos que a própria ciência ainda não consegue entender e muito menos decifrar.
— A parapsicologia... — começou Beatriz.
— A parapsicologia — interrompeu Pierre — tenta trazer para o campo físico certos fenômenos que ocorrem e cuja explicação está além do conhecimento comum atual. Essa história de combustão espontânea, por exemplo... A força inacreditável que as pessoas podem ter num momento de extrema aflição, força esta que supera os limites físicos do arcabouço ósseo e muscular do corpo humano... O poder da mente, capaz de entortar metais e até mesmo de interferir em ondas de transmissão radiofônicas...
Sorriu e, depois de tomar fôlego, disse:
— São fenômenos estranhos, não há dúvida. Estranhos e raros. Tão raros que aqueles que são capazes de executá-los, logo são considerados como milagrosos.
Esvaziou o copo e falou:
— No entanto, são fenômenos passíveis de explicação quando lembramos que apenas utilizamos uma pequeníssima fração de nosso cérebro e que a mente humana ainda é uma caixa de segredos para os cientistas... comuns.
Sorrindo da expressão de surpresa que estava estampada no rosto de Beatriz, Pierre prosseguiu:
— A magia, o misticismo, o esoterismo, nada têm a ver com esses fenômenos que são explicáveis à luz da parapsicologia.
Muito sério, baixando a voz, ele perguntou:
— Ou será que seria mais apropriado dizer à sombra da parapsicologia?
— Você está sendo radical, sectarista e preconceituoso — acusou Beatriz, em tom divertido — Dá a impressão que você é completamente contra a parapsicologia e os parapsicólogos.
— Não diria que sou contra — resmungou Pierre — Acho apenas, que eles não são donos da verdade e tenho certeza que eles jamais conseguiriam explicar os fenômenos verdadeiramente místicos.
Com um tom de escárnio na voz, Pierre disse:
— Os parapsicólogos acham, por exemplo, que a magia cigana não passa de ilusionismo, de prestidigitação e, na melhor das hipóteses, de sugestões hipnóticas e telepatia. No entanto, você verá que as coisas não são assim tão fáceis de explicar...
Com o olhar, mostrou a gorda Madeleine, e arrematou:
— Aposto como você estará pensando de maneira diferente, quando sairmos daqui...

*******

Quando Pierre se referiu — ainda que apenas com o olhar e indiretamente — à cigana, esta estava de costas para o jovem casal e estava prestando atenção à música que o conjunto de cordas estava executando.
Assim, Beatriz não pode evitar uma certa surpresa quando Madeleine, mal Pierre tinha acabado de falar, levantou-se e caminhou para a mesa em que eles estavam.
Parecia, até que ela estava atendendo a um chamado... Beatriz teve a nítida impressão de que ela ouvira alguém pronunciar seu nome e ordenar que se aproximasse dos dois.
Madeleine puxou uma cadeira e, sem nem mesmo um simples cumprimento, falou:
— Você enfrentará problemas, Beatriz Medeiros de Albuquerque... Nos próximos quatro ou cinco anos, você terá que mostrar toda a sua energia e capacidade de trabalho. Terá que assumir o comando de muitos homens e isso acontecerá após uma dor muito funda, após um episódio muito triste.
Beatriz arregalou os olhos.
Em primeiro lugar, por Madeleine ter dito seu nome e sobrenome. Em segundo, por ela ter falado aquelas coisas que, no seu entender, só poderiam significar uma coisa: ela estaria assumindo o lugar de seu pai.
Já ia abrindo a boca para protestar, quando Madeleine pôs a mão sobre seu antebraço e falou:
— Há uma casa em sua vida. Uma casa velha, cheia de problemas... E há uma outra mulher... Uma moça. Sua amiga. E é ela que terá a solução para o problema maior. Um problema que poderá levar a situações muito sérias e muito perigosas.
Os dedos de Madeleine pressionaram ligeiramente o antebraço de Beatriz e a cigana completou:
— Essa amiga aparecerá dentro de pouco tempo. Mas lembre-se que o conceito tempo é muito diferente nas outras dimensões. O que para vocês é uma hora, lá pode ser apenas um infinitésimo de instante! Ou, de repente, um século...
Assim dizendo, Madeleine se levantou e foi embora, o andar firme, as banhas balançando como se fossem gelatina, a cabeça erguida, altiva como uma rainha.
Beatriz ficou olhando para a cigana que se afastava, a cabeça a dar voltas, os pensamentos embaralhados, tentando desesperadamente encontrar uma explicação para o que acabara de acontecer.
Foi arrancada de suas divagações pela voz de Pierre, que lhe perguntava:
— E então? Alguma coisa do que ela lhe disse, faz sentido?
Beatriz olhou para o francês e, depois de alguns momentos e de um grande gole de vinho, respondeu:
— Sim... e não. Não consegui entender como é que ela sabia meu nome, mas...
Forçou um sorriso e continuou:
— Isso poderia ser explicado... Nada pode me garantir que você tenha tramado essa nossa vinda à Gallatin Street. Assim, você poderia ter falado para Madeleine o meu nome, coisa muito fácil de descobrir através do registro do hotel. Porém, você nada sabe a meu respeito... Até agora, não comentei nada sobre minha família a não ser o fato de ter um pai excessivamente possessivo e superprotetor. E esses comentários foram feitos hoje, poucos instantes antes de deixarmos o hotel!
Refletiu um pouco e disse:
— O nome, ela até poderia ter escutado. Mas o sobrenome...
Com um olhar onde Pierre podia ver uma ponta de raiva, Beatriz falou:
— E ela, na realidade, predisse a morte de meu pai! Pelo menos, o seu afastamento da empresa, esse fato me obrigando a assumir o seu lugar. Mesmo levando em consideração que o prazo que ela deu é muito grande e elástico — afinal quatro ou cinco anos é muito tempo, muita coisa pode acontecer nesse intervalo — como é que ela poderia ousar dizer que eu seria obrigada a assumir o lugar de meu pai?
Respirou fundo e juntou:
— E, de fato, há uma casa velha e grande em minha vida. Melhor... Em minha mente. Papai está querendo comprar uma fazenda antiga, uma fazenda que eu adorei. Mas esse negócio está sendo problemático, pois o proprietário é funcionário de papai, um alto funcionário, e não está querendo se desfazer da propriedade.
Pierre sorriu e perguntou:
— E quanto a essa amiga? O que você tem a me dizer?
— Nada... Não sou de fazer amigas com muita facilidade, sou muito tímida para isso. E, se pensarmos em uma antiga amiga que aparecerá por aqui dentro de pouco tempo, sou obrigada a dizer que isso é absolutamente impossível. Não falei para ninguém onde estou. Até mesmo para papai, eu estou em New York com minhas duas...babás!

*******

Nesse instante, Madeleine surgiu ao lado de Beatriz como se aparecesse do nada, segurando dois pequenos cálices com uma bebida esverdeada.
— Tomem — disse a cigana — Este licor é chamado de Liqueur d’amour. É algo que os enamorados precisam tomar para terem mais certeza das coisas...
Ora...
Beatriz já ouvira muitas pessoas falarem a respeito dos ciganos, dos raptos que praticavam, principalmente em se tratando de moças ingênuas que, por qualquer razão, acabavam se deixando apanhar em armadilhas.
E era algo que poderia estar acontecendo naquele exato momento.
Aquele licor, de aspecto inocente, poderia ser um poderoso narcótico e, depois que ela o tomasse, só iria despertar a muitos quilômetros dali, já sendo encaminhada para o mercado de escravas brancas.
Ou então, uma vez entorpecida, ela seria violentada por uma dúzia de ciganos semi-selvagens que depois até mesmo a matariam para que jamais pudesse acusá-los.
A moça vacilou.
Por um breve instante, sentiu vontade de dizer que ela não tinha nada que tomar o tal licor, não podia confiar em ninguém e além do mais, não estava enamorada por ninguém...
Porém, o olhar de Madeleine e o sorriso que estava estampado em seu rosto, de repente a intimidaram e ela sentiu que precisava tomar aquilo.
Olhou para Pierre, viu que ele também tomava o licor e, de um só gole, esvaziou seu cálice.
Imediatamente, Beatriz começou a sentir o espírito leve como se estivesse flutuando num sonho, num mundo de sensações deliciosas.
Sorriu.
Pareceu-lhe, de repente, que tudo ao seu redor era lindo e que Pierre...
Ah, Pierre!
Pierre não estava ali havia apenas algumas horas!
Pierre já habitava sua alma havia muito tempo!
Muitas vidas, talvez...!
Estendeu as mãos para o rapaz e, estranhando a própria voz, falou:
— Estou feliz, Pierre... Pode parecer incrível, pode ser uma loucura completa... Mas estou imensamente feliz!



TRÊS




Beatriz acabou de arrumar suas roupas no armário, deu uma olhada na cozinha e sorriu ao ver que o supermercado já tinha sido feito, que tudo estava em ordem e que, de fato, ela não estava precisando de absolutamente nada.
— É... — pensou, enquanto enchia um copo de leite gelado — O serviço de assessoria de papai, funciona mesmo! Esse tal de Lascard, é de fato muito eficiente! Preciso me lembrar de elogiá-lo e de agradecer todos esses cuidados para comigo...
E, com uma risada, murmurou:
— Imagino em que inferno papai transformou a vida do pobre Lascard durante os dias que antecederam a minha chegada! O coitado deve ter cortado um doze...! Agüentar o nervosismo de papai quando há alguma coisa que me diz respeito, é terrível!
Tomando o leite e caminhando pelo apartamento, vistoriando tudo mais uma vez, Beatriz podia ouvir a voz do pai, através do telefone, ordenando a Lascard que cuidasse de tudo, que não deixasse faltar nada para a sua filhinha, dizendo do que ela gostava e o que sua princesinha detestava...
— E não se esqueça que ela não pode usar shampoos e sabonetes que não sejam neutros! E ela gosta de flocos de milho sabor mel, no café da manhã! E o travesseiro... Não pode ser de outra coisa a não ser plumas sintéticas! Dois travesseiros, entendeu, Lascard?
E, de fato...
Ali estava uma autêntica coleção de shampoos neutros, quatro caixas de flocos de milho sabor mel — e americanos, os franceses não sabem fazer flocos de milho do jeito que a minha filha gosta — e nada menos que quatro travesseiros de plumas sintéticas, enormes, macios, deliciosos...
E sem contar a formidável provisão de tudo quanto Beatriz gostava, desde caixas de biscoitos ingleses até envelopes de frios fatiados, queijos, doces, bombons, bebidas...
Estava tudo perfeitamente equipado e aprovisionado.
— Pode estourar uma guerra e Paris ficar sitiado por um ano... — falou, em voz alta — Não corro o menor risco de passar fome!
Beatriz suspirou.
— Preciso dar um jeito de fazer papai entender que não está certo agir assim — murmurou — Ele tem de me deixar tomar iniciativas, é necessário que eu consiga solucionar meus problemas! Se ele continuar assim, eu jamais crescerei, jamais progredirei na vida!
Não pode deixar de achar graça em seus próprios pensamentos.
Na realidade, o que Nando fazia pela filha e ela estava achando ruim, era nada mais e nada menos que realizar o sonho de vida da imensa maioria das moças de sua idade.
— Pode ser — disse Beatriz para si mesma — Mas por mais inacreditável que possa parecer, meu sonho é exatamente o oposto... Quero poder agir por conta própria. Quero errar, acertar, arriscar, ganhar, perder... Não posso permitir que meu pai passe o resto da vida dando-me comida na boca!
Inegavelmente, era muito bom se saber apoiada, sentir que, apesar dos dez mil quilômetros que a separavam de seu pai, ela não estava sozinha e, com toda a certeza, jamais estaria desamparada.
Jamais?
Bem...
Talvez um dia...
E, como se uma fotografia surgisse diante de seus olhos, ela se lembrou de Madeleine, da velha e gorda cigana de New Orleans, dizendo-lhe que ela enfrentaria problemas, que ela teria que comandar uma porção de homens...
Situação que só poderia acontecer na falta de Nando, se lhe ocorresse alguma coisa muito grave.
Sentiu um arrepio a lhe percorrer o corpo e, sacudindo energicamente a cabeça, como se isso pudesse afastar de si todo e qualquer mau pensamento, ela começou a se despir para tomar banho.
— Não... — pensou, enquanto tirava o sutiã, deixando livres os belos seios — Não vai acontecer... Madeleine estava redondamente enganada. Já faz tanto tempo! Mais de três anos! E nada aconteceu...!
Entrando na banheira, falou:
— Nem mesmo a tal amiga que ela disse que apareceria... Não aconteceu nada. Não fiz nenhuma amizade nova. Ninguém surgiu que eu pudesse considerar como sendo a pessoa de quem essa cigana me falou! Seja amiga, ou amigo... Não apareceu ninguém e, o que é mais engraçado, tenho a impressão que, durante todo esse tempo, eu mesma não fiz nenhum esforço em ampliar o meu rol de amizades!
Espichou-se na grande banheira de hidromassagem e, sentindo a água acariciar-lhe o corpo, murmurou:
— E aquele tal Liqueur d’amour... Era apenas uma bebida forte e doce. Nada de diferente ou de mágico, como Pierre afirmou!
Pierre!
A lembrança do rapaz chicoteou-lhe a alma, fez com que um gosto amargo lhe surgisse na boca e uma ponta de tristeza lhe embaçasse o olhar.
Pierre!
No fundo, um imenso canalha, um hipócrita desavergonhado!
Mas...
Ele tinha uma maneira tão envolvente, tão convincente...
Sem dúvida nenhuma, Beatriz estivera bastante atraída por Pierre.
Um pouco mais e ela teria cometido uma loucura.
Bem que ela teria gostado, mas...


QUATRO




Quando Beatriz e Pierre voltaram para o hotel, ela ainda bastante alegre devido à formidável quantidade de vinho ingerida e mais o licor que Madeleine lhes servira, já passava muito de meia-noite e entre os dois jovens reinava uma atmosfera de intimidade até mesmo surpreendente para um primeiro encontro, encontro esse que tinha sido cerimonioso até o momento em que Beatriz e Pierre tomaram o Liqueur d’amour.
Mas, era normal...
Afinal de contas, dois jovens saudáveis, alegres, cheios de ideais e de esperanças, imbuídos da idéia que tinham tomado um filtro mágico de amor, não poderiam deixar de sentir uma forte e intensa atração um pelo outro.
Assim, ainda na Gallatin Street, enquanto ouviam o conjunto cigano executando blues e rapsódias que imaginavam terem sido criadas e compostas apenas para eles, trocaram-se beijos e carícias, falaram-se mutuamente aquelas palavras que soam tão bem nos ouvidos de quem acha que está amando...
E Pierre...
Bem...
Pierre foi mais ousado.
Já no táxi, a caminho do hotel, ele acariciou as pernas de Beatriz, insinuou suas mãos por sob sua blusa, por debaixo da saia que ela estava usando, sentiu suas formas, seu calor...
E que calor!
Que temperatura!
Que promessas de prazer havia ali!
Beatriz, excitada, animada com tudo aquilo, sentindo entrar em erupção o seu vulcão interior, não fugiu.
Muito pelo contrário, retribuiu as carícias, beijou ainda mais intensa e ardentemente os lábios de Pierre, suspirou, gemeu...
Deixou que o instinto lhe guiasse as mãos para que pudesse sentir com mais detalhes e mais paixão o homem que estava ao seu lado.
Extasiou-se...
E Pierre sorriu consigo mesmo, feliz da vida, antegozando as delícias da noite que passaria ao lado de uma mulher tão bonita e tão quente.
Seria uma grande noite, disso ele não tinha a menor dúvida.
Porém...
Uma vez no hotel, já no corredor de seu apartamento, Beatriz se sentiu esfriar.
Para ela foi uma surpresa desagradável e uma terrível frustração, quando percebeu que toda a empolgação de minutos atrás, se diluía, se derretia e...
Parecia que era um sonho de fumaça que se desmanchava e, ainda por alguns instantes, durante alguns beijos, a moça lutou contra aquela apatia que estava lhe estragando completamente uma noite que começara tão bem.
Mas foi em vão.
Parecia uma chama que tivesse se apagado.
Subitamente, a única coisa que Beatriz desejava era estar sozinha, era poder refletir em tudo o que acontecera naquela noite e principalmente, avaliar o tipo de relação que estava começando a surgir entre ela e Pierre.
— Boa noite, Pierre — murmurou ela, à porta do quarto — E muito obrigada pela noite, pela oportunidade que você me deu de conhecer os cajuns.
Pierre olhou surpreso para Beatriz, puxou-a para si e perguntou:
— Boa-noite? Mas como assim, boa-noite? Ainda nem sequer começamos!
Beatriz fitou-o intensamente e, depois de alguns segundos, falou:
— Sinto muito, Pierre... Mas, se você pensou que poderíamos...
Antes que o rapaz pudesse dizer qualquer coisa, antes que ele pudesse protestar, Beatriz beijou-o no rosto e completou:
— Desculpe, Pierre... Mas eu não sou assim como está imaginando. Desculpe decepcioná-lo. Boa-noite!
Assim dizendo, Beatriz entrou em seu apartamento e fechou a porta, deixando Pierre do lado de fora, furioso e frustrado.
— Mas esta é muito boa! — pensou o rapaz, afastando-se e pisando duro — Justamente quando imaginei que tudo estava indo bem, exatamente agora, que já estava até contando com uma das melhores noites de minha vida...!
Entrando em seu quarto, dois andares abaixo, ele se lembrou do que Madeleine dissera:
— Este licor é chamado de Liqueur d’amour... É algo que os enamorados precisam tomar para terem mais certeza das coisas...
Com um suspiro, ele disse, para si mesmo:
— Então é isso! A certeza... É apenas isso que Beatriz ainda não tem!
Sorriu, um raio de esperança iluminando seu horizonte particular e, espichando-se sobre a cama, falou:
— Há tempo... Como a própria Madeleine disse, a dimensão Tempo é muito diferente quando se trata das coisas espirituais...!

*******

Enquanto Pierre adormecia, os pensamentos voltados para as curvas sensuais de Beatriz e os sonhos dirigidos para os momentos de delícias que haveria de viver com ela num futuro muito próximo, a moça estava de olhos abertos, pregados no teto do quarto, tentando por todos os meios encontrar uma explicação para o que acontecera naqueles últimos instantes.
Pierre a agradava, isso era inegável.
Era claro que a atraía!
O que a teria feito recusar uma... aproximação maior? Uma intimidade mais... gostosa?
Não...
Não fora qualquer espécie de preconceito, de pudicismo retrógrado.
Muito menos qualquer peso de consciência.
Afinal, ela se considerava uma moça moderna, bem informada, muitíssimo bem preparada do ponto de vista de educação sexual, estava consciente do que queria e tinha uma boa noção dos caminhos que deveria trilhar para atingir seus objetivos.
Ora!
Já não estava começando a fazer isso?
Já não tinha decidido deixar de lado suas babás e correr os Estados Unidos sozinha?
Pronta e disposta a qualquer coisa que pudesse acontecer?
De mais a mais, ela já era maior de idade, poderia fazer o que bem entendesse!
E seu pai...
Ora!
O que é que ele poderia falar, uma vez que vivia andando com garotas que poderiam muito bem ser suas filhas?
E Nando Albuquerque não fazia questão nenhuma de disfarçar, de esconder...
Nem mesmo dela, sua filha!
Quantas vezes ele não lhe pedira que fizesse companhia a uma de suas namoradinhas e Beatriz descobrira, decepcionada, que a moça era completamente vazia de intelecto, muito mais despreparada para a vida do que ela?
Seu pai jamais poderia dizer o que quer que fosse!
E Beatriz estava consciente que a melhor maneira de se libertar, de conquistar sua independência pelo menos psíquica, seria exatamente ter um caso com um rapaz e, logo em seguida, contar para seu pai.
Ela passaria, da noite para o dia, a ser enfocada como uma mulher e não mais como uma menininha!
E Pierre parecia ser a pessoa perfeita...
Contudo...
Havia algo...
Acontecera alguma coisa que a impedira de ir adiante, que não a deixara avançar o sinal.
Subconscientemente, Beatriz estava relacionando essa sua recusa, às palavras de Madeleine quando a cigana a fizera tomar o tal licor.
Sim, a resposta certamente estava ali.
— Certeza... Não tenho certeza de nada... — pensou ela — Para qualquer coisa mais séria com Pierre, preciso ao menos ter certeza de meus sentimentos em relação a ele. E em relação a mim mesma!
Mas, como faria para adquirir essa certeza?
Teria coragem de procurar Pierre, no dia seguinte?
E se ele, ofendido e aborrecido com o seu comportamento daquela noite, nunca mais quisesse vê-la?
— Não... — murmurou — Pierre não reagiria de uma forma tão pouco cavalheiresca! Um homem evoluído e sensível como ele...
Voltou a recordar os acontecimentos da noite.
Tudo tinha sido muito impressionante!
Para começar, aquele conjunto de cordas cujo maestro parecia adivinhar seus pensamentos: bastava que Beatriz pensasse numa determinada melodia e logo o conjunto a estava executando, exatamente como ela imaginara.
E Madeleine...!
Como aquela cigana a impressionara!
Beatriz podia sentir a sua força de caráter, a sua personalidade e, o que era mais marcante, havia nela uma aura de extrema bondade que de maneira nenhuma condizia com seu aspecto físico.
Sim, pois Madeleine poderia parecer, antes de qualquer coisa, uma prostituta aposentada, já sem fregueses, e que encontrara como meio de sobrevivência, ficar andando de mesa em mesa, fazendo predições, simulando sessões de quiromancia.
Porém...
Madeleine apenas lhe tocara o braço!
E dissera tanta coisa que coincidia...
— Não pode ter sido coincidência e, por mais que eu queira explicar assim, não pode ter havido uma combinação por parte de Pierre! — pensou a jovem, os olhos começando a fechar, as pálpebras pesadas de sono.
Adormeceu com os pensamentos voltados para o pai, lembrando-se angustiadamente do que a cigana dissera e com a impressão de que, mesmo durante o sonho, Madeleine estava lhe dizendo para se preparar melhor para a vida, pois teria de usar, dentro de pouco tempo, todas as suas energias para comandar um verdadeiro batalhão de crápulas...









CINCO




Beatriz ouviu um barulho longínquo, estridente, que suplantava o som borbulhante da hidromassagem e que, por ser diferente, conseguiu tirá-la do delicioso torpor em que se encontrava.
Ainda sonolenta, como se estivesse fora de sintonia com o mundo, a jovem teve um pouco de dificuldade para compreender que aquilo que estava escutando nada mais era senão a campainha do telefone soando dentro de seu quarto.
Levantou-se, saiu pingando da banheira, atrapalhou-se com a toalha e com o botão de desligar a hidromassagem...
Por fim, já completamente desperta, conseguiu chegar ao telefone, mas...
O telefone parara de tocar: quem a estava chamando, acabara por desistir.
Beatriz voltou para o banheiro, passou sob o chuveiro, pois não tinha se lavado, apenas tinha se relaxado dentro da água e, só então tomou consciência de que estava cansada e de que a diferença de fuso horário, de fato, estava interferindo bastante em sua disposição.
Além disso, estava com um pouco de fome, a comida no avião, apesar de ter voado na Primeira Classe, não a satisfizera.
— Se não estivesse me sentindo tão cansada, iria a um restaurante comer alguma coisa — murmurou, enquanto se enxugava.
Lembrou-se que tinha de tudo em casa, Lascard tinha se preocupado em cumprir à risca as ordens de seu patrão.
— Não precisarei sair — disse Beatriz, para si mesma, já enrolada na toalha e caminhando para a cozinha — Um bom sanduíche será o suficiente...
Estava escolhendo, dentro da geladeira, o tipo de patê que usaria no sanduíche, quando o telefone tocou novamente.
Desta vez, Beatriz teve tempo de atender e, quando escutou a voz que lhe falava do outro lado da linha, chegou a levar um choque.
— Beatriz? — ouviu — Desculpe se a acordei... Mas é que a saudade estava grande demais...
— Pierre! — exclamou a moça, sem conseguir esconder a surpresa e a alegria — Como me descobriu aqui?
Pierre riu e, depois de um pequeno silêncio, respondeu:
— Se eu contar, provavelmente você não acreditará. Mas já faz uma semana que eu sei de sua chegada.
— Isso não é possível! — protestou Beatriz — Há uma semana atrás, eu mesma nem sequer sabia que viria para Paris!
— Pode ser... — falou Pierre — Talvez você mesma não soubesse. Mas eu sabia.
Os dois ficaram alguns momentos em silêncio, parecia que, depois de todos aqueles meses, não tinham mais muita coisa a se dizer.
Por fim, Pierre perguntou:
— Está muito cansada?
Beatriz entendeu imediatamente a intenção velada daquela pergunta.
Pierre queria se reencontrar com ela...
Mas...
E ela?
Depois de tanto tempo, depois de toda a decepção que tivera em New Orleans, será que Beatriz ainda desejava esse reencontro?
Não seria, por acaso, uma maneira de reavivar antigas feridas que, àquela altura, já estavam quase cicatrizadas?
Ou seria apenas uma questão de teimosia, de poder rever Pierre unicamente para poder desprezá-lo, para poder dizer-lhe na cara tudo quanto deixara de falar quando o vira pela última vez?
E ali estava ele, ao telefone, convidando-a para sair, com a ingenuidade e a candura que tão bem caracterizam os grandes malandros.
Sim...
Um malandro e canalha, era essa a melhor definição que Beatriz encontrava para o rapaz.
Contudo...
Bem que Beatriz teria gostado de dizer que estava exausta, que estava ainda sentindo os efeitos da viagem.
Mas, foi mais forte do que a sua própria vontade.
Quase que assustada consigo mesma, como se fosse outra pessoa que estivesse falando, Beatriz respondeu:
— Não... Não estou cansada...
Pierre não perdeu tempo e, com a voz cheia de animação, falou:
— Ótimo! Nesse caso, dentro de quinze minutos estarei aí. Faço questão de lhe oferecer o jantar de boas-vindas a Paris!
Beatriz, mais uma vez, queria ter falado que não, que não tinha a menor vontade de jantar, que apenas queria dormir algumas horas para pode entrar, devagar, no ritmo e no espírito da Cidade Luz.
Porém, novamente ela não conseguiu fazer com que sua voz expressasse o seu desejo.
Como se sua boca tivesse vontade própria, independente da de sua dona, ela disse:
— Está bem, Pierre... Estarei esperando.
Desligou o telefone furiosa consigo mesma.
Por que não conseguira falar o que tinha vontade?!
Por que Pierre conseguira fazer, afinal de contas, exatamente o que ele estava querendo fazer?
Beatriz respirou fundo, bufou um pouco e, por fim, ergueu os ombros num sinal de desistência e rendição.
Iria jantar com Pierre...
No mínimo, talvez tivesse oportunidade de dizer para ele aquela porção de coisas que lhe tinha ficado entalada na garganta desde New Orleans...














SEIS




Quando Beatriz acordou, na manhã seguinte à sua visita aos cajuns da Gallatin Street, saiu da cama decidida a conhecer um pouco melhor seu novo amigo, Pierre.
Principalmente, ela queria tentar saber dele quais eram exatamente as suas intenções em relação a ela.
Beatriz estava desconfiada de muita coisa, já estava imaginando que ele e Madeleine tinham tudo combinado de véspera, por mais absurda que essa idéia pudesse parecer.
— Não há outra explicação — disse ela para si mesma, enquanto se vestia para descer — Por mais que ela tenha dito coisas que não teria jamais condições de saber, só pode ter sido uma combinação!
Penteando os cabelos, concluiu:
— E aquele licor... Ela deve ter posto alguma droga no meu cálice! Eu jamais teria reagido da maneira como reagi ao assédio de Pierre! Afinal de contas... Eu não sou uma qualquer, não sou uma leviana!
Porém, em seu íntimo, Beatriz estava consciente que não tinha sido drogada e que, na realidade, gostara muito dos carinhos e dos beijos de Pierre.
Para desespero seu e a bem da verdade, era muito mais inexplicável ela ter se recusado a ele no momento final, do que o oposto, ou seja, ela ter permitido que a beijasse e a acariciasse de maneira tão... excitante.
Bem...
De qualquer maneira, ela gostara...
Gostara e retribuíra.
E como toda mulher, percebera nessa retribuição, que Pierre se entusiasmara, se excitara ao extremo.
— Acho que eu não poderia esperar uma outra reação de sua parte — murmurou, já a caminho do elevador — Depois de todos aqueles beijos ardentes, depois de tanto desejo... O que eu poderia querer?! Era de imaginar que Pierre quisesse me levar para a cama!
Enquanto descia para o breakfast, não pode deixar de se perguntar se, na eventualidade de tudo acontecer de novo, ela afinal consentiria em se deitar com ele.
— E o que é que teria de mais? — pensou — Será possível que eu não tenha o direito de sentir prazer?
Ora...
Direito ao prazer, Beatriz estava cansada de saber que tinha. O problema era saber se ela mesma estava querendo usufruir desse direito, se estava preparada para esse tipo de prazer.
Sim...
Talvez estivesse aí o grande problema! Beatriz não sabia se estava suficientemente madura para o sexo, para o amor carnal, para a escalada máxima do prazer mundano...
Deitar-se com um homem...!
Deitar-se com Pierre!
Fechou os olhos, procurando varrer para longe de sua mente a imagem que acabara de se formar.
Era um quadro, como uma cena de um filme americano, em que ela, nua, abraçava voluptuosamente Pierre, também nu, dentro de uma banheira de hidromassagem...
— Não... — murmurou — Não posso pensar nessas coisas... Não posso!
Mas, apesar do esforço, Beatriz sentiu aquela mesma comichão deliciosa que a tomara na véspera, enquanto Pierre a beijava e a acariciava. Uma comichão que provocava um calor intenso e uma sensação de desprendimento e entrega.
— Creio que é isso que uma mulher sente quando está com muita vontade... — pensou, imediatamente percebendo que ficava corada, as mãos suadas, o corpo trêmulo e com a respiração mais rápida.
Chegou ao salão de refeições e, sem a menor dificuldade, descobriu Pierre Bertrand sentado a uma mesa do fundo.

*******

Pierre virou o rosto na direção de Beatriz e sorriu, ao mesmo tempo em que se levantava para recepcioná-la.
— Pensei que não fosse aparecer — disse ele, com expressão ansiosa — Estava com medo de tê-la magoado...
— Você não me magoou — retrucou a moça, sentando-se — Eu, sim... Creio que o decepcionei, não é mesmo?
— Jamais! — protestou Pierre.
Serviu café para Beatriz e passou geléia num croissant, entregando-o para a jovem.
— Fui ingênuo — admitiu Pierre — Imaginei que...
— Por favor... — pediu Beatriz, angustiada — Não fale! Prefiro, sinceramente, não saber o que foi que você imaginou a meu respeito!
Pierre ia abrindo a boca para dizer alguma coisa, mas Beatriz, pousando o dedo indicador sobre seus lábios, impediu-o de falar.
— Nós precisamos nos conhecer melhor — murmurou ela — E não é à base da imaginação que o conseguiremos!
Pierre fez um sinal afirmativo com a cabeça e, durante quase cinco minutos, os dois comeram em silêncio, sem se olhar mutuamente, como se ambos estivessem encabulados, pouco à vontade um com o outro.
Foi Pierre que falou em primeiro lugar:
— Sei que você está achando que eu combinei tudo com Madeleine. Sei que está sendo muito difícil acreditar que tudo aquilo aconteceu assim, naturalmente, sem nenhum planejamento.
Beatriz franziu as sobrancelhas e perguntou:
— Como pode afirmar isso? Como pode adivinhar meus pensamentos dessa maneira?
— Não se trata de adivinhação — garantiu Pierre — Isto sim, é pura dedução lógica.
Olhou intensamente para Beatriz e acrescentou:
— Tanto quanto foi uma dedução lógica, eu achar que poderia passar a noite com você...
— Dedução lógica? — espantou-se Beatriz — Mas o que o fez chegar a essa conclusão?
— Que conclusão? — perguntou Pierre, com expressão angelical.
— Ora! — exclamou Beatriz, sem conseguir controlar a irritação — A de que você poderia me levar para a cama!
Pierre ergueu os ombros como quem pede desculpas e respondeu:
— Você sabe a resposta... Já pensou nela, hoje de manhã...
Beatriz empalideceu.
Trêmula, indagou, em um murmúrio:
— Como sabe? Como pode saber?
E, refazendo-se rapidamente, em voz mais alta, perguntou:
— Ou isso também é uma dedução lógica?
— Não — respondeu Pierre — Isso é adivinhação. Você sabe muito bem que eu não poderia ter tido uma reação diferente. Sabe que seria natural eu imaginar que você iria para a cama comigo depois do que aconteceu, depois de todas aquelas carícias... Somos seres humanos, Beatriz. Frágeis, carentes. Você e eu, como todo o resto da humanidade!
— O que não quer dizer — protestou a moça — que sejamos obrigados a dar vazão aos instintos dessa maneira! Creio que é preciso muito mais para justificar...
Pierre fez um gesto irritado, dizendo-lhe para se calar.
Arregalando os olhos, surpresa com a atitude de rapaz, Beatriz ficou sem qualquer reação.
Fixando o olhar em Beatriz, Pierre disse, com um tom de escárnio na voz:
— Você estará mentindo se me disser que não ficou extremamente excitada...
Beatriz pensou em se levantar, em esbofetear aquele indivíduo que tão descaradamente parecia desnudá-la em seus sentimentos.
Mas, ela sabia que isso seria uma grosseria das maiores e, além disso, se tivesse uma reação violenta, estaria dando margem a Pierre de também reagir de maneira pouco delicada.
Assim, controlando-se, ela falou:
— Você está sendo baixo... Está brincando com o que senti, está mostrando que tinha apenas interesse em se aproveitar de mim!
— Nada disso, minha querida! — exclamou o francês — Eu não me aproveitaria de você em hipótese alguma!
Muito sério, Pierre acrescentou:
— Pode estar certa que eu jamais faria qualquer coisa que você não consentisse ou não quisesse.
Antes que Beatriz pudesse falar qualquer coisa, ele arrematou:
— Mas você... Você precisa ser mais honesta consigo mesma! Precisa, por exemplo, admitir que estava querendo tanto quanto eu!
Era demais para a pobre e ainda inexperiente moça...
Com um esgar de ódio no rosto, ela se levantou e, pisando duro, deixou o salão.
Naquele mesmo dia, pagou a conta do hotel e foi embora, seguindo para Los Angeles, dando continuidade ao seu projeto de atravessar sozinha os Estados Unidos.







SETE




Enquanto escolhia a roupa que iria vestir — o que não foi tarefa das mais fáceis, pois parecia até de propósito, mas todos os vestidos que queria usar estavam amassados por terem acabado de sair das malas — Beatriz tentava desesperadamente, por ordem em seus pensamentos e traçar uma estratégia de ação.
Ela sabia muito bem quais eram as intenções de Pierre, estava consciente de que ele não aceitaria uma nova negativa e que não desistiria com facilidade de seu objetivo.
E o objetivo de Pierre não era outro senão ela...
Ela, Beatriz Medeiros de Albuquerque!
— Mas ele está muito enganado a meu respeito! — falou a jovem para si mesma, experimentando um elegante tailleur — Se ele pensa que vai conseguir me vencer com a sua conversa mole e a sua delicadeza made in France, está completamente errado!
Calçou as meias, prendeu-as com uma cinta-liga de rendas, olhou-se ao espelho e disse:
— Sei muito bem o que quero da vida! Quero me tornar uma antiquarista respeitada em todos os lugares, conhecida por minha competência! Além do mais, se eu quisesse depender de um homem, seria muito mais natural que continuasse a depender de meu pai! E nem isso eu posso admitir!
Vestiu uma blusa de seda, notou que a transparência da mesma deixava excessivamente à mostra as rendas do sutiã e...
Tirou o sutiã.
Soltou os cabelos deixando-os cair à frente dos seios o que proporcionava um conjunto ainda mais sensual e provocante do que se ela estivesse nua da cintura para cima.
Sorriu para a imagem que o espelho lhe devolvia e vestiu a saia.
Deu uma volta, olhando-se com atenção.
Por fim, satisfeita consigo mesma, murmurou:
— Acho que estou bem assim...
Olhou-se uma última vez e pensou:
— Espero que Pierre também goste...
Imediatamente, sentiu-se furiosa.
— Mas que inferno! — exclamou — Será possível que nós, mulheres, jamais sejamos capazes de nos arrumar unicamente para nós mesmas?! Será possível que sempre e eternamente terá de ser em função de um homem?!
Em sua raiva, chegou a pensar em se despir novamente, vestir um jeans e uma camiseta e lavar o rosto, retirando toda a maquiagem.
Mas...
Não!
Ela jamais conseguiria fazer uma coisa dessas, a menos que estivesse a ponto de ser internada em um hospício!
Sim...
Beatriz era obrigada a reconhecer que tinha se produzido toda, só para encontrar Pierre, para impressioná-lo, para...
Para se sentir bem consigo mesma, com a certeza de que tinha sido agradável aos olhos daquele homem.
Ou de qualquer outro...
— Somos, mesmo, muito idiotas... — murmurou — Fazemo-nos bonitas e desejáveis, agimos cheias de sensualidade e de coquetismos... E, depois, não queremos ser assediadas, dizemos que o assédio é uma agressão!
Riu dessa sua idéia, retocou o penteado, calçou um par de sapatos de salto alto e pensou:
— Mas, a realidade é outra... O macho corre atrás da fêmea certo de que é o caçador... Porém, ele não percebe que nada mais é senão a caça! E que a fêmea apenas usa artimanhas que o permitem imaginar que está por cima e que é o único vencedor!
Caminhando para a sala, murmurou:
— No fundo, o homem é o idiota... Não percebe que está sempre sendo dirigido pela mulher e que, na batalha final, é ele quem pede a rendição... É ele que não consegue mais! Para a mulher basta...
Foi interrompida pela campainha da porta e, excitada, Beatriz correu a atender, esquecendo imediatamente todas as teorias que estivera formulando até aquele momento.

*******

Abriu a porta já com um sorriso e com uma meia-dúzia de palavras cuidadosamente ensaiadas começando a lhe sair pelos lábios.
Porém...
Calou-se e o sorriso que trazia no rosto, desapareceu.
Não era Pierre, mas sim Lascard que, com os olhos brilhando de esperanças, disse:
— Imaginei que pudesse estar se sentindo muito só nesta sua primeira noite parisiense...
Abriu um sorriso e completou:
— Vim convidá-la para sair um pouco, jantar à beira do Sena e, quem sabe, conhecer um pouco da noite na Cidade Luz...
Beatriz teve vontade de lhe dizer que já conhecia o bastante da noite parisiense para saber, definitivamente, que não era o seu lugar...
Mas, por uma questão de delicadeza, falou, apenas:
— Oh, muito obrigada, M. Lascard...
— Guy, por favor... Não sou tão mais velho que você...
Beatriz sorriu e continuou:
— Está bem, Guy... Mas estou muito cansada... Não pretendo sair hoje...
Lascard examinou Beatriz devorando-a e despindo-a com os olhos, sorriu malicioso e indagou:
— Você sempre se veste assim para ficar em casa?
A moça teve dificuldade em conter a raiva que, de repente, a invadiu.
Raiva que era motivada muito mais pela maneira como Lascard a olhara do que pela frase que ele dissera.
— Não — respondeu ela — Realmente, não costumo me produzir inteira para ficar em casa... sozinha.
— Ah! — exclamou o homem, corando muito — Não imaginava isso! Não sabia que estava esperando visitas...
E, maldoso, completou:
— Para passar a noite!
Antes que Beatriz pudesse reagir, perguntou:
— Será que seu pai sabe disso? Será que ele aprovaria a idéia de um homem passar a noite com você?
Beatriz estremeceu.
Sim...
Aquele indivíduo estava começando a se mostrar inconveniente demais!
Na realidade, não haveria nada de mais se ele resolvesse contar para Nando que sua filha tinha passado a noite com um homem...
Mas Lascard não tinha esse direito!
Quem estava pensando que era, afinal de contas?
Sem querer ofender o funcionário de seu pai e ainda tentando não explodir, Beatriz falou:
— Eu não disse que estava esperando um homem...
Lascard ampliou o sorriso e, semicerrando os olhos, murmurou:
— Bem... Então a coisa é ainda pior... Você...
Não conseguiu terminar a frase.
Surgindo silenciosamente da escada, Pierre agarrou o braço de Lascard e, puxando-o com violência, disse:
— Et alors, Monsieur? Qu’est-ce que vous cherchez ici?
E, sem deixar que Lascard reagisse ou mesmo respondesse, empurrou-o para a escada, falando:
— Ouvi sua conversa, meu amigo... Percebi sua intenção... E pode estar certo de que o senhor Albuquerque ficará sabendo do que aconteceu!
Lascard empalideceu e, em tom suplicante, disse:
— Mais non! Pour l’amour de Dieu! Não conte nada ao M. Albuquerque! Eu perderia meu emprego! E não posso deixar que isso aconteça!
No que Lascard estava absolutamente certo.
Para um homem de meia-idade, ficar desempregado na França, significa um período muito longo e difícil, sem a menor possibilidade de encontrar uma nova colocação...
E quando esse homem está ocupando um cargo importante e bem remunerado, as coisas são ainda mais difíceis e complicadas.
Não...
Lascard até poderia se humilhar diante daqueles dois jovens, mas jamais poderia perder seu emprego!
Pierre puxou-o para si pela gola do paletó e rosnou:
— Aproxime-se de Mlle. Albuquerque novamente... Aproxime-se e eu, em pessoa, irei chutando o seu traseiro de Paris ao Brasil para que você converse cara-a-cara com o pai dela!
Assim dizendo, Pierre empurrou-o pelo braço com tal violência que somente por um milagre, Lascard conseguiu se reequilibrar e não se estatelar num formidável tombo.
Ouvindo seus passos ecoando, rápidos, pelo prédio, Pierre sorriu, voltou-se para Beatriz e disse:
— Cheguei em boa hora, não é mesmo?
Antes que ela se recuperasse do susto que passara, o rapaz falou:
— Ainda bem que acredito em predições e não tomei o elevador. Assim, pude ouvir tudo o que aquele ordinário disse e pude agir com a certeza de estar fazendo o que era mais correto para a situação...
Abraçando a moça que, naquele momento deixava extravasar a tensão em lágrimas, finalizou:
— Creio que mereço um beijinho, não acha?






OITO




De New Orleans a Los Angeles, de Los Angeles a San Francisco e, depois a San Diego, a viagem de Beatriz não teve mais a mesma graça.
A jovem demorou cerca de uma semana para entender o que é que estava acontecendo e, quando conseguiu, finalmente equacionar o problema, ficou revoltadíssima com o resultado que lhe apareceu diante dos olhos.
Estava sentindo falta de Pierre.
Sim!
Por mais incrível que isso pudesse parecer, por menos que Beatriz quisesse admitir, era justamente o que estava ocorrendo.
Ela esperara encontrar Pierre em cada aeroporto, em cada parada de ônibus, em cada hotel em que se hospedara.
Mas...
Não!
Pierre não a seguira, como ela imaginara...
E, muito pior do que isso, quando ela telefonara ao hotel em New Orleans, ficara sabendo que ele se mudara de lá, sem deixar endereço.
Fugira...
Desaparecera!
Beatriz ainda tentou reerguer o próprio ânimo, procurara visitar todos os lugares de que tanto escutara falar, fora a Hollywood, a Berverly Hills, à Calçada da Fama...
Vira astros e atrizes, diretores famosos de cinema, conversara com alguns deles...
Até deixara que um doublé a levasse para jantar!
Mas...
Não era nada disso que ela queria.
Pierre!
Pierre estava fazendo uma falta enorme e, por mais que Beatriz tentasse por a cabeça no lugar, dizendo a si mesma que não tinha cabimento, afinal ela o vira apenas duas vezes e na segunda os dois brigaram, a jovem sabia que não poderia esquecê-lo.
— É porque a situação ficou mal resolvida — tentou explicar para si mesma — Por isso é que eu estou assim...
Mas...
Ela tinha certeza que, se voltasse a encontrá-lo, nem mesmo se lembraria da conversa à hora do fatídico breakfast. Ela queria Pierre, sonhava com Pierre, não conseguia tirá-lo da cabeça.
Por fim, numa noite em que a solidão começara a fazê-la sentir vontade de chorar, pediu a conta no San Diego Palace Hotel e pegou o primeiro avião para New Orleans.
Antes não o tivesse feito...
Foi encontrar Pierre no mesmo hotel de antes — afinal ele não saíra de lá, apenas deixara ordens na recepção para dizerem que ele já tinha ido embora — sentado a uma mesa do bar, abraçado a uma morena exuberante e risonha, que o permitia bolinar-lhe os peitos na frente de todos.
Nunca mais viu Pierre...
Nunca mais teve notícias dele e nem sequer as quisera ter.
Até aquela noite, ali em Paris.








NOVE




— Pronto, pronto... — falou Pierre, enxugando as lágrimas de Beatriz e ajudando-a a sentar no sofá — Acabou... Lascard não vai mais aborrecê-la!
Ainda soluçando, Beatriz disse:
— Maldito! Estava me assediando! Esteve o tempo todo me assediando, com aquela delicadeza falsa, com aquele jeito de grande cavalheiro!
Aceitando o ombro de Pierre como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela murmurou:
— Mas eu vou telefonar para papai... Ele vai saber o que esse desgraçado tentou fazer...
Pierre riu, acariciou o rosto de Beatriz e beijou carinhosamente sua testa, dizendo:
— Mas que engraçado... Não é você aquela moça que tanto quer ser independente e mostrar que pode muito bem sê-lo? A troco de quê vai ligar para seu pai?
Beatriz baixou os olhos, encabulada e Pierre prosseguiu:
— A menos que queira se vingar e seja sua intenção prejudicar definitivamente a vida de Lascard...
— Não — murmurou a moça — Não se trata de vingança...
Forçou um sorriso e juntou:
— Afinal... Não houve nada... Lascard nem sequer tocou em mim...
Pierre levantou, caminhou até o armário onde estavam as garrafas de bebida, abriu-o e, servindo uma dose de uísque puro para cada um, disse:
— Por isso, acho que não deve nem mesmo comentar com seu pai. Você precisa aprender a enfrentar e resolver seus problemas sozinha.
Com expressão grave, acrescentou:
— Será um bom treinamento. Você precisará estar bem afiada na lide com as pessoas, especialmente com os homens.
Imediatamente, Beatriz se lembrou das palavras da cigana Madeleine, em New Orleans.
— Por que está dizendo isso? — perguntou, angustiada — Você está sabendo de alguma coisa?
E, percebendo de repente que Pierre se servira de bebida sozinho, como se já conhecesse o lugar onde as garrafas estavam guardadas, indagou, intrigada:
— Como sabia o lugar das bebidas?
Sem dar tempo a Pierre de responder, continuou:
— E como sabia que eu estava chegando hoje? Como descobriu meu apartamento?
Pierre tomou a bebida que estava em seu copo, encheu-o novamente e respondeu:
— Calma, menina! Uma coisa de cada vez! Não sou um computador ligado a uma rede, capaz de solucionar vários problemas ao mesmo tempo!
Sentou-se ao lado de Beatriz, segurou suas mãos e começou:
— Em primeiro lugar, não estou sabendo de nenhuma novidade relacionada ao fato de que você, dentro de muito pouco tempo, estará obrigada a administrar uma porção de homens, homens duros e mais velhos do que você. Em segundo, eu sabia por intuição que aquele armário é onde estão as bebidas. Em terceiro e quarto, adivinhei que você viria esta tarde para Paris e que viria para este apartamento...
Beatriz olhou torvamente para Pierre e falou:
— Muito engraçado... Realmente, muito engraçado!
E, fazendo beicinho de menina mimada que tinha sido contrariada, murmurou, em tom queixoso:
— Você está se divertindo às minhas custas... Sabe muito bem que não me é possível acreditar nessas suas mentiras!
Pierre olhou para a jovem e disse, sério:
— Foi o que eu achei para dizer, minha querida... A verdade...
Respirou fundo e completou:
— A verdade é fantástica demais para você acreditar. Nesse caso — aliás como em muitos casos durante a vida — é mais fácil acreditar na mentira do que na verdade.
Esforçando-se para conter a irritação, Beatriz pediu:
— Por favor, Pierre! Fale sério! Não me engane mais!
E, apertando os lábios, falou:
— Não pense que esqueci o que você me aprontou lá em New Orleans...
Pierre olhou interrogativamente para Beatriz e a moça, embora sentindo o sangue subir para suas faces, disse:
— Não se faça de desentendido... Você mandou dizer que já tinha ido embora e...
Como se vomitasse as palavras, lançou:
— Voltei para New Orleans. Sabia que você não poderia ter ido embora da cidade, afinal estava ali a trabalho... E eu o encontrei. No mesmo hotel... E acompanhado por aquela...
Pierre riu.
— Quer dizer que a cena lhe fez mal? — perguntou.
Sem deixar que Beatriz respondesse, ele falou:
— Creio que você não tinha qualquer direito de reclamar. Afinal... Meia dúzia de beijos não podem significar compromisso de espécie alguma e, além disso, acho que já está na hora de você deixar de lado esses seus preconceitos latinos e passar a acreditar e a praticar a democratização do amor!
Beatriz sentiu vontade de correr com Pierre porta afora...
Mas, lembrando-se do favor que ele lhe fizera salvando-a do assédio vulgar de Lascard, resolveu relevar o que acabara de ouvir e, mudando de assunto, perguntou:
— Onde pretende me levar para jantar?
— Pensei em levá-la em um lugar muito interessante...
— Sim? — fez Beatriz, esforçando-se para fingir um grande interesse.
— Sim... — respondeu Pierre, no mesmo tom — Há cerca de duas semanas atrás, estive num pequeno restaurante perto de Versailles... Sua proprietária é uma mulher já idosa, muito simpática que, além de cozinhar muito bem, tem o dom de fazer previsões...
Mais uma vez, Beatriz olhou torvamente para Pierre.
Em tom sarcástico, ela perguntou:
— E você quer que eu acredite nessa história maluca?
— Pode não acreditar — disse Pierre — Mas fique sabendo que foi ela quem me contou o lugar das bebidas, a data e a hora de sua chegada a Paris e, o que é mais importante, disse que eu deveria estar a esta hora em sua casa, pois você estaria precisando de ajuda...
Beatriz olhou para as pontas de seus sapatos, pensativa.
De fato, era muita coincidência...
E era tudo muito estranho.
Com um suspiro e um sacudir de cabeça, ela se levantou e falou:
— Sabe... Pode ser que você me ache meio maluca... Mas de repente fiquei com muita vontade de conhecer essa sua amiga bruxa... E mais ainda, de lhe fazer uma série de perguntas!









DEZ




Mme. Régine Doumenc era, como Pierre dissera, a simpatia em pessoa.
Gordota, alegre, com as maçãs do rosto muito vermelhas e salientes, os olhos azuis sempre sorridentes, Mme. Doumenc fazia bem o tipo da paysanne, boa cozinheira, trabalhadeira e... super-mãe.
Com a diferença que ela não tinha filhos, pois os dois que tivera, perdera-os na Guerra da Algéria. Assim, Régine Doumenc, conhecida por todos na região como Mère Régine, tinha a mania de adotar como filhos todos os que apareciam em seu restaurante e com quem ela simpatizasse.
Era justamente o que ocorria com Pierre.
Mère Régine o adorava, achava-o o mais bonito e mais inteligente de todos os homens e, consequentemente, tinha para com o rapaz, todos os cuidados que uma verdadeira mère paysanne teria com sua prole.
Pierre tomara o cuidado de explicar para Beatriz a maneira de se comportar da velha e, assim, a moça não se chocou muito com a efusividade com que ambos foram recebidos no restaurante.
— Mais quelle merveille! — exclamou Mme. Doumenc, quando viu Pierre entrar, acompanhado por Beatriz — Oh, je suis si heureuse de te voir ici, à la maison, d’autant plus que tu viens avec ta fiancée!
E, olhando intensa e criticamente para Beatriz, acrescentou:
— Elle est charmante et jolie, ta fiancée...!
Beatriz sorriu, não quis desfazer o engano de Mère Régine dizendo-lhe que não era noiva e nem mesmo namorada de Pierre, recebeu os beijos de boas-vindas da velha e, passando o braço esquerdo pela cintura de Pierre, disse ao seu ouvido:
— Você tinha razão... Ela é bem simpática... Só espero que responda às minhas perguntas com honestidade...
Muito sério, Pierre falou:
— Pode estar certa que, se as perguntas puderem ser respondidas, ela o fará com toda a sinceridade do mundo. Não conheço nenhum caso em que Mère Régine tenha enganado ou iludido alguém...
Sentaram-se a uma das mesas perto do grande fogão a lenha em que Mme. Doumenc costumava cozinhar e, enquanto uma mocinha desengonçada vinha trazer uma jarra de vinho para servi-los, Pierre explicou:
— Aqui não escolhemos os pratos. Aceitamos, simplesmente o que Mère Régine nos traz. E pode apostar que você não vai se arrepender. Dificilmente encontrará um lugar com comida mais saborosa e nutritiva!
Provou o vinho, encheu ambos os copos e acrescentou:
— Saborosa, nutritiva e... mágica!
Beatriz sorriu, com superioridade e dúvida, dizendo:
— Lá vem você, outra vez, com essas suas idéias e manias! Até parece que vive pensando só nisso!
— Mentira! — protestou Pierre — Também penso em outras coisas...
Sorriu, segurou a mão de Beatriz, beijou as pontas de seus dedos e murmurou:
— Penso em você, Beatriz... O tempo todo! E você nem calcula como tenho sentido sua falta!
Beatriz, conscientemente, queria retirar a mão, não queria que ele a beijasse daquela maneira, não queria alimentar a menor esperança em Pierre.
Mas, para sua surpresa e até mesmo terror, percebeu que não conseguiria nem mesmo mover os dedos, quanto mais retirar a mão...
— Por favor... — pediu Pierre — Deixe-me mostrar para você o quanto a amo! Não fuja de mim, pelo menos hoje!
Beatriz não teve forças para dizer nada e Pierre, apertando um pouco mais a mão de Beatriz, falou:
— Nesse momento, você está pensando que é literalmente impossível eu a amar. Ou, pelo menos, sentir amor, já que nós nos vimos apenas quatro vezes, contando-se com o dia de hoje. Está pensando que não é possível haver amor assim, à primeira vista. E está imaginando que eu, com as minhas teorias de democratização do amor, nem mesmo teria o direito de aspirar a um fio de seus cabelos...
Beatriz arregalou os olhos.
Exatamente naquele instante, ela estava pensando que não deixaria Pierre tocar nem mesmo em um só fio de seus cabelos.
Com um sorriso, Pierre disse:
— A telepatia é um dos primeiros passos da magia... E não é nem um pouco difícil de se conseguir...
Beatriz sentiu um arrepio atravessar sua coluna vertebral e ia abrindo a boca para perguntar como é que ele conseguia esse prodígio, quando Mère Régine apareceu, trazendo dois pratos de madeira, cada um deles com um pedaço de carne assada e batatas cozidas.
Beatriz teve que se esforçar muito para não deixar transparecer a decepção.
A jovem estava imaginando alguma coisa diferente, um prato completamente novo e que, segundo Pierre, tivesse poderes mágicos.
Mais uma vez invadindo os pensamentos de Beatriz, Pierre falou:
— Não, minha querida... Você não verá estrelinhas luminosas saltando de dentro do prato.
Sorriu e juntou:
— Pelo menos, não verá estrelinhas agora... Mais tarde, quem sabe, as coisas serão um pouco diferentes.
Beatriz cortou um pedaço de carne e provou.
Não pode evitar uma exclamação de surpresa.
— Mas é uma delícia! — quase gritou — Tem um sabor diferente de tudo quanto já comi até hoje!
Sentindo de repente um apetite de lobo, Beatriz devorou o assado, enxugou o molho com um pedaço de pão e, olhando extasiada para Pierre, comentou:
— Se não fosse gula, eu comeria outro tanto!
— Seria gula, realmente — admitiu o rapaz — E a gula é um dos Sete Pecados Capitais, sabia?
Beatriz riu, esticou o braço e segurou a mão de Pierre, dizendo:
— É claro que sabia! E também é claro que eu não quero me tornar uma pecadora! Por isso é que não vou comer mais!
A mocinha desengonçada tirou os pratos, serviu um doce de nozes digno de um rei e, momentos depois, Mère Régine aparecia, sentando-se à mesa, ao lado de Beatriz.
Só que a velha, naquele instante, não mais estava sorrindo e seus olhos, muito bons e líquidos, estavam entristecidos.
— Você precisará ter muita força, minha filha... — falou ela, pousando a mão sobre o antebraço de Beatriz — Muita força e muita coragem!
Mme. Doumenc fixou o olhar da moça e esta, num flash muito rápido, viu o rosto de seu pai e o ruído de uma explosão.
Beatriz empalideceu.
— Vai acontecer alguma coisa com papai! — gemeu.
Angustiada e ao mesmo tempo sentindo crescer dentro de si, uma intensa revolta, ela perguntou:
— É isso? Por isso é que precisarei de muita força e coragem? É por isso que eu terei de assumir a empresa?
Mère Régine permaneceu em silêncio e nada respondeu.
Pôs-se de pé, fechou os olhos e estendeu as mãos, com as palmas viradas para baixo, sobre a cabeça de Beatriz.
Ficou nessa posição durante quase um minuto e, por fim, voltando a abrir os olhos, falou:
— Você enfrentará grandes dificuldades... Correrá grandes perigos! Mas, uma amiga aparecerá para avisá-la da aproximação do pior momento. E você se salvará...
Olhou intensamente para Beatriz e disse, muito devagar, como se quisesse que a jovem realmente gravasse suas palavras:
— Tome cuidado... Tenha fé. Acredite nas pessoas que a cercam e deposite confiança naquelas que querem ajudar. Você poderá evitar desgraças maiores.
— Mas... E papai?! — quis saber Beatriz — O que vai acontecer com ele? Por que todos estão me dizendo a mesma coisa? O que significa tudo isso?
Mère Régine balançou a cabeça negativamente e respondeu:
— Há perguntas que eu não devo responder.
Acariciou o rosto de Beatriz e acrescentou:
— Mas não deve se preocupar... É preciso que você tenha sempre em mente que a vida, nesta dimensão, é feita de momentos felizes e de momentos infelizes. E, por mais que queiramos eliminar estes últimos, isso é impossível, pois o desespero e a infelicidade, a desgraça e as mazelas, também fazem parte da vida.
Afastando-se, ela finalizou:
— Lembre-se, Beatriz... Il faut de tout pour faire un monde! E esse todo compreende também aquilo que nós, nesta dimensão astral, convencionamos chamar de Mal!
Voltou alguns minutos depois, trazendo dois pequenos cálices de ouro contendo em seu interior, um líquido esverdeado.
— Allez! — falou ela, com entusiasmo — Prennez-le! C’est de la vraie Liqueur d’amour!
Beatriz não pode deixar de sorrir e, baixinho, comentou com Pierre:
— Já escutei isso antes...
— É o mesmo licor — garantiu Pierre — E faz o mesmo efeito...
Beatriz balançou afirmativamente a cabeça e, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Pierre puxou-a para perto de si, esmagou seus lábios nos dela e disse:
— Só que, desta vez, você já tem a certeza...







ONZE




Beatriz despertou com os raios de sol entrando pela janela aberta, bateu as pálpebras ainda pesadas, e olhou ao seu redor, estranhando o ambiente.
Não...
Aquele não era o seu quarto.
Voltou-se para o lado e viu Pierre deitado, nu, ressonando placidamente.
Ela também estava nua e a desordem na cama mostrava muito bem como tinha sido a noite...
Beatriz sorriu.
Apoiando-se sobre o cotovelo esquerdo, acariciou o rosto de Pierre, murmurando:
— Oh, Pierre, meu amor... Se eu soubesse que ia ser tão bom, não teria sido a tola que fui lá em New Orleans...
Beijou carinhosamente os lábios do rapaz, sentindo novamente a chama do desejo se acender.
Pierre abriu os olhos e sorriu.
Abraçando Beatriz, puxou-a para si, fazendo-a perceber que ele estava outra vez pronto para lhe provar o quanto a amava.
— Se isto é a verdadeira felicidade — disse a moça, ofegante — então eu estou plenamente feliz!
— É apenas o começo, querida... — sussurrou Pierre, ao seu ouvido — Apenas o começo de toda uma vida...!
Passava de meio-dia quando finalmente, conseguiram sair da cama, quase andando sobre os joelhos e com as olheiras fundas, pelo meio do rosto.
— Vou preparar alguma coisa para comermos — disse Pierre — Acho bom repor um pouco as energias...
Beatriz se apressou, apenas vestindo uma das camisas de Pierre, passou à frente do rapaz ainda no corredor do apartamento, falando:
— Nada disso! Diga-me apenas onde estão as coisas aqui em seu apartamento, que eu quero preparar nosso desjejum!
Pierre enlaçou-a mais uma vez, beijou-a apaixonadamente e murmurou:
— Não imaginava que você, uma moça rica e tentando de todas as maneiras se tornar independente e dona do próprio nariz, fosse admitir ir para a cozinha preparar a refeição de um homem...!
Despejando leite em dois copos, Beatriz protestou:
— Não sei por que você diz isso, querido... Não sou uma feminista xiíta, muito pelo contrário!
Pondo duas fatias de pão na torradeira automática, continuou:
— Quero me libertar do controle superprotetor de meu pai. Isso é verdade.
Enquanto cortava um pouco de queijo, completou:
— Mas essa realidade não implica, de maneira nenhuma, na obrigação filosófica de ser feminista ou anti-machista!
— Estou vendo... — murmurou Pierre — E pode acreditar que estou não apenas surpreso, mas também extremamente feliz com essa descoberta!
Sentando-se ao lado de Beatriz, o rapaz explicou:
— Detestaria perceber que você é apenas mais uma dessas meninas revoltadinhas que desejam a liberdade total e nem sequer têm condições psicológicas de se auto-administrar...
Começando a comer, Pierre disse:
— Você é decidida e muito forte. Não terá problemas. Não sofrerá demais quando...
Interrompeu-se, assustado com as próprias palavras, olhou sem jeito para Beatriz e esta, que captara perfeitamente o que ele estava querendo dizer, indagou, cheia de ansiedade:
— Quando eu estiver à testa das empresas de papai? É isso que você estava dizendo, Pierre?
O francês não respondeu e Beatriz, com lágrimas nos olhos, segurou seu braço, suplicando:
— Por favor, Pierre! Explique-me direito essa história! Conte-me a verdade! O que é que vai acontecer a meu pai? Por que eu vi o rosto dele ontem, juntamente com uma espécie de explosão?
Pierre respirou fundo e, depois de alguns segundos de reflexão, respondeu:
— Não tenho o dom da clarividência, Beatriz. Apenas escutei Mère Régine falar aquilo e antes, eu também escutara Madeleine se referir ao mesmo assunto.
Tomou um gole de leite e prosseguiu:
— Sei, apenas, que não é possível alterar o verdadeiro Destino das pessoas. Seja o nosso, seja o de qualquer um. Mas podemos, uma vez tendo avisos do que está para acontecer, evitar que as conseqüências sejam maiores e piores, já que o evento desagradável não mais nos apanhará de surpresa.
Beatriz olhou para Pierre, enxugou uma lágrima que teimava em surgir, e ponderou:
— Mas... Se está para acontecer uma desgraça com papai, é minha obrigação avisá-lo! E, para isso, preciso saber exatamente o que é que vai ocorrer!
Pierre terminou o desjejum, levantou-se e, segurando os ombros de Beatriz, falou:
— Conheço Mme. Doumenc há muitos anos e sei que, se ela soubesse ou ao menos pudesse, dir-lhe-ia tudo. Mas acho que Mère Régine não sabe o que é que está para acontecer. Esse detalhe não lhe deve ter sido revelado. Talvez seja o Destino propriamente dito, aquilo que é imutável na vida de uma pessoa.
Beatriz soluçou um pouco e balbuciou:
— Mas eu preciso saber... Preciso!
Ergueu os olhos para Pierre e pediu:
— Vamos voltar lá, esta noite... Por favor!
O rapaz sorriu, beijou-a sobre os lábios e disse:
— Está certo... Hoje é sábado... O restaurante fica muito cheio. Mas nada impede de irmos lá à tarde, por volta de seis horas...
Puxando Beatriz de volta para o quarto, arrematou:
— Ainda não são duas horas da tarde, querida... Ainda temos muito tempo, não é verdade?






DOZE




— Mas vocês estão com um aspecto...! — riu Mère Régine assim que os dois jovens sentaram à sua frente — Não é preciso ser um adivinho para descobrir o que é que andaram fazendo de ontem para cá...!
Beatriz sorriu, encabulada, corou um pouco e murmurou:
— Preciso que a senhora me ajude... Preciso esclarecer algumas coisas...
Mme. Doumenc fez um sinal afirmativo com a cabeça e, fechando os olhos, disse:
— Compreendo sua aflição, minha querida... E vou ver o que é possível fazer para aliviá-la.
Mère Régine estava diferente.
Tinha perdido completamente o aspecto de paysanne da véspera e, muito embora continuasse a ter a mesma expressão de bondade, seu olhar era mais frio, mais perscrutador...
Usava uma túnica de seda azul-marinho, enfeitada com algumas aplicações em ouro e prata, e tinha diante de si, sobre a mesa, um copo de água e uma grande lasca de quartzo branco, muito bonito e transparente.
— Concentre-se na imagem de seu pai — ordenou ela, voltando a fechar os olhos e pousando ambas as mãos sobre o cristal — Procure enxergá-lo em sua mente, exatamente como ele estava quando o viu pela última vez.
Beatriz fechou os olhos, imaginou seu pai à hora da despedida, no aeroporto de Vitória.
Sim...
Ele estava bonito...
Aliás, como sempre!
Nando Albuquerque era um belo espécime de homem, não era à toa que ele fazia tanto sucesso entre as mulheres...
Era bem verdade que Beatriz, muitas e muitas vezes, não aprovava o comportamento do pai. Não achava graça nenhuma quando o via trocando de namoradas como se estivesse trocando de camisas.
Mas, ela sabia muito bem que uma grande parte da culpa, pertencia às próprias moças que davam trela ao terrível e temível Nando Albuquerque.
Elas já o conheciam — aliás, toda a cidade estava cansada de saber que Nando jamais perdoava um rabo-de-saia — e deveriam no mínimo desconfiar que Nando não queria saber de nada mais sério do que uma noitada numa boate, com direito a terminar a madrugada entre os lençóis de uma cama redonda de motel.
E elas, bem ao contrário do que seria natural, corriam atrás disso.
Parecia que essas mulheres também não estavam pensando em nada estável, sério, com alguma espécie de futuro.
Bastava uma noite...
Bastava ter o nome e o telefone particular de Nando Albuquerque em seu caderninho de endereços e isso já era suficiente.
Nando, sem nem mesmo perceber, transformara-se num troféu, um prêmio para a ousadia e o desprendimento moral da grande maioria das freqüentadoras da alta roda de Vitória e, principalmente, daquelas que pretendiam, da forma que fosse, chamar a atenção dos colunistas sociais...
— Sim... — pensou Beatriz — Meu pai é um gatão... Azar dessas idiotinhas que correm atrás dele! Elas estão cansadas de saber que ele jamais se fixará em alguém!
Lembrou-se, de repente, que essa sua teoria talvez estivesse errada...
Pelo menos, quando deixara Vitória, fazia já seis meses que Nando Albuquerque era visto sempre na companhia de uma mesma mulher.
E, surpreendentemente, uma mulher que não poderia jamais ser considerada como uma companhia normal para um homem do porte e da importância sócio-econômica de Nando, uma vez que ela não tinha qualquer berço, não tinha nenhuma tradição e ele...
Bem...
Se ele já era considerado não mais que um troféu a ostentar, Nando por sua vez, selecionava muitíssimo bem a caçadora que o alcançaria.
Jamais, em tempo algum, ele se envolvera com uma mulher que não tivesse classe, que não figurasse nas colunas sociais dos jornais capixabas, que não soubesse se comportar devidamente onde quer que Nando a levasse, fosse num restaurante de peixadas em Ubu, fosse no Serra, em Paris, ou em um banquete na Embaixada da Inglaterra, em Brasília.
Daisy, a atual companheira — ou simplesmente namorada de Nando — não preenchia esses requisitos.
Era bem verdade que Daisy era uma mulher muito bonita e desejável...
Mas...
Além de não ter tido uma educação esmerada, tinha sido amante de José Pedreira, um alto funcionário de seu pai.
E era surpreendente que Nando, tão cheio de conceitos hierárquicos e de distâncias em relação a seus empregados, admitisse ter ficado com as sobras de Pedreira.
— Você não está se concentrando direito, menina — repreendeu Mère Régine, arrancando Beatriz de suas divagações — Pense na figura de seu pai e não nas pessoas que o estão envolvendo neste momento.
Beatriz estremeceu, sacudiu vivamente a cabeça como se isso pudesse afastar os pensamentos dispersantes, e voltou a imaginar o rosto de Nando no momento em que se despedia dela, no Aeroporto de Goiabeiras.

*******

— Não consigo ver seu pai, querida... — falou Mère Régine — Mas eu a vejo... Você está sentada à cabeceira de uma grande mesa, cercada por senhores muito sérios. Você está com vontade de chorar, mas precisa manter a aparência de forte, de quem tem o controle de tudo e o domínio absoluto da situação. Um desses senhores, o que está mais perto de você e que parece ser um pouco mais jovem que os outros, não a enxerga apenas como sua superior... Ele a vê como mulher. E a deseja. Deseja de uma maneira até mesmo doentia.
— Mas... — balbuciou Beatriz — Por que estou nessa mesa? Por que estou nessa situação?
Olhando para Pierre, ela completou:
— Isso só poderá acontecer se meu pai for afastado da presidência, por algum motivo!
Com expressão aterrorizada, murmurou:
— Só se ele morrer ou ficar gravemente enfermo, impossibilitado de gerenciar as empresas!
Mère Régine meneou negativamente a cabeça e falou:
— Não... Não posso dizer nada a esse respeito. Não consigo ver seu pai. Apenas vejo você...
Inclinou-se para trás, ergueu o rosto para o teto e, depois de alguns segundos, disse:
— Vejo também uma outra moça... É sua amiga... Está tomando notas febrilmente, num caderninho.
Respirou fundo, olhou para Beatriz e murmurou:
— É tudo o que vejo, minha filha. Nada mais. Sinto muito não poder ser mais clara, mais explícita.
Beatriz baixou o olhar e falou, desanimada:
— Isso está me deixando angustiada... Talvez tivesse sido melhor ninguém ter dito nada!
— Não fale assim, minha filha — repreendeu Mère Régine — As Forças Espirituais e Cósmicas quiseram pô-la a par do que está para acontecer. Isso não é à toa, Beatriz! Você, como cada um de nós nesta dimensão, tem uma missão a cumprir. E, para a boa realização desse trabalho, você precisaria estar avisada. É necessário que esteja preparada. Por isso, o Destino quis que você conhecesse Pierre, fosse à casa de Madeleine, lá em New Orleans, e viesse aqui.
Olhou para Pierre com carinho e continuou:
— Sua vida parece estar, de alguma maneira, amarrada à de Pierre. Não sei dizer se é algo estável, definitivo...
Sorriu, pousou a mão sobre a coxa esquerda do rapaz e falou:
— Na realidade, com Pierre, é muito difícil alguma coisa ser definitiva. Principalmente no que diz respeito às mulheres. Ele não é do tipo que pretenda se prender, é um homem que preza muito a própria liberdade e ainda não percebeu que a verdadeira liberdade é justamente aquele estado de espírito que se tem quando não é mais necessário fugir de nada, quando não se precisa mais esconder coisa alguma.
Pierre corou, Beatriz olhou de soslaio para ele e Mère Régine prosseguiu:
— Essa sua amiga que me aparece apenas como uma imagem muito fluida, muito apagada e embaçada, também tem uma missão. Certamente, uma missão que se relaciona a você. Você deverá encontrá-la muito brevemente, pode estar certa disso.
— Como é ela? — quis saber Beatriz.
— Não consigo descrevê-la — respondeu Mme. Doumenc — E é possível que você nem mesmo a conheça. Só posso afirmar com certeza que, se ela ainda não é sua amiga, vai ser. E uma amiga muitíssimo importante em sua vida!
Levantou-se, mostrando que a entrevista estava encerrada e, beijando as faces de Beatriz, falou:
— Preste atenção às coisas, minha filha... E prepare-se. O que eu vi a seu respeito é algo que não poderá ser evitado. Você estará, dentro de algum tempo, assumindo uma posição talvez até muito pesada para a sua idade, para a sua formação. Por isso, trate de aprender, trate de formar um cabedal suficiente para administrar e dominar uma porção de homens terrivelmente ambiciosos, cruéis e cheios de inveja de você.
Beijou Pierre e disse:
— Quanto a você... Eu já lhe falei inúmeras vezes que não pode continuar a viver dessa maneira. Além disso, lembra-se de quando eu lhe disse sobre uma mulher...?
Interrompeu-se, olhou para Beatriz e sorriu.
— Essa mulher está aqui. Você precisa protegê-la, ampará-la, ajudá-la. Faça isso e estará caminhando a passos largos no cumprimento da missão que lhe foi reservada para esta vida.
Deixando os dois jovens sozinhos, Mère Régine se afastou e desapareceu atrás de uma cortina que separava o salão de refeições do restante da casa.
Beatriz e Pierre se entreolharam e, depois de alguns momentos de um silêncio constrangedor, Beatriz pediu:
— Leve-me para casa, Pierre... Por favor.
Um pouco sem jeito, o rapaz perguntou:
— Para a sua casa?
Beatriz balançou negativamente a cabeça e respondeu:
— Não... Não suportaria ficar sozinha esta noite...
Ergueu os olhos para ele e, com um sorriso, completou:
— Aliás, acho que será muito difícil aceitar dormir longe de você a partir de hoje, meu amor...

*******

Pierre enlaçou Beatriz em seus braços e, depois de beijá-la com ardor, falou:
— Relaxe, querida... Procure não pensar mais nisso, pelo menos por enquanto. Deixe passar o tempo, pois o que é inevitável, é simplesmente inevitável, a própria Mère Régine, o disse!
Ainda tensa, um pouco trêmula, Beatriz procurou o peito de Pierre como se ali estivesse toda a proteção de que estava necessitando, e retrucou:
— Não consigo... Não posso aceitar a idéia de que alguma coisa muito grave está para acontecer a meu pai. Por outro lado, é muito difícil para mim, acreditar em tudo isso!
Afastou-se um pouco de Pierre e disse:
— Procure me entender, amor... Apesar de ser brasileira, eu nunca estive envolvida com religiões ou filosofias espiritualistas, místicas ou esotéricas. Sempre fui católica e, na realidade, nem mesmo aquela fé dogmática que se poderia esperar de uma moça criada em colégio de freiras, eu tenho.
— Isso não quer dizer nada, Beatriz — argumentou Pierre — O fato de não acreditar, não implica automaticamente no não-acontecimento de eventos ou de fenômenos.
— Talvez... — fez Beatriz, meneando a cabeça em sinal de dúvida — Mas, por outro lado, fico pensando se tudo isso não é uma imensa farsa.
— Não sei como é que você pode dizer uma coisa dessas! — protestou Pierre, em tom magoado — Será que está querendo dizer que Madeleine, Mère Régine e eu mesmo, somos todos farsantes?!
Beatriz sorriu, beijou os lábios de Pierre e respondeu:
— Não quis dizer isso. Mas, pense bem... O que pode me garantir que você também não esteja sendo enganado?
Antes que Pierre pudesse responder, Beatriz explicou:
— Madeleine falou sobre isso já faz algum tempo... Nada aconteceu. Agora, Mère Régine repete praticamente as mesmas palavras de Madeleine...
Fazendo um sinal, pedindo que Pierre continuasse calado, a moça prosseguiu:
— Naquela ocasião, você deixou muito claras as suas intenções a meu respeito. Agora, é verdade, isso não importa mais. Estou apaixonada por você e sinceramente arrependida por não ter permitido que essa paixão tivesse começado antes. Havia a oportunidade, os motivos, o objeto... Tudo enfim, para que isso acontecesse lá mesmo, em New Orleans. Mas... Eu não quis. Nem sei por quê, mas não quis.
Voltou a beijar os lábios de Pierre, e falou:
— Você conhecia, antes de mim, tanto Madeleine quanto Mère Régine...
Com um sorriso encabulado, baixando os olhos, sem coragem de encarar Pierre, Beatriz completou:
— Penso ter o direito de achar que estou sendo vítima de uma farsa... O que o impediria de ter combinado tudo com Madeleine? E, agora, apenas para me impressionar — você sabe muito bem que os homens lançam mão de quaisquer truques ou artimanhas, por mais sujos que sejam, para impressionar as mulheres — você tenha repetido toda a sua história fantástica e mirabolante para Mère Régine?
Pierre riu alto e, fazendo Beatriz sentar no sofá, ao seu lado, falou:
— Não posso obrigá-la a acreditar em mim, querida... Posso apenas repetir o que já lhe disse, poucos minutos atrás...
Beijou-a, acariciou seus seios e, com dedos hábeis, começou a desabotoar-lhe a blusa, enquanto sussurrava ao seu ouvido:
— Relaxe, querida... Não pense nisso agora! Dê tempo ao tempo e verá que as soluções para todos os seus problemas acabarão por aparecer como se brotassem do nada!
Beijou-lhe os mamilos túrgidos, e completou:
— Eu a amo, Beatriz... Eu a desejo muito... E se tenho que ajudá-la de alguma maneira, creio ser minha obrigação começar ensinando-a como relaxar...

*******

Pierre saíra para o trabalho, dizendo que se encontrariam à noite, e Beatriz, embora sem nenhuma vontade, voltou para seu apartamento.
Afinal, seu pai poderia ligar, certamente estaria ansioso para saber as novidades e ela não teria como explicar que passara o fim-de-semana... em outra cama.
Estava coberta de razão.
Mal entrou, o telefone tocou.
Era Nando Albuquerque, desesperado, bravo, nervoso, querendo saber onde é que a filha se metera durante o sábado e domingo, pois telefonara mais de cem vezes e ninguém atendera.
— Já estava a ponto de pegar um avião e ir para Paris! — exclamou Nando.
— Fui viajar pelo interior — mentiu Beatriz — Encontrei duas amigas e fui visitar a família de uma delas, no Périgord...
Um pouco mais aliviado, mas ainda aborrecido, Nando falou:
— Você deveria, ao menos ter avisado Lascard... Ele tem a obrigação de lhe dar todo o apoio tático e logístico aí na França! Mas não poderá fazer nada, se você não o informar de seus planos e projetos!
Beatriz ficou em silêncio por alguns momentos e perguntou, por fim:
— Você falou com Lascard?
— Sim — respondeu Nando — E ele não soube me dizer nada. Apenas contou que a deixou em seu apartamento e, depois, não teve mais qualquer notícia...
A moça teve que se controlar para não explodir e comunicar ao pai o que Lascard aprontara.
Porém, lembrando-se das palavras de Pierre, ela apenas falou, com um tom de extrema seriedade na voz:
— Não vou ficar me reportando a Lascard, papai. Isso não tem o menor cabimento! Acho que já tenho idade suficiente para gerenciar minha própria vida e não preciso que Lascard fique atrás de mim, até mesmo preenchendo meus cheques!
Sem dar tempo ao pai de retrucar, ela perguntou:
— E você? Como está indo? Como vai sua saúde?
Um pouco surpreso, Nando respondeu:
— Eu estou muito bem... Muito bem, mesmo!
E, recompondo-se rapidamente, indagou:
— Mas o que aconteceu? Por que essa idéia de não querer que Lascard a apóie?
— Não sou mais criança, papai — respondeu prontamente Beatriz — Para mim basta saber que, se eu precisar de alguma coisa, poderei contar com a assessoria de Lascard. Mas não faz nenhum sentido ficar telefonando para ele para dizer o que é que vou fazer no final da semana!
Nando não teve o que dizer.
Na verdade, ele sabia muito bem que Beatriz estava com a razão. Já não tinha mais idade para ser controlada e vigiada pelo pai, muito menos em se considerando que — Nando estava ciente disso — ela tinha ido para a França justamente para poder se sentir um pouco mais livre.
— É, minha filha... — murmurou ele — Preciso me convencer de que a gente cria os filhos para o mundo e não para nós mesmos... É um pouco difícil, mas eu vou conseguir me acostumar com a idéia.
Forçou uma risadinha e arrematou:
— Mas não deixe de me ligar, Beatriz... Você sabe que eu me preocupo, que a única coisa que desejo é vê-la feliz. Se para isso é preciso que fique um tempo longe da barra de minhas calças, assim seja!
Respirou fundo e, mudando de assunto, disse:
— Infelizmente, não estou conseguindo comprar a fazenda do Pedreira... Ele é mais teimoso que uma mula velha! Está passando por terríveis dificuldades financeiras, mas ainda assim, não quer se desfazer da propriedade.
— Esqueça isso, papai — falou Beatriz — Essa não é a única fazenda antiga que existe!
— Mas você gostou dela e eu não sou homem de desistir facilmente de minhas metas.
Fez uma pequena pausa e disse:
— Uma sua amiga telefonou, procurando-a.
Beatriz sentiu um calafrio na coluna vertebral e indagou, com esforço:
— Sim? E quem era?
— Uma moça chamada Laura. É estudante de jornalismo e ligou anteontem, sábado, pedindo-me o seu endereço aí em Paris. Disse que iria lhe fazer uma visita, pois estava de partida para Lyon, para um curso de qualquer coisa relacionada com assessoria de imprensa para grandes conglomerados empresariais.
Beatriz espremeu os miolos tentando lembrar quem poderia ser essa tal de Laura, estudante de jornalismo.
Não conseguiu relacionar o nome a nenhuma feição e, desistindo, falou:
— Bem... Quando ela chegar, estarei aqui, esperando-a. Talvez seja um pouco complicado nós nos encontrarmos, mas se ela telefonar, marcaremos em algum lugar.
Despediram-se, Nando recomendou mais uma vez que ela tomasse cuidado com tudo e com todos, pediu-lhe para ligar sempre e não conseguiu esconder a surpresa quando Beatriz lhe fez as mesmas recomendações.
— Mas o que é isso, menina? Agora é você que se preocupa com a minha saúde? É você que toma conta de mim? É alguma espécie de retaliação? — indagou, em tom divertido.
— Não se trata disso, papai — respondeu Beatriz — Apenas quero que tome mais cuidado com você mesmo. Não abuse. Não exagere. Lembre-se que você não tem mais vinte anos...
Bem...
Nando não precisava que o lembrassem desse pequeno, mas desagradabilíssimo detalhe. Realmente, ele não tinha mais vinte anos e nas últimas semanas, estava começando a se convencer disso.
Principalmente quando, à noite, Daisy se encostava nele, ronronando como uma gata no cio e...
Para desespero de Nando, aquela fogueira que antes ardia tão exuberante, até mesmo violenta, estava começando a se transformar num braseiro... Num humilhante borralho que mal servia para lhe aquecer os pés...



TREZE




Durante os meses que se seguiram, a vida de Beatriz, em Paris, foi um verdadeiro mar de rosas.
Ela e Pierre se amavam, estavam sempre juntos, variando o endereço: ora estavam no apartamento do rapaz, ora passavam duas ou três semanas no de Beatriz.
A jovem, além do curso sobre antigüidades e decoração que estava fazendo, ocupava seu tempo visitando museus, galerias de arte e principalmente antiquários, aprimorando a cada dia seus conhecimentos sobre o assunto que efetivamente mais a interessava: antigüidades latino-americanas e, dentro destas, as peças luso-brasileiras.
Ficou espantada com a quantidade de especialistas nessa área que havia em Paris e mais admirada ainda, com o nível de preparo técnico e conhecimento que eles possuíam. Não foram poucos os que dissertaram por quase uma hora sobre a arte barroca em Minas Gerais ou sobre as igrejas e oradas da Serra do Mar, no Litoral Norte do Estado de São Paulo. Sobre o Convento da Penha, em Vila Velha, Espírito Santo, ficou quase uma tarde inteira conversando com uma velha senhora parisiense, que sabia tudo sobre o Convento, sem jamais ter estado lá.
Dessa maneira, Beatriz estava vivendo um pedaço de sua existência, plena de felicidade.
Porém...
Sim, sempre precisa haver um porém, algo que sirva para empanar mesmo que minimamente a felicidade, para mostrar ao ser humano que a vida não é feita apenas de coisas boas...
E o porém de Beatriz estava justamente em Pierre.
Ela o amava, estava certa e ciente de que ele também a amava...
Mas...
Ele não queria assumir nenhum compromisso mais sério e, o que era muito pior, não conseguia admitir que a fidelidade fosse condição sine qua non para que uma ligação pudesse se estabilizar.
Já nas bases, Pierre encarava a relação homem-mulher, de uma maneira muito diferente do normal.
Para ele, não havia essa história de fidelidade, de posse absoluta, de exclusividade.
Era comum ele até comentar com Beatriz as suas aventuras com outras moças e muito freqüentemente ele nem aparecia para dormir em casa, uma vez que estivera com outra, em alguma alcova de hotel ou, então na própria casa da amante.
Beatriz, no começo, achou que conseguiria dominar esse fogo...
Relacionou o comportamento de Pierre com o do próprio pai, achou consigo mesma que ele era assim unicamente por ainda não ter encontrado a mulher de sua vida.
— Eu serei essa mulher — decidiu — E não vou perder essa batalha.
Mas, com o passar dos meses, ela acabou chegando à conclusão que a verdade era muito outra...
Pierre não se emendava, não aceitava os conceitos de Beatriz, dizia sempre que o amor precisaria ser o maior de todos os exemplos de democracia e de liberdade de expressão.
— O amor não pode ser uma cadeia, a união de duas pessoas não pode ser uma prisão! — dizia Pierre, enfático — Nós nos amamos, estamos conscientes disso e é o quanto basta. Se você tiver vontade de ir para a cama com um outro homem, por uma razão puramente instintiva, animal, sexual, vá! Isso fará com que se sinta bem, realizará uma fantasia. E é muito importante realizarmos as nossas próprias fantasias!
Mas, Beatriz não podia compartilhar dessa opinião.
Apesar do comportamento de seu pai, ela tinha sido criada em moldes muito severos e rígidos.
Assim, crescida em ambientes de moral até antiquada em muitos pontos de vista, ela não se via capaz de viver como Pierre achava correto.
Para ela, o sexo só fazia sentido se houvesse amor e a prova de amor era exatamente a dedicação, a entrega total e... exclusiva.
Nada dessas histórias de amor livre, amor democrático, relação ou união aberta, cada um com a sua vida.
Se era para cada um ter uma maneira diferente de viver e de se relacionar com as outras pessoas, nesse caso, para que permanecerem juntos?
Nada disso!
— Não me venha dizer que você sente ciúmes! — escarneceu Pierre — Mas que sentimento mais antiquado, mais ultrapassado!
E, professoral, vaticinou:
— Na sociedade moderna, efetiva e realmente evoluída, não há lugar para o ciúme!
Beatriz não concordava, absolutamente com essa postura.
Para ela, o ciúme fazia parte do amor e o sentimento recíproco de posse, deveria obrigatoriamente ser respeitado.
Evidentemente, por causa dessas divergências filosóficas, a relação entre os dois, começou a esfriar...
Beatriz passou a se demorar mais nas viagens que fazia ao interior da França e até mesmo a outros países da Europa para estudar antigüidades, ficava mais tempo em seu próprio apartamento, mesmo que sozinha e...
Bem...
Claro que de vez em quando os dois se encontravam, jantavam juntos, iam a uma boate...
Mas, as noites de amor desenfreado foram se tornando cada vez mais raras até que, uma bela tarde, quando Pierre ligou para Beatriz convidando-a para uma apresentação de ballet, num repente, a jovem disse que não queria ir. E, da mesma maneira, recusou o convite para jantar e para ir a uma casa de jazz.
Depois que Pierre desligou o telefone, Beatriz se perguntou por que razão recusara tão peremptoriamente o convite do rapaz, coisa que jamais faria em outra ocasião.
A resposta saltou-lhe aos olhos: ela simplesmente não estava mais querendo dar continuidade a uma relação que, havia já algum tempo, não fazia o menor sentido.
Beatriz já conhecia de velho, aquele filme. Eles iriam ao ballet, depois jantariam iriam ouvir um pouco de jazz...
E a noite acabaria entre os lençóis, como se eles não fossem mais do que amantes eventuais, como se ela não passasse de mais uma aventura na lista de conquistas de Pierre.
E isso, Beatriz não queria de maneira nenhuma...
— Sim, Pierre — disse Beatriz, quando o rapaz apareceu em sua casa, cerca de uma semana depois, aborrecido por ver recusados todos os convites que fazia — Seremos sempre muito bons amigos. E é justamente para preservar essa amizade que eu prefiro não mais sair com você.
Sorriu, olhou para as pontas de seus sapatos e murmurou:
— Eu me conheço... Nós nos conhecemos... Sabemos muito bem que não conseguiremos terminar um encontro sem a passagem obrigatória por uma cama... E eu não quero mais. Não quero dividi-lo com outras mulheres, Não me sentiria bem entregando-me para outro homem... Não haveria amor e, como eu considero o ato sexual como a materialização do amor, não havendo o que materializar, não faz sentido o ato em si.
Esforçando-se para não chorar, Beatriz finalizou:
— Por isso, decidi restringir o nosso relacionamento ao campo da amizade. Uma amizade pura e simples, sem qualquer outra manifestação diferente, sem desejos, sem maiores ardores. Será difícil para mim, Pierre. Principalmente para mim, pois eu o amo e estou segura de meus sentimentos. Quanto a você...
Não conseguiu sequer terminar a frase.
O pranto irrompeu, as lágrimas rolaram, cruéis e ao mesmo tempo aliviadoras. Beatriz levantou e correu para o quarto, trancando-se e não aceitando que Pierre a tentasse consolar.
Quando, várias horas depois, saiu do quarto, o rapaz já não mais estava por ali e, sobre a mesa da sala-de-jantar, havia um bilhete deixado por ele, que dizia:

Desculpe-me... Mas nossos conceitos básicos de relacionamento, são por demais antagônicos e conflitantes. Mas sou seu amigo. Sempre serei. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.
Sempre seu
Pierre

Aquela noite foi difícil...
Beatriz chorou muito, teve de lutar desesperadamente contra a vontade de ligar para seu pai e contar-lhe todas as mazelas, precisou se controlar com todas as forças para não sair de casa como uma louca, rumo ao apartamento de Pierre, pedir-lhe que a desculpasse, dizer-lhe que aceitaria quaisquer condições, desde que ele não a deixasse.
Mas, ao lado de toda essa dor e de todo esse desespero, havia — ainda falando bem alto — o orgulho de uma Medeiros de Albuquerque.
Beatriz não telefonou para o pai, não procurou Pierre e...
Não meteu uma bala na cabeça e tampouco ingeriu uma astronômica quantidade de barbitúricos.
Beatriz Medeiros de Albuquerque, simplesmente chorou.
Derramou suas lágrimas por um amor que sentia e que sabia não poder dar certo, jamais.
Chorou com a saudade dos carinhos de Pierre, das palavras doces que ele costumava dizer naquele momento esplêndido que é o instante do clímax, o auge da materialização do amor. Lamentou amargamente ter se dedicado tanto a ele, ter feito valer, pelo menos de sua parte, o item exclusividade, com tanta intensidade que não tivera ocasião de fazer amigas.
Amigas...
Uma amiga que a procuraria...
Onde estava essa amiga que tanto Madeleine quanto Mère Régine tinham mencionado?
— Não aconteceu — murmurou Beatriz, decepcionada com essa constatação — E da mesma maneira, nada ocorreu a meu pai e Pierre não é o homem de minha vida.
Ergueu os ombros com um suspiro, e disse, para si mesma:
— Em resumo... Era tudo mentira. Não passava de ilusão e a cada momento, mais e mais eu me convenço que Pierre arquitetou tudo isso só para me conquistar!
Era um pensamento que a enfurecia. Ter sido enganada daquela maneira, ter caído numa mentira tão primária... E, ainda pior e muito mais humilhante, era o fato de Beatriz ter acreditado em tudo aquilo, ter se deixado levar como se fosse uma criança ingênua, inocente e totalmente despreparada.
Sim...
Talvez seu pai estivesse certo em fazer questão de superprotegê-la. Talvez ela ainda estivesse muito despreparada para a vida e por causa disso, naquele instante, estava sofrendo.
— Sofrendo? — perguntou-se Beatriz — Mas eu não posso considerar isso como sofrimento! Na realidade, não passa de uma fase de meu aprendizado! Era preciso que eu passasse por estes percalços para que pudesse entender melhor as pessoas que me cercam e para que eu possa, mais tarde, me defender da hostilidade do mundo!
Lembrou-se, sem que aparentemente houvesse qualquer motivo para isso, da velha fazenda em Alfredo Chaves.
Sorriu consigo mesma, imaginando-se morando lá, escrevendo uma tese sobre antigüidades ou sobre a história do lugar, somente ela e mais ninguém...
— Talvez isolada de todos, sem a necessidade de manter contato com quem quer que seja eu venha a me sentir mais feliz, mais realizada... Mais eu mesma! — murmurou Beatriz.
Mas, ela sabia muito bem que isso não era verdade.
Beatriz, como toda pessoa normal, como todo ser humano, precisava da companhia de seus semelhantes para poder se completar.
Mesmo que nem sequer notasse essa companhia, mas...
Ela teria de existir.
O homem — seja macho ou fêmea — é um animal político, social e gregário. E Beatriz não poderia jamais fugir à regra.
Tanto essa premissa era verdadeira que, naquela noite, depois de ter dito a Pierre que não queria sair, Beatriz desceu, pegou seu carro e foi dar uma volta no Quartier Latin.
Sentia, de repente, uma necessidade imensa de ver pessoas, de estar no meio de algum movimento.
A solidão é um bem, sem dúvida nenhuma... Mas há um limite para tudo e, de vez em quando, até mesmo o mais ferrenho eremita sente a necessidade de conversar, de expor suas idéias, talvez até mesmo de desabafar alguma coisa que esteja sufocando sua alma.

*******

O famoso La Lumière, um pequeno e aconchegante bar freqüentado por estudantes, escritores pintores, artistas e intelectuais de todas as categorias, a imensa maioria verdadeiros ratos da Sorbonne, ainda estava lotado, apesar de já ser quase dez horas da noite.
Beatriz já tinha ido lá diversas vezes, sempre acompanhada por Pierre e, assim que entrou, logo se arrependeu de ter escolhido justamente aquele local, temerosa de encontrar o rapaz ali.
Com uma certa revolta contra si mesma, Beatriz caminhou por entre as mesas, dizendo-se que não tinha o menor cabimento ficar com medo de encontrar Pierre, mesmo que ele estivesse acompanhado por uma dúzia de garotas bonitas, várias delas sentadas em seu colo...
Sim, pois não era outro o motivo de Beatriz estar receosa de reencontrar Pierre num lugar público...
Em sua mente, ainda havia a marca daquela vez em New Orleans e, depois disso, as cicatrizes deixadas pelas muitas vezes que o rapaz, apesar de estar partilhando sua cama, saíra com outras mulheres, sem jamais se preocupar com o que ela pudesse sentir.
Mas, naquela noite, Pierre não estava lá...
Paradoxalmente, ao constatar a ausência do rapaz, Beatriz sentiu uma certa frustração. Percebeu o conflito de sentimentos, respirou fundo, pediu ao garçon que lhe trouxesse um Pernaud, e pensou:
— Não posso reagir assim... Pierre já faz parte do meu passado. Não existe mais, não há porque eu pensar nele.
Olhou ao seu redor e disse, para si mesma:
— Há muitos outros rapazes interessantes no mundo... Afinal, ele apenas foi o primeiro, certamente não será o último!
Foi nesse instante que viu uma jovem se aproximar de sua mesa, sorrir para ela e perguntar:
— Não se lembra mais de mim, Beatriz?
Beatriz ergueu os olhos para a moça, corou um pouco e, depois de um imenso esforço de memória, confessou:
— Sinto muito... Sei que é horrível e você vai me desculpar. Mas eu sou péssima fisionomista além de ser, realmente, muito descuidada com essa história de relacionar nomes a rostos...
A moça riu, sentou-se à mesa de Beatriz e disse:
— Sou Laura... Laura Vieira de Souza. Estivemos juntas num congresso estudantil há três anos em Ribeirão Preto e, depois, fomos colegas naquele curso de Arte Dramática em Petrópolis, cerca de seis meses depois...
Beatriz sorriu, inclinou-se para a frente, beijou as faces de Laura e falou:
— Mas é claro que me lembro de você! E agora, me lembro de outro fato... Você telefonou para meu pai, perguntando meu endereço!
E, como se a repreendesse, indagou:
— Por que não me procurou?
Laura acendeu um cigarro e respondeu:
— Procurei, sim! E três vezes, para ser mais exata. Só que não a encontrei. Imaginei que estivesse viajando.
Beatriz olhou tristemente para o copo que estava à sua frente e, enquanto Laura pedia ao garçon que lhe servisse um Pastis, falou:
— Eu estava na casa de meu namorado... Aliás, ex-namorado. Por isso, você não me encontrou.
E, de repente, começou a falar.
Sentiu uma vontade imensa de abrir o coração para aquela quase desconhecida, contar-lhe tudo, falar de seus dramas, de suas dúvidas, de seus conflitos...
Beatriz falou, chorou, queixou-se por quase meia hora.
Contou tudo, disse-lhe das histórias de Pierre com outras mulheres, de suas idéias quanto a uma união aberta em que cada um poderia fazer o que bem entendesse...
E terminou dizendo que estava desiludida, que não queria mais saber de ninguém e que só não voltava para o Brasil porque não tinha a menor vontade de ser novamente controlada pelo pai.
Nada falou a respeito de Madeleine ou de Mère Régine. Achou que seria idiota de sua parte, imaginou que estaria mostrando uma fraqueza intelectual muito grande e...
Subitamente, Beatriz se calou.
Laura estava ali...
Uma amiga de quem ela nem sequer se lembrava direito, alguém que ela jamais poderia esperar encontrar em Paris, num movimentado bar de intelectuais...
E ela estava, de uma maneira ou de outra, ajudando-a.
Claro...
Estava ouvindo suas queixas contra o mundo, estava servindo de psicoterapeuta!
— Meu Deus! — exclamou ela, empalidecendo — Será possível?
Laura olhou intrigada para a amiga e perguntou:
— O que aconteceu? O que é que você está dizendo?
Mas, Beatriz não respondeu.
Estava apavorada, começara a sentir um medo horrível, uma angústia que não conseguia controlar.
— Preciso ir embora — falou, levantando-se e deixando dinheiro suficiente para pagar dez litros de Pernaud — Preciso telefonar!
Nem sequer deu tempo a Laura de lhe dizer que poderia telefonar dali mesmo, pois M. Leclerc, o proprietário, já estava mais do que acostumado com os telefonemas até mesmo internacionais que os estudantes faziam.
Sem nem mesmo se despedir, ela saiu do bar, entrou em seu carro e, como se tivesse atrás dos calcanhares toda uma horda de demônios assustadores, arrancou em direção ao seu apartamento.

*******

— Seu pai foi viajar, Beatriz — informou Maria Auxiliadora, a governanta — Saiu esta tarde, para Alfredo Chaves. Parece que foi ultimar o negócio da Fazenda. De lá ele ia para Campos, no Rio de Janeiro e deverá chegar só amanhã no fim do dia.
Beatriz respirou aliviada.
Então, tudo estava bem...
Se seu pai tinha ido para Alfredo Chaves e estava planejando ir para Campos, não poderia jamais estar mal de saúde.
— Ele vai voltar cedo — continuou Auxiliadora — Ele foi de avião e você sabe que ele não gosta de voar à noite.
— Ótimo, Auxiliadora — falou Beatriz — Nesse caso, ligarei depois de amanhã. Não adiantaria eu ligar amanhã, pois será muito tarde, aqui na França e eu preciso dormir.
Desligou o telefone, despiu-se, espichou-se sobre a cama e murmurou:
— Coincidência? Laura ter aparecido aqui em Paris, terá sido uma coincidência? Ou será que tanto Madeleine quanto Mère Régine estavam certas?
Fechou os olhos e tentou adormecer, mas...
Não estava bem...
Como dizem os franceses, elle n’était pas bien dans sa peau...
Havia alguma coisa que a angustiava, parecia que tinha um peso sobre o peito, que sua mente insistia em fugir, em voltar para o Espírito Santo...
Já passava de quatro horas da madrugada quando a irritante e estridente campainha do telefone, chamou-a à realidade.
— Mas quem será a esta hora?! — perguntou-se, ao mesmo tempo que levava o fone ao ouvido.
Ouviu, já aterrorizada, já prevendo uma desgraça, a voz de Maria Auxiliadora, entrecortada por soluços:
— Ah, meu Deus...! Ah, meu Jesus...! Venha depressa, Beatriz... Aconteceu uma desgraça horrível com seu pai!







PARTE II




JOSÉ MIRANDA PEDREIRA




UM




Pedreira, mesmo que quisesse, não conseguiria esconder a excitação e a ansiedade que o possuíam.
Andando de um lado para o outro, no Aeroporto de Goiabeiras, em Vitória, ele tentava imaginar como estaria Beatriz, em que teria ela mudado, desde a última vez que a vira, fazia já mais de três anos.
— Ela sempre foi bonita — pensou, aproximando-se do bar para tomar um café — Provavelmente estará ainda mais bela e desejável, depois de ter se tornado mulher...
Sim, ele estava muito ansioso, muito curioso.
Seguira à risca as recomendações de Paulinho de Salvador, o pai-de-santo que, segundo o que podia imaginar, tinha sido o responsável direto pelo acidente que provocara a morte de Nando e de sua companheira, Daisy.
Daisy...!
— Ela mereceu! — pensou, com raiva — Foi uma ordinária, uma traidora, uma mercenária da mais baixa espécie!
Sorvendo aos poucos e com uma careta de desagrado o horrível café conillon que é servido na imensa maioria dos bares do Espírito Santo, deixou que seus pensamentos voassem para o encontro que tivera com o pai-de-santo, logo após ter recebido a notícia oficial da queda do avião de Nando Albuquerque.
Não pode evitar um arrepio e um estremecimento.
Aquele homem lhe dava medo...

*******

Paulinho de Salvador estava todo sorridente, vestido com uma túnica negra enfeitada com apliques dourados e prateados, sentado na sala dos fundos de sua tenda, a sala destinada aos trabalhos executados com a ajuda de Exu.
— E então? — perguntou o pai-de-santo — Está satisfeito, agora?
— Foi você, não é mesmo? — indagou Pedreira, sem responder à pergunta feita — Foi você que fez aquele avião explodir...
— Não fiz nada, meu amigo — falou Paulinho de Salvador, muito sério — Apenas pedi ajuda aos Guias das Falanges de Esquerda. Pedi ajuda para você. E, se eles acharam que suas reivindicações mereciam alguma atenção...
— Mas não era preciso matar! — exclamou Pedreira, deixando transparecer um certo remorso e mostrando que ainda havia muitos conflitos em sua alma.
— Não pedi que os matassem — disse o pai-de-santo, falando bem devagar — Pedi, apenas que resolvessem o seu problema.
Ergueu os ombros em um gesto de displicência e juntou:
— Não escolhi nenhum caminho para isso, não sugeri nenhum meio... Isso foi obra dos Guias. Eles é que decidiram o que deveria ser feito e qual seria a melhor maneira de solucionar o caso.
Fazendo sinal para que Pedreira ocupasse uma cadeira baixa, à sua frente, Paulinho de Salvador continuou:
— Você sabe muito bem que, na realidade, esse era o único caminho. Era preciso afastar Nando de sua vida e...
Abriu um sorriso e disse:
— E eu sabia que você estava ansioso para se vingar de Daisy. Inclusive, sabia que se você tivesse coragem suficiente, tê-la-ia matado com as próprias mãos!
Pedreira nada teve para dizer.
Mais uma vez, Paulinho de Salvador estava certo... Se ele tivesse tido coragem e oportunidade, teria dado um jeito de espancar Daisy até que ela estrebuchasse entre seus dedos.
Mas, além de tutano para um ato desses, faltara a ocasião.
Nando não a deixava sozinha jamais, estava sempre ao seu lado e, quando por acaso precisava se afastar numa viagem de negócios em que a presença de Daisy não fosse conveniente, o empresário enviava a amante para um passeio em Salvador, no Rio de Janeiro, em São Paulo ou até mesmo em Miami.
Durante algum tempo, Pedreira alimentara a esperança de que Daisy, justamente por ser como era, traísse Nando durante essas viagens.
Porém, muito cedo descobriu que a moça não era nem um pouco imbecil, sabia muito bem que seria a coisa mais fácil do mundo para o amante, descobrir se ela se mantinha ou não fiel. E, assim, quando longe de Nando Albuquerque, por não ter o mínimo interesse em perder a sua galinha dos ovos de ouro, Daisy se comportava como uma autêntica freira, nem sequer olhando para os rapazes e senhores que a assediavam onde quer que estivesse.
E é claro que, quando deixava Daisy sozinha, Nando fazia questão de levá-lo junto, mesmo que fosse apenas para lhe servir de motorista. Dessa maneira, não haveria a menor possibilidade de Pedreira tentar um encontro com a mulher.
Como se não bastasse, Nando parecia fazer questão de humilhá-lo, mostrando para quem quisesse ver que estava perfeitamente a par do que se passava no íntimo de seu funcionário:
— Sigo a teoria de todos os presidentes e ditadores latino-americanos: quando viajo, carrego comigo o adversário mais próximo. Assim, tenho certeza do que ele está fazendo e fico seguro quanto à impossibilidade de uma traição...
A voz do pai-de-santo, trouxe Pedreira novamente à Terra, tirando-o quase brutalmente dessas divagações:
— Agora, meu amigo... Vamos passar à perseguição de metas mais elevadas.
Olhou intensamente para Pedreira e prosseguiu:
— Você não pode se contentar com uma vingançazinha de colegial que perdeu a namorada ou, no máximo, de amante traído. Você sabe que precisa muito mais, que os objetivos que quer alcançar são muito maiores e mais altos.
Abriu os braços num gesto amplo, como se quisesse abranger o mundo, falando:
— Você poderá ser muito grande, Pedreira! Poderá dominar todas essas empresas, assumindo o lugar de Nando!
— Mas isso é literalmente impossível! — protestou Pedreira — Está certo que sou um dos diretores da holding, na realidade, sou um dos homens de maior poder de decisão, justamente por ter estado tão próximo de Nando nestes últimos tempos...
Meneou a cabeça tristemente e resmungou:
— Mas, daí a assumir a presidência... O passo é muito longo! E há obstáculos intransponíveis, como por exemplo, o próprio Conselho Diretivo e...
Erguendo o rosto para o pai-de-santo, completou:
— E há Beatriz, a filha de Nando e que, por lei, é a herdeira de tudo!
Paulinho de Salvador sorriu.
Pousando a mão sobre o ombro direito de Pedreira, ele falou:
— Pois é justamente aí que se encontra o caminho, meu amigo...
Pedreira franziu as sobrancelhas, com expressão de quem não estava entendendo muito bem o que o pai-de-santo queria dizer.
Com voz sumida, temendo que Paulinho de Salvador estivesse planejando destruir também Beatriz, ele balbuciou:
— Não vai adiantar nada... afastá-la. Mesmo Beatriz não tendo herdeiros diretos, o controle acionário jamais viria para a minha mão.
— Há uma maneira muito fácil e muito eficiente, Pedreira — falou o pai-de-santo, baixando a voz, como se tivesse medo que alguém mais pudesse escutá-lo.
Quase sussurrando ao ouvido de Pedreira, Paulinho de Salvador, disse:
— Case com Beatriz...
Pedreira arregalou os olhos, não querendo acreditar no que ouvira.
— Casar-me com ela?! — fez, espantado — Mas não há a menor chance!
O pai-de-santo soltou uma gargalhada e disse, em tom de escárnio:
— Pode ser... Pode ser que você não tenha a menor possibilidade de tornar esse sonho uma realidade. Mas...
Mostrou com os olhos o ambiente em que se encontravam, e acrescentou:
— Para os Orixás, não existe o impossível. E, quando pedimos ajuda dos Guias da Falange de Esquerda, as coisas ficam ainda mais fáceis!
Pedreira, em seu íntimo, era obrigado a duvidar.
Afinal, ele conhecia muito bem suas limitações, sabia que Beatriz jamais e em tempo algum haveria de se impressionar por ele, quanto menos se interessar a ponto de aceitá-lo como marido, companheiro, amante ou fosse lá que diabo fosse.
Mas, por outro lado, depois do que acontecera, Pedreira tinha razões de sobra para começar a acreditar que, se Paulinho de Salvador e seus Guias assim o desejassem, qualquer coisa, por mais absurda que pudesse ser, tornar-se-ia possível.
O pai-de-santo, muito sério, continuou:
— Mas é claro que, para um trabalho desse porte e dessa natureza, você vai precisar dispor de alguma coisa. Há um preço a pagar, pelo menos pelos materiais que serão utilizados nos despachos.
Mas Pedreira nem estava prestando atenção às palavras de Paulinho de Salvador.
Tinha, isso sim, os pensamentos voltados para uma cena que começava a se desenhar em sua mente, uma cena que, se de fato pudesse acontecer, seria simplesmente maravilhosa...
Sim... Lá estava ele, segurando a mão de Beatriz, os dois muito juntos, à frente de um Juiz de Paz...
E a moça sorria, os olhos brilhando muito, dizendo que sim, que aceitava José Miranda Pedreira como seu marido...
Mais uma vez, a voz de Paulinho de Salvador arrancou-o de seus pensamentos, perguntando:
— E então? O que acha da idéia?
— Excelente — respondeu prontamente Pedreira — O que precisarei fazer?
O pai-de-santo segurou a própria fronte com ambas as mãos, pronunciou algumas palavras que Pedreira não conseguiu entender e, com os olhos fechados, depois de quase um minuto de concentração, disse:
— Beatriz está chegando a Vitória, você sabe disso, tem o horário e o número do vôo que a trará para o Espírito Santo. Vá buscá-la no Aeroporto, torne-se a sua sombra.
Voltando a olhar para Pedreira, acrescentou:
— Mas, antes de ir buscá-la, você deverá ir a um cemitério.
Pedreira fez uma careta de desagrado.
Não sentia a menor atração por cemitérios ou qualquer coisa que se relacionasse com mortos.
— Qualquer cemitério — disse Paulinho de Salvador.
Deu uma risada e juntou:
— E não precisa ser à noite. Sei muito bem que você morre de medo de entrar nesses lugares à noite.
Um pouco mais aliviado, Pedreira indagou:
— E o que eu precisarei fazer, uma vez no cemitério?
— Deverá procurar um túmulo recente — respondeu o pai-de-santo — Não pode ser um túmulo desses fechados, que parecem mais uma capela. Precisa ser uma cova rasa, de terra.
Fez uma pausa para que Pedreira assimilasse bem o que ele dissera e prosseguiu:
— Você apanhará um punhado de terra de cada um dos quatro cantos do túmulo, guardando-os em um saquinho de pano preto. Precisa ser um saquinho de algodão. Concentre-se bem, pense em Beatriz tornando-se sua esposa. Acenda uma vela preta e outra vermelha em cada lugar de onde você tirou a terra e peça a proteção de seus Guias da Falange de Esquerda.
Olhou para Pedreira, perguntando:
— Está me acompanhando? Não vai fazer nenhuma confusão?
— Fique sossegado — respondeu este — Até agora, estou entendendo direitinho o que é preciso fazer.
Paulinho de Salvador fez um sinal afirmativo com a cabeça e continuou:
— Muito bem. Depois disso, você deverá jogar o saquinho com a terra no mar. Simplesmente jogue, sem nada dizer, apenas pensando com a maior intensidade possível, na imagem de Beatriz entregando-se a você.
Sorriu, levantou-se, mostrando claramente que a entrevista estava terminada, e arrematou:
— A partir daí, você poderá ir buscá-la no Aeroporto.
Pedreira ia perguntar se a moça já estaria pronta para cair em seus braços, mas Paulinho de Salvador, antecipando-se à pergunta, falou:
— Não pense você que isso será suficiente. Esse trabalho é apenas o começo, há muito mais para ser feito. É preciso amolecer o coração de Beatriz e fazê-lo bater só por você.
Acompanhando Pedreira até a porta, disse:
— Vou começar a trabalhar nesse sentido a partir de agora. Por isso, vou precisar de material. Seria bom se pudesse me deixar algum dinheiro para as despesas...
Pedreira não vacilou.
Meteu a mão no bolso, sacou o talão de cheques, preencheu uma folha com uma quantia que daria para o sustento mensal de uma família de cinco pessoas, e falou:
— Tome... Se precisar de mais dinheiro, é só me avisar.
Sorriu, despediu-se do pai-de-santo e finalizou:
— Algo me diz que este é o melhor investimento que fiz até hoje... Muito obrigado!

*******

Acabando de tomar o café, Pedreira lançou um olhar para fora do prédio do Aeroporto de Goiabeiras.
Chovia a cântaros, o céu carregado com nuvens cor de chumbo, parecia que estava prestes a desabar sobre Vitória, em um formidável espetáculo de pirotecnia, tal era a quantidade de raios e relâmpagos.
— Com esse tempo... Acho que o avião de Beatriz vai atrasar...
Confirmando sua suposição, menos de um minuto depois, a voz impessoal que saía dos alto-falantes, no saguão do Aeroporto, anunciou um atraso de uma hora no pouso do avião que vinha de São Paulo.
— Maldição! — exclamou Pedreira — Só me faltava essa, agora!
Olhou, mais uma vez, para fora.
Se não estivesse chovendo tanto, até que compensaria ele ir para o escritório. Depois voltaria para apanhar Beatriz.
Mas, sob aquela cortina de água...
Não tinha nem como chegar ao estacionamento, onde deixara o automóvel!
— O jeito é esperar... — pensou, dirigindo-se para a livraria — Vou comprar uma revista e ficar aguardando a chegada de Beatriz.
Enquanto isso, no Aeroporto Internacional de São Paulo, Beatriz já tinha passado pela Alfândega e estava esperando a chamada para o vôo de conexão com Vitória.
Impaciente, viu que já havia um atraso de mais de uma hora no embarque e, dirigindo-se à moça do balcão de informações da companhia aérea, perguntou-lhe o que estava acontecendo.
— Vitória está sob uma violenta tempestade — informou a funcionária — Teremos de esperar que o tempo melhore.
— Há alguma previsão? — indagou Beatriz.
— Infelizmente, não... Essa mudança de tempo não estava prevista pela meteorologia. Pelo menos, não fomos informados da possibilidade de tempestades sobre o Espírito Santo.
Sorriu, procurando ser simpática e mostrando estar muitíssimo bem treinada para exercer aquela função, acrescentou:
— Nossa Companhia fará o possível e o impossível para minimizar o desconforto dessa espera, senhorita. Creio que dentro de meia hora, o tempo terá melhorado, lá em Vitória e o avião poderá decolar. Porém, se de todo não pudermos deixar São Paulo ainda hoje, a Companhia já tem reservados apartamentos num hotel de cinco estrelas para os passageiros poderem pernoitar confortavelmente.
Beatriz suspirou.
Aquilo não estava em sua programação e, mesmo que passasse a noite num hotel de luxo, sua situação estaria muito ruim.
Viera de Paris para o enterro do pai — marcado para o dia seguinte, às dez horas da manhã — e se tivesse que pernoitar em São Paulo, com toda a certeza, chegaria atrasada.
— Não posso ficar em São Paulo — disse ela — Meu pai será enterrado amanhã de manhã e se acontecer mais um atraso...
A funcionária da Companhia Aérea fez uma expressão de pena e murmurou:
— Compreendo a sua situação, senhorita... Mas infelizmente, não podemos fazer nada. O Aeroporto de Vitória está fechado para pousos e decolagens e não há nenhuma previsão de abertura... Não tenho como ajudá-la, nesse ponto.
Beatriz agradeceu, afastou-se em direção ao snack-bar para fazer um lanche e, enquanto aguardava o garçon trazer o sanduíche que pedira, um senhor distinto, de cabelos grisalhos e usando um terno caro, aproximou-se de sua mesa.
Sem pedir licença, para surpresa de Beatriz, ele ocupou uma cadeira diante dela e, com um sorriso nos lábios, falou:
— Ouça, Beatriz... Você não deve se esquecer que as Forças Protetoras, quando o motivo é bem justificável, podem interferir na ordem dos acontecimentos, provocando alterações profundas até mesmo na cronologia dos fatos. Se está acontecendo um impedimento para a sua ida a Vitória por via aérea, porque não continua a viagem de ônibus? Há um que parte agora, às dezesseis horas... Você poderá ir dormindo, chegará a Vitória perto de oito horas da manhã, bem a tempo para o enterro de seu pai.
Antes que Beatriz se recuperasse da surpresa, antes que ela se conscientizasse de que alguma coisa muito estranha estava acontecendo, pois era impossível que aquele desconhecido soubesse seu nome e os motivos de sua viagem, o homem se pôs de pé e disse, arrematando:
— Além do mais, você não correrá o risco de se deparar com o inimigo...
Quando, alguns segundos mais tarde, Beatriz conseguiu por fim, voltar a ser dona de suas reações, o homem tinha simplesmente desaparecido...
— Mas como...? — perguntou-se ela — Como ele poderia saber de tudo isso?
Ficou ali parada, olhando para o sanduíche que o garçon pusera à sua frente, já completamente sem apetite, até esquecida de que o tinha pedido.
Lutando contra um estranho torpor que parecia estar querendo tomar conta de seu corpo e até mesmo de seu espírito, sacudiu a cabeça, apanhou o sanduíche e começou a comê-lo.
— Mas é verdade... — pensou, já conseguindo raciocinar com mais clareza — Ele tem toda a razão! Irei de ônibus!
Estava decidido: despacharia suas malas pelo avião e tomaria um táxi até a Estação Rodoviária do Tietê, onde embarcaria no primeiro ônibus para Vitória.
Já caminhando para o guichê da Companhia Aérea para cuidar de sua bagagem, murmurou:
— Mas não consigo entender como é que ele sabia de tantos detalhes e o que é que ele quis dizer com aquela história de evitar um encontro com o inimigo...!

*******

Pedreira ficou furioso quando, depois de esperar por mais de três horas, foi perguntar no balcão de check-in a respeito do vôo que deveria trazer Beatriz, e o informaram que não havia a menor previsão de chegada.
— É possível que o vôo tenha sido transferido para amanhã, senhor — disse o funcionário da Companhia Aérea — O mau tempo parece ter estacionado em cima de Vitória e, por isso, é bem provável que esse avião não decole de São Paulo antes de seis horas da manhã.
Pedreira teve de se controlar para não soltar um palavrão dos mais cabeludos, um daqueles de fazer corar qualquer carregador das docas.
Mas, ele sabia que de nada adiantaria deblaterar e reclamar, pois a culpa, no máximo seria de São Pedro e jamais dos funcionários do Aeroporto ou mesmo da Companhia Aérea.
Assim, sem qualquer outra alternativa, pôs a revista que estivera lendo, sobre a cabeça para se proteger um pouco da chuva e, em passos rápidos, alcançou seu automóvel.
— Perdi a tarde inteira! — exclamou, sentando-se à direção do veículo — Agora, não adianta mais ir para o escritório!
Ligando o motor, murmurou:
— Bem que Paulinho de Salvador poderia ter me avisado disso... Para um pai-de-santo que é capaz de realizar coisas incríveis e fantásticas como ele, seria muito fácil saber que estaria chovendo esta tarde e que não haveria qualquer pouso ou decolagem aqui em Vitória!
Meneou a cabeça, em sinal de dúvida e falou, já a caminho do Jardim da Penha, onde residia:
— Se eu não tivesse certeza de que foi ele quem fez explodir o avião de Nando, diria que tudo isso não passa de mera enganação!




DOIS




Os dois caixões, lacrados, desceram juntos para nichos vizinhos no túmulo da família Medeiros de Albuquerque.
Por determinação de Beatriz, Daisy fora enterrada com Nando, como se fosse a sua última esposa.
— Não me interessa o que as pessoas possam dizer — falou a moça — Daisy foi companheira de meu pai em seus últimos momentos, de uma maneira ou de outra, ela contribuiu para a sua felicidade. Não é justo que ela seja enterrada em um túmulo de indigente. Faço questão absoluta que seus restos venham para a sepultura de nossa família e que seu nome seja inscrito na lápide, ao lado dos parentes que ali estão enterrados.
Não satisfeita, ainda antes do féretro partir, deu ordens no sentido de se procurar os parentes da moça para que eles fossem comunicados de sua morte e para que recebessem uma gorda quantia em dinheiro, a título de indenização.
— Ela não teria morrido se não estivesse com meu pai. É mais do que natural que sua família seja indenizada, já que não havia quaisquer direitos hereditários a receber e nem mesmo um testamento em que seu nome estivesse incluído.
Evidentemente, a atitude de Beatriz deu muito o que falar, tanto dentro das empresas Medeiros de Albuquerque, quanto no seio da sociedade de Vitória, já por definição, sempre pronta para receber, criar e espalhar notícias desse tipo.
Mas, Beatriz não se abalou.
Nem mesmo com as admoestações do padre que viera rezar a Missa de Corpo Presente e que, no princípio, se decidira a proibir que o corpo de Daisy permanecesse ao lado do de Nando.
— Era uma mulher que vivia em pecado! — disse ele, horrorizado — Uma pecadora pública! Não merece, não pode ter as celebrações e solenidades católicas do post-mortem imediato!
Beatriz olhou torvamente para o sacerdote e falou:
— Nesse caso, padre... Não haverá qualquer Missa. O senhor pode ir embora, tratar de sua vida. Se Daisy é considerada como uma pecadora pública e portanto, não-merecedora da liturgia católica para os mortos, meu pai também o era e não merece nada disso, da mesma maneira que ela. Assim, não há nenhum sentido em se rezar missas e se ficar recitando orações e ladainhas.
Mordaz, acrescentou:
— Acho muito engraçado a Igreja Católica dizer aos quatro ventos, que a Bondade de Deus é Infinita, que o Seu Perdão é Magnânimo... Os mesmos padres que afirmam isso também dizem, determinam, que este ou aquele espírito está irremediavelmente perdido! Para eles, morrer em estado de pecado é o suficiente para que as portas do Paraíso Celeste se fechem definitivamente, de maneira a jamais ali poderem entrar!
Fixando o padre nos olhos e sem esconder a raiva e a revolta que estava sentindo, finalizou:
— É por causa de coisas assim, de atitudes como essa, de prepotências desse gênero, que a Igreja Católica está perdendo terreno mundialmente. Como acreditar em tantas contradições? Como seguir as normas comportamentais de uma instituição que afirma que uma determinada situação é de uma certa maneira mas que, na hora da prática, jamais passa de um talvez?
O padre foi inteligente o bastante para perceber que não deveria contrariar Beatriz.
Rezou a Missa, falou e repetiu o nome de Daisy tantas vezes quantas falou e repetiu o nome de Nando.
Além disso, acompanhou o féretro, assistiu ao enterro e ao fechamento do túmulo e, quando Beatriz veio se despedir dele e perguntar quanto estava devendo, o sacerdote não quis cobrar nada...
O que era bastante significativo, pois todos sabiam que um enterro, com Missa de Corpo Presente e o acompanhamento do padre até o túmulo custava, para o bolso do cidadão comum, mais do que o equivalente a um salário mínimo.
Durante o enterro, Beatriz se surpreendeu por não ter derramado uma lágrima sequer e, por diversas vezes, quando as palavras do padre faziam reavivar muito a imagem do pai, parecia-lhe que Nando lhe dizia, ao ouvido:
— Você é a dona, agora... Precisa ser forte! Não chore! Não dê mostras de estar fragilizada, isso fará com que os abutres do Conselho Diretivo se aproveitem da situação e façam com que você deixe escapar o controle da empresa!
Tinha, também, a impressão de que havia algo mais que Nando tentava lhe dizer, mas por alguma razão, ela não conseguia entender.
— Ora... — pensou ela — É apenas uma impressão... É algo que está dentro de meu subconsciente e que agora, devido à situação, devido às circunstâncias, está vindo à tona.
De fato, analisando o recado mais friamente, Beatriz podia perceber que ele era nada mais que a repetição do óbvio, algo que ela já sabia de velho.
Era mais do que claro que Beatriz precisaria ser forte e que não deveria mostrar o seu lado frágil, desprotegido.
E, enquanto o padre finalizava sua oração, dizendo que Deus haveria de dar paz às almas destes seus filhos que, em vida, como todos os seres humanos, pecaram e cometeram desatinos, mas que, agora, no Seio do Senhor, estariam imunes às tentações terrenas, Beatriz jurou para si mesma que haveria de substituir perfeitamente o pai e que este, estivesse onde estivesse, haveria de sentir orgulho da filha.
Foi quando chegou à sua casa, uma imponente mansão na Ilha do Boi, que Beatriz começou a perceber, não sem uma grande dose de medo, que tudo quanto Madeleine e Mère Régine tinham dito, acabara por acontecer.
Trêmula, bastante desnorteada, sentiu-se de repente terrivelmente sozinha e desamparada.
Se as predições das duas mulheres tinham acontecido, ela teria pela frente terríveis dificuldades com o Conselho Diretivo da holding.
E não teria absolutamente ninguém para aconselhá-la, para lhe emprestar um ombro onde pudesse encostar a fronte e chorar seus desesperos, suas dúvidas, seus conflitos.
Esforçando-se para manter a calma e o equilíbrio, foi sentar-se à beira da piscina, pedindo para um dos muitos serviçais que perambulavam por ali — curiosos, querendo ver se a patroinha tinha mesmo fibra para agüentar a enorme carga de responsabilidades que, de repente, lhe tinha sido jogada sobre os ombros — que lhe preparasse uma dose reforçada de uísque.
Tinha começado a tomar seu drinque, quando escutou o telefone tocar e, momentos depois, um outro rapaz uniformizado apareceu com o telefone sem fio, dizendo:
— Acho melhor a senhora atender, dona... Eu não entendo a língua que esse homem está falando!
Beatriz quase arrancou o aparelho das mãos do empregado...
Não era preciso ser nenhuma vidente para saber que quem a chamava, lá do outro lado do Atlântico, era Pierre...



TRÊS




— Pierre! — exclamou Beatriz, sem conseguir disfarçar a alegria que estava sentindo — Pensei que tivesse esquecido de mim!
— Como poderia esquecê-la, minha querida? — perguntou o rapaz — Já lhe disse mil vezes que você é a mulher de minha vida!
O sorriso que estava nos lábios de Beatriz, murchou.
Sim...
Muitas e muitas vezes, Pierre lhe dissera aquilo.
Principalmente naqueles momentos do depois, quando a deliciosa lassidão do pós-êxtase invade o corpo e faz com que o espírito fique muito mais ao alcance da compreensão humana.
Porém, o fato de Pierre ter afirmado e jurado tantas e tantas vezes que Beatriz era a mulher que lhe faltava, a âncora espiritual que precisava neste mundo racional e cruel, não o impedira de procurar tantas outras e de fazê-la sofrer tanto...
Como Beatriz permanecesse em silêncio, Pierre falou:
— Fiquei sabendo da morte de seu pai, querida... Sinto muito... Você sabe que pode contar comigo, se estiver precisando de alguma coisa.
Beatriz mordeu os lábios, esforçando-se para não chorar.
Sim...
Ela estava precisando...
Não de alguma coisa, mas sim dele, de Pierre, do homem que lhe mostrara o caminho da felicidade e que tão incrivelmente fechara-lhe as portas da esperança de uma vida a dois nos moldes naturais, corriqueiros, comuns à imensa maioria dos casais que se amam de verdade.
Beatriz teve de fazer um esforço incomensurável para controlar sua vontade de pedir a Pierre que embarcasse no primeiro avião e viesse ficar com ela.
Mas, a jovem sabia que jamais poderia fazer isso.
Ela tinha que ser forte, tinha que esconder a sua própria fragilidade, inclusive dela mesma!
E confessar a Pierre que estava necessitando de seu ombro, de sua força e energia, seria o cúmulo da fraqueza!
— Obrigada, Pierre — disse Beatriz, esforçando-se para dar um tom frio à sua voz — Mas não estou precisando de nada. É claro que este é um momento difícil, mas eu vou conseguir superá-lo. Pode ficar descansado, que eu não vou naufragar.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso, minha querida — retrucou Pierre — Sabe muito bem que sempre acreditei em sua capacidade.
Houve uma curta pausa e Pierre perguntou:
— Quando pretende voltar para Paris?
— Não sei — respondeu a moça — Acho que vai ser difícil... Tenho muito trabalho pela frente e desconfio que minha presença permanente à testa da holding será fundamental para a continuidade do trabalho de papai...
— Você está certa — admitiu Pierre — Deve estar presente a tudo, deve estar muito bem afiada no que diz respeito aos problemas de suas empresas e, principalmente, não deve delegar muitos poderes aos seus assessores e muito menos aos componentes do Conselho Diretivo.
Beatriz franziu as sobrancelhas e estranhou:
— Você é muito engraçado, Pierre... Durante todo o tempo que...
Ficou em silêncio alguns segundos, mordeu a língua, acabou erguendo os ombros e continuou, num sopro:
— Durante todo o tempo que estivemos juntos, você sempre falou que uma das regras básicas do sucesso em uma holding, é justamente a delegação e a descentralização de poderes! Como é que, de um momento para o outro, você me aconselha exatamente o contrário?
Pierre riu e respondeu:
— Eu falava, naquela ocasião, de uma holding normal, com a presidência afinada com o Conselho Diretivo...
Depois de uma pausa de efeito retórico-enfático, Pierre prosseguiu:
— Não é o seu caso, no momento, Beatriz. Você está à testa de uma holding que era controlada por um homem de muita fibra e muito tirocínio político e comercial. Seu pai morto, os velhotes que compõem a mesa do Conselho Diretivo, não vão aceitar muito facilmente o seu comando e, muito menos, o seu domínio. Por isso, para evitar que eles resolvam tomar as rédeas da situação, você não pode delegar poderes e não pode descentralizar o mando, muito menos o caixa. Tenha paciência, trabalhe muito, seja persistente. Sei que você vai vencer, mas só o conseguirá se não der oportunidade a que a comam pelos pés!
Tomou fôlego e continuou:
— Tenha sempre em mente as palavras de Madeleine e de Mère Régine. Acredite que as batalhas nesta dimensão ficam mais fáceis, quando podemos contar com o auxílio de energias ainda muito pouco explicadas em nível terreno!
Como se metralhasse Beatriz com suas palavras, Pierre acrescentou:
— Há pessoas ao seu redor, que também sabem disso. Só que estão usando essas energias de maneira negativa, de forma a prejudicá-la, e muito! Por isso, tome cuidado! Não se fragilize, defenda-se, procure ajuda, se necessário! E ajuda espiritual, cósmica, astral... É desse tipo de auxilio que estou falando.
— Quem está contra mim a esse ponto? — quis saber Beatriz — Quem poderia ter tanto interesse assim em me prejudicar ou, como você está deixando entender, em me destruir?
Pierre ficou calado por um momento e respondeu:
— Isso, ainda não sei... Ainda não me foi revelado.
Pareceu a Beatriz que Pierre sorria, aquele seu sorriso carregado de carinho, um sorriso que ele sabia fazer tão bem, enquanto estiveram juntos...
— Não se preocupe com isso por enquanto, minha querida. O importante é você estar consciente de que alguém quer prejudicá-la. Por isso, trate de se proteger!
Conversaram mais alguns minutos, despediram-se, Pierre a fez prometer que ligaria sempre.
— Quero manter contato com você, Beatriz — disse ele — Não sei se está lembrada, mas eu faço parte de sua vida. Mesmo que você não o queira admitir!

*******

Foi depois de ter desligado o telefone que as perguntas começaram a surgir na mente de Beatriz.
Como Pierre tinha podido saber da morte de seu pai?
Ela nada dissera a ninguém, nem mesmo à desagradável e implicante concièrge do prédio em que morava...
E quem, dentro da holding poderia estar querendo prejudicá-la?
Aqueles senhores sisudos, severos, do Conselho Diretivo, viram-na crescer, todos eles tinham a mesma idade de Nando...
E ela, pobrezinha!
Não passava de uma mocinha inexperiente que, da noite para o dia, tinha sido obrigada a assumir a presidência de um complexo empresarial cujos limites ela mal conhecia.
De mais a mais, todos eles estavam muitíssimo bem do ponto de vista financeiro, sabiam por intuição que poderiam perfeitamente continuar como estavam, pois Beatriz jamais teria coragem de contradizê-los.
— Pelo menos, por enquanto... — pensou Beatriz, corrigindo-se — No momento, ainda não sei nada a respeito dos negócios, tenho é que aprender com eles. Depois, à medida que eu for me enfronhando nos problemas da empresa, irei assumindo efetivamente o comando até conseguir alcançar o mesmo nível de poder que tinha papai!
Segurando o copo de uísque numa mão e o telefone sem fio na outra, levantou-se e entrou na casa, rumando para o escritório de Nando.
Com muita razão, achava que o melhor modo de iniciar sua vida como empresária, seria fazendo uma vistoria minuciosa na escrivaninha do pai, à procura justamente de anotações que a pudessem ajudar a melhor compreender tudo o que se passava nos bastidores da empresa.
A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi uma grande pasta marrom, cheia de papéis e rotulada com uma etiqueta em que estava escrito Papéis da Fazenda Rio Preto.
Sentiu um aperto no estômago...
Então, estavam ali os documentos da Fazenda que a encantara...
Abriu a pasta, viu as escrituras assinadas, viu uma cópia do recibo emitido por José Miranda Pedreira...
— Papai conseguiu... — murmurou.
Com uma ponta bem grande de orgulho, disse:
— Aliás, acho que ele sempre conseguiu tudo o que quis! Voltou a olhar o recibo, viu mais uma vez o nome de Pedreira escrito ali e, semicerrando os olhos, falou:
— Vou precisar de um assessor direto. Alguém capaz, que conheça a empresa perfeitamente e que possa me ajudar nestes primeiros meses...
O nome de Pedreira, estava ali, como se fosse uma sugestão.
— Mas eu não gosto dele... — pensou Beatriz, torcendo o nariz — Há alguma coisa nesse homem que me causa uma péssima impressão!
Porém, havia muito mais a considerar.
Pedreira tinha sido o assessor direto de seu pai durante os últimos cinco anos e, na realidade, Nando jamais se queixara dele como funcionário a não ser durante aquela fase difícil que Pedreira atravessara, quando dera para beber e para perder dinheiro.
— Se eu for analisar com bastante critério e cuidado — pensou a moça — a culpa foi em grande parte de meu próprio pai... Afinal, foi ele que literalmente tirou Daisy do pobre Pedreira... E foi depois disso que ele começou a degringolar.
Fechou a pasta com os documentos da Fazenda Rio Preto, deixou-a sobre a mesa e repousou o queixo entre as mãos, pensativa.
Pedreira perdera a mulher para seu pai. Depois, fora obrigado, por causa das muitas dívidas que contraíra, a vender também para Nando, seu único bem, ou seja, a fazenda que custara tanto a adquirir.
— De fato... — pensou Beatriz — A vida não foi muito gentil para com o Pedreira... Ele já sofreu muito, já passou por etapas muito difíceis!
Levantando-se, murmurou:
— De mais a mais, ele já está acostumado com o cargo de assessor da presidência. Com certeza, sabe tudo a respeito da holding, tem na ponta da língua a resposta e a solução para todas as dificuldades que eu possa vir a enfrentar.
Saindo do escritório e indo para seu quarto, apanhou o telefone e discou para a empresa.
— Quero falar com o doutor Pedreira... — disse para a telefonista.
Menos de quinze segundos depois, Pedreira atendeu:
— Pois não, Beatriz... Em que lhe posso ser útil?
— O que está fazendo agora? — perguntou a moça.
Pedreira ficou calado por alguns instantes e, por fim, respondeu:
— Estou arrumando minhas gavetas. Esvaziando-as...
Com espanto na voz, Beatriz indagou:
— Esvaziando suas gavetas? Mas a troco de quê? Pretende ir embora da empresa?
— Não — respondeu Pedreira — Mas é uma questão de praxe... Quando muda a presidência de uma empresa, normalmente o assessor da gestão anterior é deslocado para outro setor.
Forçou uma risadinha e juntou:
— Isso, quando não é demitido...
Beatriz suspirou.
Separando bem as sílabas, ela disse:
— Pois pode parar com isso. Vou precisar que você continue no cargo que estava ocupando.
Fez uma pausa e arrematou:
— Gostaria que viesse até minha casa, agora. Tomaremos um café ou um drinque e conversaremos. Preciso me inteirar dos problemas mais urgentes e, de qualquer maneira, acho que vou gostar de não estar sozinha hoje...
Do outro lado da linha, Pedreira não sabia o que dizer.
Estava certo de ser demitido por Beatriz — o fato da moça ter vindo de ônibus, desprezando o recado que lhe enviara para Paris, dizendo-lhe que estaria esperando por ela no Aeroporto, já lhe parecera uma afronta, uma mostra de desprezo, e a maneira fria com que o tratara no cemitério, deu-lhe a certeza de estar fora dos planos administrativos da nova presidência — e não conseguia acreditar que estivesse sendo convocado para continuar no cargo. Além disso, estava sendo convidado para tomar um drinque com Beatriz, servindo-lhe de companhia e de consolo no dia do enterro de seu pai!
Já estava dentro do automóvel, quando se lembrou que tinha marcado com Paulinho de Salvador, uma consulta às seis horas da tarde.
Apanhando o telefone celular, ligou para a tenda do pai-de-santo e disse-lhe:
— Não vou poder...
— Nada disso! — interrompeu Paulinho de Salvador, enérgico — Você irá à casa de Beatriz apenas para tomar um café, não vai aceitar nenhuma bebida alcoólica e não vai ficar mais do que quinze minutos. Seja distante e frio, nada de arroubos de romantismo ou de excessivo cavalheirismo. Trate apenas de negócios, não dê nenhuma resposta definitiva e nem muito precisa. Responda sempre com evasivas e deixe a moça ficar pensando que será necessário bajulá-lo para que aceite continuar no cargo. O mínimo que vai acontecer, será você receber uma proposta de aumento de salário.
Pedreira embatucou.
— Mas... — admirou-se — Como é que você está sabendo de tudo isso? Ela acabou de me ligar e eu não cheguei a falar nada para você!
Paulinho de Salvador soltou uma gargalhada estridente e respondeu:
— Você vive se esquecendo que eu tenho alguns poderes, meu amigo... Você jamais poderá esconder alguma coisa de mim!
E, despedindo-se, o pai-de-santo recomendou:
— Siga minhas instruções. À risca, entendeu? Pode acreditar que o seu futuro, em grande parte, vai depender desse encontro com Beatriz! Venha conversar comigo logo depois que deixar a casa dela, está bem?
Assim dizendo, sem nem mesmo esperar a resposta de Pedreira, o pai-de-santo desligou o telefone.
Pedreira, ainda atordoado com o que acabara de acontecer, murmurou:
— Pode deixar, Paulinho... Pode deixar que eu vou obedecer... Depois do que está acontecendo, depois do acidente de Nando, o mínimo que eu posso fazer é acreditar em sua força!

*******

— E então? — perguntou Beatriz, servindo pessoalmente uma xícara de café para Pedreira, depois de quase dez minutos de conversa apenas sobre banalidades — Aceita continuar no cargo de assessor direto da presidência?
Pedreira levou a xícara aos lábios, sorveu um pequeno gole e, depois de quase meio minuto de silêncio, respondeu:
— Não sei... Preciso pensar.
Olhou de lado para a moça e falou:
— Na realidade, a morte de seu pai apanhou a todos nós de calças curtas. Eu estava com planos de deixar a Medeiros de Albuquerque... Cheguei até a comentar com Nando a respeito disso.
Sorriu, sem graça e acrescentou:
— Agora, você vem me pedir para continuar. Para mim, pode não ser o melhor negócio do mundo...
Beatriz meneou a cabeça afirmativamente e murmurou:
— Bem... Creio que a sua vida particular tem de ser mais importante que a empresa... Não quero forçá-lo a nada, entenda bem.
Erguendo os olhos para Pedreira, perguntou:
— É uma questão de salário?
Pedreira percebeu imediatamente que poderia, naquele instante, até dobrar os seus vencimentos na Medeiros de Albuquerque...
O olhar de Beatriz era súplice, ele sabia muito bem que a moça era totalmente inexperiente em matéria de negócios e que estava desesperada, sabedora que era de que jamais conseguiria aprender todas as nuances do conglomerado sozinha, sem alguém que a ensinasse.
E ele tinha sido eleito professor...
Porém, seguindo as recomendações de Paulinho de Salvador, ele respondeu:
— Sim e não. Não se trata apenas de salário, Beatriz... Há outras coisas.
Olhou o relógio, pôs-se de pé e disse:
— Desculpe-me, Beatriz... Mas tenho um compromisso inadiável, agora. Preciso ir.
Despedindo-se, falou:
— Amanhã, no escritório, poderemos conversar mais e eu prometo que terei uma resposta.
Beatriz concordou com um sinal de cabeça, acompanhou-o até a porta e, depois de vê-lo se afastar, voltou para a sala dizendo consigo mesma:
— É engraçado... Pensei que Pedreira fosse vibrar com o convite... Mas a impressão que ele me deu é completamente diferente!
Deixando-se cair sobre o sofá, murmurou:
— Bem... Vamos ver o que ele fala, amanhã... De qualquer jeito, algo me diz que eu preciso ter esse homem perto de mim... Muito perto, mesmo!





QUATRO




Pedreira estava excitado e entusiasmado quando entrou na tenda de Paulinho de Salvador.
Nervoso, os olhos muito brilhantes, assim que o pai-de-santo o recebeu, disse:
— Você tinha razão! Senti que ela vai me pagar o que eu pedir! Poderei até dobrar o meu salário!
Paulinho sorriu, pousou a mão sobre o ombro direito de Pedreira e falou:
— Eu sempre tenho razão, meu filho... Mesmo porque, não sou eu, mas sim os meus Guias. E eles não podem errar.
Ofereceu uma cadeira para o seu visitante e, sentando-se diante dele, continuou:
— Meus Guias Protetores disseram que você estará entrando agora em uma fase muito boa. É claro que deverá cooperar com eles, pois do contrário os acontecimentos poderão se inverter. Terá de executar diversos trabalhos e deverá fazer alguns sacrifícios. Tudo isso faz parte de sua evolução no plano cósmico.
Nesse momento, uma das muitas cambonas de Paulinho de Salvador, apareceu trazendo uma garrafa de uísque, copos, gelo e água.
Pedreira se espantou.
— Não imaginava que se poderia beber uísque numa tenda de candomblé... — comentou.
— Não há nada que impeça, meu amigo — riu o pai-de-santo — Muito pelo contrário! Quase todos os Orixás apreciam bebidas alcoólicas e dão preferência às destiladas.
Servindo uísque para ambos, acrescentou:
— Mas, agora, não vamos beber a pedido de nenhum Orixá e tampouco para cumprir qualquer ritual. Vamos é festejar o início de sua vitória, Pedreira.
Erguendo o copo num brinde, exclamou:
— Ao seu sucesso junto a Beatriz! Dentro de muito menos tempo do que imagina, você será o maioral dentro da Medeiros de Albuquerque!
Os dois homens beberam em silêncio, esvaziando de uma só vez a primeira dose.
Voltando a enchê-los, Paulinho de Salvador disse:
— A partir de hoje, você começará a enfrentar a terceira fase dos trabalhos. Será uma fase mais difícil...
Mexeu o gelo no copo com a ponta do dedo indicador e prosseguiu:
— Quero dizer que será difícil para mim... Os trabalhos que terei de executar são muito esgotantes, solicitam demais do medium e destroem muito da proteção que precisamos ter.
Pedreira fez uma expressão interrogativa e o pai-de-santo explicou:
— Não é nada fácil trabalhar com os Exus... Eles são muito exigentes. Quando contrariados, costumam inverter as coisas e, ao invés de ajudar, acabam atrapalhando muito. Por isso, só por causa disso, é que os trabalhos são tão cansativos.
— Mas os Exus não são entidades malévolas? — perguntou Pedreira, espantado e sem conseguir esconder o medo e a preocupação que sentia.
— Não é bem assim — falou Paulinho de Salvador — É verdade que os Exus são entidades que trabalham principalmente na linha da Magia Negra. São, digamos assim, intermediários entre os Orixás Menores e os homens. Na realidade, eles cumprem as determinações desses Orixás e são os agentes punidores.
Com um sorriso nos lábios, o pai-de-santo disse:
— Às vezes, eles agem por conta própria. Quando isso acontece, normalmente o que fazem está diretamente relacionado com o Mal. Como são espíritos de baixo desenvolvimento, estão muito sujeitos aos sentimentos mais vulgares do ser humano como, por exemplo, o ciúme e a inveja. Por isso, quando abrimos uma sessão de trabalho, sempre prestamos uma homenagem aos Exus para que eles se satisfaçam logo, não se sintam desprestigiados e, portanto, não perturbem o andamento da sessão.
— E por que, no meu caso, será necessário trabalhar com os Exus? — perguntou Pedreira.
Tomando um gole de uísque, completou:
— Tenho medo dessas coisas... Não gosto de me meter com demônios...
— Os Exus não são demônios, Pedreira — explicou Paulinho de Salvador — Se você já se esqueceu, os demônios são anjos que acompanharam Lúcifer em suas idéias revolucionárias e por isso, foram expulsos do Paraíso. Os Exus são entidades, espíritos ainda com muito baixo desenvolvimento. Não são anjos e, por isso, não são demônios. Você não precisa ter medo dos Exus, desde que se comporte bem em relação a eles. Faça suas vontades, respeite-os, seja humilde no trato com eles. Os Exus podem ser grandes auxiliares do homem quando se deseja algo muito complicado ou que, de alguma maneira, vá prejudicar uma pessoa para beneficiar outra.
Tomando fôlego, o pai-de-santo continuou:
— Os Orixás podem ajudar as pessoas desde que essa ajuda não vá prejudicar ninguém. Se houver qualquer espécie de prejuízo para alguém — mesmo que apenas moral ou virtual — os Orixás não interferem, deixam o desenrolar dos acontecimentos pura e simplesmente nas mãos do Destino. Consideram como Karma, e não atuam. Já os Exus, podem ajudar. Para eles, não há essa história de não interferir se alguém sair prejudicado. O que interessa a eles é ajudar àquele que lhes for simpático. E é justamente por essa razão que é preciso saber agradar os Exus e jamais contrariá-los. Se eles se antipatizarem com a pessoa ou se alguém tiver a desgraça de fazer de um Exu, um seu inimigo...
Fazendo uma mímica de terror, o pai-de-santo juntou:
— É por não possuírem a menor noção de moral e por terem um componente muito grande de crueldade em sua massa cósmica, que os Exus são tão fortes. Saber lidar com um Exu, é ter uma porta aberta para a felicidade material.
Pedreira fez um sinal afirmativo com a cabeça, mostrando que tinha entendido muito bem o que Paulinho de Salvador estava querendo dizer.
O pai-de-santo deixou a cadeira em que estava sentado e, dando as costas para Pedreira, dirigiu-se para o peji.
Fazendo uma reverência, ergueu os braços, murmurou algumas palavras que Pedreira não conseguiu ouvir e, em seguida, acendeu duas velas vermelhas e duas velas pretas.
Voltando-se para o visitante, disse:
— Aproxime-se. Concentre-se nos objetivos que quer alcançar e vamos ver se Exu-Tiriri tem alguma coisa a nos dizer.
Embora amedrontado, Pedreira obedeceu e o pai-de-santo explicou, professoral:
— Exu-Tiriri é o Exu que mais interfere nas questões que dizem respeito ao prazer. A posse de muito dinheiro, normalmente é a fonte principal de prazer e por isso, quando precisamos lidar com quantias muito vultosas, o Guia de Esquerda mais indicado, é sempre Exu-Tiriri.
Aproximou-se do peji, ajoelhou-se ao lado de Paulinho de Salvador e procurou centrar seus pensamentos em Beatriz e na Medeiros de Albuquerque como um todo.
— Feche os olhos e só os abra quando eu mandar — ordenou o pai-de-santo.
Mais uma vez, Pedreira obedeceu.
Chegava a se surpreender como o pai-de-santo conseguia dominá-lo, como ele se tornava dócil e submisso em sua presença.
Pedreira ocupava cargos de chefia havia muito tempo, estava mais do que habituado a mandar, a dar ordens e a ser obedecido. Era incrível que ele, diante de Paulinho de Salvador, se transformasse daquela maneira, se comportasse como uma criança pré-adolescente, ao escutar uma ordem de seus pais.
Começou a ouvir o som de atabaques, no início batendo leve, num ritmo lento e, num crescendo, as batidas foram se tornando mais altas e mais rápidas.
— Continue de olhos fechados — recomendou Paulinho de Salvador — Eu direi quando puder abri-los.
Ouviu o pisar ritmado de pés descalços e o farfalhar de panos à sua volta.
Sentiu o aroma adocicado de patchuli, misturado ao cheiro acre de suor...
Depois, um outro cheiro, ainda mais acre e mais forte, ao mesmo tempo que sentia o roçar de panos em suas costas.
Aquele cheiro...
Sim...
Ele o reconhecia...
Era cheiro de sexo!
De repente, sentiu-se terrivelmente excitado, suas narinas se dilataram, exatamente como acontece com o garanhão que pressente a égua no cio.
— Pode olhar, agora — falou Paulinho de Salvador.
Pedreira abriu os olhos.
Viu duas mucambas, duas mulatas lindas, descalças, nuas, tendo apenas uma tira larga de voil enrolada na cintura, as pontas soltas, drapejando com os seus movimentos, dançando, os seios rijos e entumecidos balançando ao ritmo dos atabaques, as mãos executando movimentos delicados e passeando os dedos sobre seu próprio sexo...
— Exu-Tiriri está dizendo que tudo está bem — informou o pai-de-santo, enlaçando uma das mucambas pela cintura — E a prova disso, é que ele quer que você se divirta!
A outra mucamba se aproximou de Pedreira com um sorriso carregado de malícia no rosto, encostou seu corpo ao dele esfregando-se com volúpia ao som dos atabaques e, com dedos ágeis, começou a desabotoar sua camisa.
Pedreira suspirou...
Pela primeira vez, ele estava realmente gostando de um ritual de Paulinho de Salvador...

*******

Mais tarde, depois de terminada a orgia em homenagem a Exu-Tiriri, o pai-de-santo mandou Pedreira tomar um banho de ervas — foi a própria mucamba que o banhou — e ofereceu-lhe um prato de caruru com kikó, uma iguaria feita à base de quiabo, camarões secos e lascas de galo velho e que, segundo a tradição yorubá tem um alto poder de recompor as energias despendidas em atividades sexuais intensas.
— Coma bastante — brincou Paulinho de Salvador — Essa é uma comida sagrada, os guerreiros yorubás eram obrigados a ingeri-la antes das grandes batalhas e, muitos séculos depois, quando os brancos chegaram à África, descobriram que esse prato tinha a virtude de rejuvenescer quem o comesse, principalmente se fosse à noite, sob o luar e ao redor de uma fogueira. Depois da refeição, até mesmo os mais velhos eram capazes de verdadeiros prodígios com as mulheres! Por isso, não faça cerimônia! Alimente-se bem! Você vai precisar estar em excelente forma, para a Beatriz...
Pedreira sorriu.
— Para isso, sempre estou em forma — retrucou.
E, com uma expressão ansiosa, disse:
— O que estou achando difícil, é que consiga ter um caso com Beatriz.
Esboçou um sorriso sem graça e murmurou:
— Essa moça é um peixe grande demais para o meu anzol! Jamais vou conseguir qualquer coisa com ela!
— Não seja pessimista — advertiu o pai-de-santo — Com pensamentos negativos e derrotistas, você não chegará a lugar nenhum!
— Não se trata de pessimismo, de negativismo e muito menos de derrotismo — defendeu-se Pedreira — Eu bem que acho excelente e por todas as razões! Nada pode ser melhor que uma mulher bonita... e rica! Mas acontece...
— Não acontece nada! — exclamou Paulinho de Salvador, irritado — Você só precisará tratar bem de seus Guias Protetores e dos Exus que interferirão a seu favor. Nada mais! Faça as coisas da maneira certa e pode acreditar que muito antes do que imagina, estará deitado com Beatriz e estará escutando os seus gemidos de prazer!
Pedreira se calou e o pai-de-santo falou:
— Vou executar um trabalho para você, esta noite. Será um trabalho com sangue, o que quer dizer que vou precisar de um animal vivo. Um bode preto. E isso não custa barato. Além disso, vou precisar de outros materiais. Por isso, faça-me o favor de deixar com Nanã-Burukun, a mucamba que o atendeu, a quantia que ela lhe disser.
Despedindo-se de Pedreira, finalizou:
— Por hoje, é só. Agora, vá para casa e trate de descansar. Você precisará estar bem disposto amanhã, terá algumas dificuldades a enfrentar e não poderá mostrar o menor sinal de fraqueza. Quando conversar com Beatriz sobre a sua permanência como assessor direto da presidência, seja bastante direto e objetivo. Não peça aumento de salário. Diga para Beatriz que o dinheiro não é importante e que você vai continuar na empresa unicamente porque sabe que ela precisa de sua ajuda. Mas é claro que você vai negociar algumas outras coisas. Vai exigir, por exemplo, que não haja nenhum outro tipo de assessoria. Você deverá ser o único elo de ligação de Beatriz com o Conselho Diretivo. A partir daí, tudo ficará muito mais fácil...!



CINCO




Embora iluminado apenas por discretas e amareladas arandelas cobertas com pergaminho, ainda que se ouvisse ao fundo uma música suavemente romântica e apesar da fabulosa qualidade do jantar e do vinho, o clima entre Beatriz e Pedreira estava tenso.
Quase dois anos depois de ter assumido a presidência da holding, durante os quais Pedreira a assessorara e ensinara tudo o que era necessário dentro da administração das empresas do conglomerado Medeiros de Albuquerque, Beatriz já se considerava plenamente preparada e pronta para voar sozinha.
Assim, estava ansiosa para se ver livre de Pedreira...
Exatamente.
Livre!
Pedreira a cerceava demais, tomava conta demais de tudo o que ela pretendia fazer, mesmo que não tivesse qualquer relação com a empresa.
Quantas e quantas vezes ele lhe dissera, por exemplo, que tal ou qual roupa que ela estava usando, era inadequada para ir ao trabalho!
E isso, quando ele não tratava de preencher pessoalmente — e sem que ninguém tivesse pedido para fazê-lo — a sua agenda de fim-de-semana, com passeios de barco, reuniões em clubes, festas de pessoas que ela mal conhecia...
O pior: Pedreira era seu companheiro obrigatório nessas ocasiões e portava-se diante de todos, como se fosse, no mínimo, compromissado com ela.
Tímida, deslocada no seio da sociedade de Vitória e permanentemente desejando estar sozinha, Beatriz conseguira recusar alguns desses convites, depois que percebera que estava sendo uma espécie de troféu para Pedreira. Porém, era impossível deixar de comparecer a toda e qualquer atividade social da cidade, mesmo porque, para a própria holding, era preciso que a moça fizesse marcar sua presença de vez em quando.
Contudo, o que ela menos queria era que Pedreira continuasse a ser seu par em todos os lugares onde, mesmo que apenas por motivos de trabalho, era obrigada a ir.
Assim, aos poucos, ela foi cortando as asas de seu assessor, foi colocando distância entre os dois e, bem devagar, começou a hastear sua bandeira de liberdade.
Mas, Pedreira parecia não se dar conta de que sua insistência não estava sendo bem vista e muito menos, benquista...
Continuava a convidar Beatriz para jantares, para espetáculos teatrais e uma infinidade de outras coisas, sem parecer se incomodar com as sucessivas recusas da moça.
Porém, essa indiferença de Pedreira, era apenas uma questão de aparência.
Na realidade ele se incomodava, e muito.
Esforçava-se ao máximo para não mostrar que se sentia magoado, dava tudo de si para não perder a paciência e, quando percebia que estava a ponto de explodir, corria para a tenda de Paulinho de Salvador, para lhe pedir conselhos.
— Tenha calma, meu amigo — dizia-lhe o pai-de-santo — Mais um pouco de paciência. Lembre-se que água mole em pedra dura, tanto bate até que fura!
— Mas está demais! — protestava Pedreira — Estou sendo humilhado, espezinhado, desprezado! Isso não pode continuar assim!
Paulinho de Salvador refletia, dirigia-se ao peji, orava e, invariavelmente, dizia para Pedreira que era preciso fazer mais um trabalho.
— Desta vez, é para Exu-Megê, um Exu guerreiro. Parece que a situação é de guerra psicológica entre você e Beatriz. A ajuda de Exu-Megê é indispensável. Ele é muito forte! Nanã-Burukun tem a relação do material que vamos precisar. Deixe o dinheiro com ela.
No dia seguinte, uma frase mais delicada de Beatriz, um seu sorriso pelo motivo que fosse, era interpretado por Pedreira como um sinal de esperança, como uma prova de que o trabalho feito por Paulinho de Salvador, funcionara.
Mas...
Muito rapidamente, a situação voltava ao normal, ou seja, Beatriz procurando evitar ao máximo a proximidade de Pedreira.
Até que, naquela tarde, ele se surpreendera com um recado de Beatriz, marcando um encontro com ele num conhecido restaurante português da cidade.
Ligou para a sala da presidência e Beatriz, confirmando o convite, disse:
— Precisamos conversar e não quero que seja no ambiente da empresa. Por isso, achei que esse restaurante seria o local ideal. Gosto de comida portuguesa e sei que você, pelo menos dos vinhos, há de gostar.
Pedreira exultou.
Seria possível que a moça, finalmente resolvera ceder?!
No mesmo instante, ligou para Paulinho de Salvador, contou-lhe o ocorrido e o pai-de-santo falou:
— Veja você que as coisas estão dando certo! Agora, se você for esperto, saberá aproveitar a oportunidade! Na hora que estiver conversando com ela, lembre-se de Exu-Tiriri...

*******

Eles já tinham terminado o jantar, estavam apenas tomando um pouco mais de vinho e Beatriz, até aquele momento, ainda não dissera sobre que assunto desejava tanto conversar.
Tinham falado de banalidades, comentaram a situação política do país, a má administração do Estado, a falta de consciência política dos que detinham o Poder...
Mas...
Beatriz não tocara em nenhum assunto que justificasse aquele convite.
Foi depois de pedir mais uma garrafa de vinho, que a moça, um tanto sem jeito, disse:
— Estou pensando em abrir uma nova empresa...
Pedreira arregalou os olhos.
Era incrível!
Como é que Beatriz poderia pensar em algo tão importante sem ter comentado nada com ele?!
— O mercado de importação e exportação está aumentando a cada dia — falou a moça — E uma empresa como a nossa, precisa ter um tentáculo nessa fatia.
Pedreira levou o copo de vinho aos lábios e Beatriz prosseguiu:
— Quero que você se incumba de montar essa área da holding. Quero uma empresa de exportação e importação e, para isso, você irá passar algum tempo em New York e, depois, no Japão. Assim, enquanto a parte burocrática estiver em andamento, você poderá estudar com todos os detalhes necessários, as tendências de mercado importador nos Estados Unidos e no Japão, bem como receberá daqui, as informações necessárias para negociar produtos que importaremos desses países.
Pedreira coçou o alto da cabeça e, depois de alguns segundos, indagou:
— Quando devo viajar?
— O mais depressa possível. Já deixei tudo pronto, desde o passaporte com os vistos, até cartões de crédito internacionais, contas bancárias em New York e em Tóquio...
Pedreira arregalou os olhos.
Então, ela tinha feito tudo absolutamente à sua revelia!
E aquela pressa...
Era tudo muito óbvio!
Beatriz estava querendo se livrar dele, estava querendo que ele se afastasse da empresa e encontrara aquela maneira para enviá-lo para longe e obrigá-lo a definir uma posição.
Se Pedreira se recusasse...
Ora...
Um assessor que não quer aceitar uma sugestão da presidência, não pode ser assessor de coisa nenhuma!
Ele estaria demitido e...
Acabou-se!
Por um breve momento, ele teve vontade de estourar, por para fora todos os demônios que vinha alimentando havia já várias semanas, desde que começara a perceber que Beatriz só queria vê-lo pelas costas...
Mas, no momento em que ia abrindo a boca para protestar, para dizer que não iria a lugar nenhum, lembrou-se que, com precipitação e violência, jamais conseguiria coisa alguma e na realidade, estaria apenas fazendo o jogo de Beatriz.
Pois se era isso mesmo que ela estava querendo!
Que ele explodisse, fosse indelicado e, assim, daria todos os motivos do mundo para uma demissão!
Pedreira respirou fundo, brincou com o cálice, rodando-o entre os dedos da mão esquerda e falou:
— Preciso pensar, Beatriz. Compreenda que não posso decidir uma viagem desse porte assim, de um instante para o outro!
Forçou um sorriso e completou:
— O mundo não foi feito em apenas uma noite, mocinha... E eu não fiz o mundo! Preciso de alguns dias para refletir!
Beatriz já esperava que Pedreira dissesse isso.
Ela sabia que seria impossível seu assessor viajar no dia seguinte — ela bem que gostaria! — e, com um sinal afirmativo de cabeça, ela indagou:
— Chega uma semana?
— Creio que sim — respondeu Pedreira — Pelo menos, poderei me despedir dos amigos...
Do restaurante, Pedreira rumou diretamente para a casa de Paulinho de Salvador.
Mais do que nunca, estava precisando de seus conselhos, estava necessitando ouvir uma palavra que servisse para lhe trazer novas esperanças...

*******

Paulinho de Salvador pediu licença aos seus Orixás e jogou os búzios.
Com expressão grave no rosto, ele falou:
— Você precisa ficar atento, Pedreira! As coisas não estão indo bem para o seu lado e, se não tomar cuidado, corre o risco de perder tudo!
— Mas não é possível! — protestou Pedreira — Já fiz tudo que você mandou! Já gastei uma verdadeira fortuna com essas coisas! Como é que ainda estou correndo perigo?!
O pai-de-santo olhou torvamente para seu interlocutor e disse, em tom mal-humorado:
— Se você está preocupado com a ninharia que está gastando com material para os trabalhos e despachos, não deve nem mesmo continuar tentando... O que você está querendo é muito grande, muito importante! Se ficar preso a essas mesquinharias...
Com expressão ofendida, o pai-de-santo acrescentou, separando bem as palavras, como se as estivesse mastigando antes de cuspi-las no rosto de Pedreira:
— Se acha que eu estou ganhando algum dinheiro às suas custas...
Um pouco sem jeito, Pedreira balbuciou:
— Não quis dizer isso, perdoe-me... Não tive intenção de magoá-lo.
Forçando um sorriso, justificou-se:
— É que já estou cansado... Há tanto tempo venho lutando contra a corrente... Chega uma hora que a gente cansa, não é mesmo?
— É verdade — admitiu Paulinho de Salvador — Mas é na perseverança que está a vitória. Se você quiser alcançar os seus objetivos, não pode desistir no meio do caminho.
O pai-de-santo acendeu uma vela vermelha e outra preta, colocou-as ao lado de um copo de cachaça e murmurou algumas palavras, como sempre, ininteligíveis para Pedreira. Em seguida, de um só trago, bebeu a aguardente e, estalando a língua, disse:
— Você não pode se queixar. Há pouco tempo atrás, estava completamente falido, na iminência de ser mandado embora da empresa, sem um tostão nos bolsos e precisando se desfazer do único bem que ainda possuía, ou seja, aquela fazenda. Conseguiu vender as terras para o seu patrão, não se envolveu com o acidente que o matou e, com isso, acabou não só permanecendo na empresa como também, com a chegada de Beatriz, foi promovido a um cargo elevado e com um salário principesco. Hoje, você é o presidente do Conselho Diretivo, tem muito dinheiro todos os meses... Pode até ambicionar coisas maiores.
Olhou intensamente para Pedreira e, com um sorriso, juntou:
— E já está ambicionando! Está até querendo se casar com Beatriz!
— Pois é... — murmurou Pedreira — Só que ela me despreza! Faz absoluta questão de estar sempre me humilhando! Outro dia, eu a escutei comentar com uma amiga que jamais conseguiria ir para a cama com um homem que é vinte anos mais velho do que ela. E creio que o problema todo está justamente aí. Na diferença de idade! E isso sem contar que eu estava perto... Sei muito bem que ela estava dizendo aquilo como um recado direto para mim.
Paulinho balançou a cabeça negativamente e falou:
— Você sabe que eu não poderei fazê-lo mais jovem. Mas por outro lado, sabe que posso conseguir, com a ajuda de meus Exus, fazer com que aconteça alguma coisa que force Beatriz a se apaixonar por você. É para esse tipo de coisa que a Magia serve. Para tornar possíveis fenômenos e situações que à luz do conhecimento comum, seriam absolutamente impossíveis!
Voltou a se concentrar nos búzios e disse:
— Mas há alguns fatores que complicam as coisas... Aqui está dizendo, por exemplo, que Beatriz está pensando em chamar alguém para trabalhar na empresa... Alguém muito importante para ela e que poderá atrapalhar os seus planos!
Pedreira estremeceu.
Ele sempre sentia um arrepio a lhe percorrer o corpo quando Paulinho de Salvador, o pai-de-santo daquele terreiro de Quimbanda, acertava as suas adivinhações.
E o pai-de-santo estava certo.
Três dias atrás, a própria Beatriz comentara com uma das secretárias da Diretoria, que estava pensando muito seriamente em convidar um velho amigo parisiense, para ajudá-la na administração da Medeiros de Albuquerque...
Um amigo especialista em administração de holdings.
Ou seja...
Alguém com todas as características de quem viria para assumir, senão a presidência, no mínimo um cargo de assessor direto da moça junto ao Conselho.
E, com aquela novidade de Beatriz mandá-lo para New York e, depois, para o Japão... Sem nem mesmo ter precisado a data de seu retorno!
— Como sabe que Beatriz está esperando alguém? — perguntou Pedreira em um fio de voz.
— Não sei de nada — riu o pai-de-santo — Simplesmente está aqui, nos búzios. Eles é que sabem das coisas. Eles é que me transmitem as mensagens.
Apanhou um baralho de Tarô, separou os Arcanos Maiores e, depois de embaralhá-lo por três vezes, ordenou a Pedreira que tirasse uma carta.
— Vamos ver o que diz o Tarô — falou ele — Talvez os Arcanos possam nos trazer alguma luz.
Pedreira entregou-lhe a carta e não pode deixar de notar que o meio sorriso que se estampava no rosto de Paulinho, desaparecia.
— O que foi? — perguntou — Não é uma boa carta?
Paulinho não respondeu de imediato.
Depois de refletir por alguns instantes, o pai-de-santo falou:
— A Casa de Deus, ou Torre Fulminante, como alguns a chamam, não é das melhores cartas... Ou lâmina, como seria o correto.
Mostrou a figura para Pedreira e explicou:
— Veja... Os raios que vêm do Céu atingem a torre e derrubam a coroa que é o símbolo do poder terreno. O homem e a mulher estão atordoados, como se estivessem perdidos, apavorados e desesperados. Tentam mergulhar na água, não querem ficar na torre ilhada. É uma súbita e implacável tempestade, um fenômeno telúrico destruidor. Mas a água também é o símbolo da vida. Portanto há salvação já que a esperança permanece acesa na alma até dos que mais sofrem. A Torre Fulminante, ou Casa de Deus, é prenúncio de catástrofes imprevistas. Porém, do desastre aparece uma vida nova. Simboliza o caos de Deus que pode gerar um renascimento. A verdade é a luz que procede das trevas, do abismo e da mentira.
— Mas... — fez Pedreira, sem esconder a sua decepção e angústia — O que significa tudo isso?
Ignorando a pergunta de Pedreira, o pai-de-santo entregou-lhe o baralho com os Arcanos Menores e falou:
— Embaralhe, corte três vezes com a mão esquerda e tire uma carta.
Pedreira obedeceu e entregou para o pai-de-santo, um três de espadas.
— E agora? — perguntou Pedreira, ansioso — A carta está melhor?
Paulinho olhou atentamente para a lâmina de Tarô que tinha nas mãos e disse:
— É um três de espadas... Uma carta que, se não é das melhores para o seu caso, também não é das piores.
Respirou fundo e, com o olhar fixo no vazio à sua frente, falou:
— Para se livrar das ilusões do plano físico, o homem precisa gerar novas ilusões, só que no plano astral. Descobre que até mesmo a sua luta com tudo que tange o lógico e a razão, foi apenas uma ilusão. Mas essa ilusão o fascina. O poder, os bens e a fortuna, são importantes porque parecem sagrados. Este Arcano Menor está relacionado com o Arcano Maior III, a Imperatriz.
Escolhendo entre as lâminas dos Arcanos Maiores, a da Imperatriz, disse:
— A figura representa uma mulher realizada e feliz porque é amada e respeitada por todos. Sentada num trono, ostenta a coroa do poder e da glória, empunhando o cetro da autoridade, da capacidade de influir na vida de todos que a cercam. A Imperatriz, por ser o símbolo da determinação e firmeza, não aceita as privações nem o que é parco ou exíguo, vendo a pobreza como uma das piores doenças.
Sorriu, olhou para Pedreira e completou:
— Como pode perceber, as lâminas do tarô disseram bem como você é... E por isso mesmo, por terem acertado tanto, é conveniente acreditar que as predições são bem verdadeiras.
— Isso quer dizer que vai me acontecer alguma desgraça? — quis saber Pedreira, angustiado — O que mais pode surgir para mim?! O que é que me falta, ainda?!
— Não é obrigatório que seja uma desgraça, meu amigo — falou Paulinho de Salvador, em tom contemporizador — Basta que seja algo desagradável, um fato qualquer que de alguma maneira atrapalhe seus planos. Como, por exemplo, essa viagem que deverá fazer.
Muito sério, acrescentou:
— Mas é preciso lembrar que tudo isso é mutável. Podemos interferir e, se não neutralizamos o Mal, podemos ao menos amenizá-lo. Se você analisar com cuidado e critério, verá que basta ter conhecimento do que é possível acontecer, para que os efeitos já sejam menores e menos perniciosos.
Pedreira assentiu com um sinal de cabeça.
— Quer dizer que devo aceitar essa viagem? — perguntou — Mesmo sabendo que não passa de uma desculpa de Beatriz para me afastar?
O pai-de-santo refletiu por alguns momentos, com os olhos fechados, as mãos estendidas para a frente, as palmas voltadas para baixo e sobre os búzios que acabara de usar.
Depois de resmungar alguma coisa que pareceu a Pedreira, uma invocação, Paulinho de Salvador, disse:
— Não se trata de aceitar. Você precisa, no mínimo, dizer que vai. Se não aceitar o convite de Beatriz, certamente será demitido e, se isso acontecer, nada mais lhe restará, você poderá esquecer qualquer esperança com relação à moça e, consequentemente, com relação à Medeiros de Albuquerque.
Brincou com os búzios, mexeu nas velas, e falou:
— Todavia, é perfeitamente possível adiar um pouco essa viagem. Beatriz falou de uma semana. Isso quer dizer que nada o impede de ficar aqui por mais algum tempo. Basta que use a cabeça e conseguirá prorrogar esse prazo.
— Mas ela foi muito categórica — ponderou Pedreira — Não creio...
— Você não tem de crer em nada! Creia apenas no poder dos Exus que estou invocando para ajudá-lo. Pense, Pedreira! Trate de encontrar uma maneira de fazer com que essa sua viagem só aconteça dentro de dois ou três meses, e isso, se vier a acontecer!
Fixando o olhar em Pedreira, concluiu:
— Você precisa estar aqui quando esse amigo de Beatriz chegar! E ele vai chegar, ele virá trabalhar com ela! Por mais que eu possa trabalhar contra ele em sua ausência, o certo seria você estar por perto. Posso precisar de alguma coisa, você terá de me ajudar!



PARTE III


PIERRE BERTRAND




UM




— As coisas estão muito difíceis, aqui — queixou-se Beatriz, fazendo um enorme esforço para não chorar e para não lhe pedir que embarcasse no primeiro avião, rumo ao Brasil.
— Eu sei disso — falou Pierre — E é para ver se consigo ajudar, de alguma maneira, que lhe telefonei...
Beatriz respirou fundo, rodou entre os dedos o brinco que tirara da orelha para não a incomodar com o telefone, e comentou:
— Inútil perguntar como é que você sabe... E também é bobagem minha querer que você me diga como adivinhou que eu estava precisando conversar com um amigo...
Pierre riu e disse:
— Você sabe que eu tenho meus informantes... astrais.
Fez uma pequena pausa e acrescentou:
— Estive com Mère Régine, ontem à noite...
Beatriz não conseguiu deixar de sentir uma ponta de ciúme.
Afinal de contas, o restaurante de Mère Régine não era propriamente o lugar mais adequado para se ir sozinho... Logo, era evidente que Pierre tinha estado lá acompanhado.
A jovem mordeu o lábio inferior, com raiva de si mesma por ter esse tipo de pensamento. Pierre estava a dez mil quilômetros de distância, nada mais havia entre eles a não ser uma amizade e o Oceano Atlântico.
— Não — pensou — Não posso exigir nada de Pierre... Se, quando ele estava vivendo comigo, já não conseguia a menor fidelidade, posso muito bem imaginar o que anda fazendo e com que tipo de mulheres tem convivido!
Do outro lado da linha, como se captasse as ondas cerebrais de Beatriz, Pierre disse:
— Estive lá sozinho, minha querida. E fui procurar Mère Régine porque sonhei com você e a vi atravessando grandes problemas!
— O que não me faltam são problemas... — murmurou ela — Isso não é novidade nenhuma e eu estava avisada.
Suspirou e, em tom queixoso, acrescentou:
— Mas não esperava que fossem tantos e tão graves!
Beatriz ouviu Pierre pigarrear e, logo em seguida, ele falou:
— De todos os problemas que você está enfrentando, o pior está relacionado com um homem...
A moça sorriu e perguntou, em tom de mofa:
— O que é isso, Pierre? Está com ciúmes?
— Pense o que quiser — respondeu o rapaz, a voz séria, pausada — Mas estou falando a verdade. Você precisa tomar muito cuidado com esse seu assessor. Pedreira, se não me engano...
Beatriz levou um susto.
Na realidade, depois de tudo quanto vivera e vivenciara ao lado de Pierre, depois do resultado das predições de Madeleine e de Mère Régine, ela não deveria se assustar.
Porém, Beatriz estava certa e segura de jamais ter dito o nome de Pedreira para Pierre. E, além disso, nunca se queixara diretamente dele...
— Mas... — começou a moça.
— Mère Régine disse que ele está usando recursos muito baixos para prejudicá-la — falou o rapaz — E está fazendo de tudo para envenená-la junto ao Conselho Diretivo da holding.
Sem dar tempo para Beatriz contestar, Pierre continuou:
— Como se isso não bastasse, ele pretende se casar com você. Está disposto a tudo para alcançar esse objetivo. Exatamente por isso, ele é um homem muito perigoso. Uma pessoa sem escrúpulos, sem a menor noção de moral.
— Eu já tinha percebido isso — admitiu Beatriz — Pedreira estava agindo de modo estranho, em relação a mim. Parecia até que era meu dono!
Lembrando-se da conversa que tivera com Pedreira poucos minutos atrás, no restaurante, a moça disse:
— Mas acho que já eliminei esse problema. Vou enviá-lo para New York e para Tokyo. Estou pensando em entrar no ramo das importações e exportações... Mandei-o estudar esses mercados.
— Foi uma boa idéia, querida — falou Pierre — Mas não estou certo de que vá funcionar.
Deu uma risadinha e explicou:
— A distância não mata o amor... No máximo faz com que ele aumente de intensidade.
— Mas não há amor, nesse caso! — protestou Beatriz — Não pode haver!
— Há interesse, minha amada... — replicou Pierre — E o interesse, associado ao desejo e à ambição, torna as pessoas ainda mais persistentes e ousadas.
Ficaram em silêncio por alguns instantes e Pierre disse:
— Mas acho que você está certa. Deve tentar afastar de perto de você esse indivíduo. E o mais depressa possível!
— Ele deverá estar viajando dentro de uma semana — falou Beatriz — Se isso ajudar...
— Certamente ajuda — murmurou Pierre — Mas, enquanto ele ainda estiver por aí, procure não manter contato. Vá fazer alguma coisa longe de Vitória... Cuidar de sua fazenda, por exemplo.
Beatriz, por muito pouco, não deixou escapar um palavrão.
A fazenda!
Outro terrível foco de frustrações!
Mais uma vez, como se adivinhasse o que ela estava pensando, Pierre disse:
— Ça ne va pas, aussi... Je le sais.
— É verdade... — admitiu Beatriz, entristecida — Não consigo fazer nada, naquela fazenda! Parece que tudo dá errado, as coisas mais simples, mais banais, vão para trás!
Com um nó na garganta, ela contou:
— Comecei a reformar a casa na semana seguinte à morte de papai. Parece incrível, Pierre...! Mas já troquei os pedreiros mais de dez vezes! Ninguém quer ficar lá, dizem que a casa é assombrada, que escutam ruídos à noite.
— Que ruídos? — quis saber o francês.
— Ora! — fez Beatriz, com desdém — Certamente eles escutam o barulho de dilatação das tábuas, talvez cupins comendo o madeiramento muito velho... Ratos...
— Mas não é isso que os pedreiros dizem, não é mesmo? — insistiu Pierre.
Beatriz ficou calada por alguns instantes e, por fim, respondeu:
— Eles falam de barulho de chicotadas, correntes se arrastando, gritos... Coisas em que é impossível acreditar!
— Eu não diria isso assim tão categoricamente, Beatriz — falou Pierre, muito sério — Acho que compensa verificar...
Beatriz ia dizer alguma coisa, mas Pierre a interrompeu, perguntando:
— Você já esteve lá, à noite?
— Não. Não é possível dormir com um mínimo de conforto na casa. É preciso arrumar muita coisa, ainda. Os banheiros, por exemplo. Estive lá durante o dia, várias vezes...
Deu uma risada desgostosa, e acrescentou:
— Todas as vezes que os pedreiros abandonaram o serviço e tive que levar outra turma para trabalhar.
— Percebeu alguma coisa anormal?
— Não. É claro que não! — respondeu Beatriz, com uma certa irritação — É uma casa velha, somente isso. Muitas paredes estão rachadas, há umidade por todo lado e, é lógico, madeiras empenadas que rangem conforme o tempo e a temperatura. Também vi muitos ratos saindo de fendas do assoalho e das paredes.
Forçou um tom desprendido na voz e completou:
— Não vi nenhum fantasma, se é isso que quer saber. E nem escutei qualquer manifestação de espíritos que estivessem perambulando pela casa!
— Pois eu insisto que você verifique o que está acontecendo. Peça ajuda, Beatriz. Vá procurar alguém que tenha acesso à magia ou ao mundo espiritual. O Brasil está cheio de mediuns...
Beatriz riu.
— Acho que o mais necessário é uma boa turma de pedreiros, Pierre. Aposto o que você quiser que, quando acabar de reformar a casa, não se escutará um só ruído estranho por lá!
— Isso, se você conseguir terminar essa reforma... — murmurou Pierre, taciturno — Por isso, não seja teimosa. Não vai lhe custar nada fazer o que estou sugerindo.
Como Beatriz permanecesse em silêncio, o rapaz continuou:
— Construções antigas têm sempre miasmas dos antigos moradores. Há energias vagando, fluidos que tanto podem ser benignos quanto malignos, depende muito do grau de sofrimento ou de felicidade que foi vivido sob esse teto. Por isso, é necessário investigar. É preciso saber o que é que aconteceu no passado, quem viveu nessa casa e que tipo de vida seus moradores tiveram.
— Não posso acreditar nessas coisas, Pierre — falou Beatriz — Isso vai completamente contra a minha formação, contra a minha filosofia de vida!
— Madeleine e Mère Régine também são pessoas marginalizadas com relação à sua postura filosófico-religiosa... E, no entanto, você teve ocasião de comprovar que elas estavam certas. Além disso, mesmo a dez mil quilômetros de distância, eu mesmo, que não tenho nenhum grau de mediunidade, sou capaz de sentir que as coisas não estão indo bem, aí no Brasil...
Com sarcasmo, Pierre perguntou:
— E você ainda insiste em manter uma posição materialista e meramente racional, de acordo com os seus padrões? Não acha que está sendo excessivamente teimosa e radical?
Beatriz não teve o que responder.
Havia já muito tempo que em sua mente, se formara um terrível conflito entre o que aprendera e o que presenciara.
Acreditar, ou não?
Despediram-se e, ao desligar o telefone, mais uma vez Beatriz se perguntou:
— Mas como um administrador de empresas e economista, como Pierre, pode acreditar nessas coisas? E, por outro lado, como é que eu, que até já senti na pele esses fenômenos, posso continuar incrédula?





DOIS




Pierre desligou o telefone com a certeza de que Beatriz realmente estava precisando de ajuda.
As informações que lhe tinham sido passadas por Mère Régine, somadas às suspeitas que ele pessoalmente já tinha, formavam um quadro bem pouco promissor para a jovem.
Havia problemas administrativos que, de uma maneira ou de outra, acabariam solucionados tendo em vista que Beatriz era a dona da empresa e, em último caso, poderia passar como um verdadeiro trator sobre o Conselho Diretivo e fazer as coisas como melhor entendesse.
Porém, ao lado desses problemas, havia outros...
E estes sim, eram extremamente delicados, já que não estavam ao alcance de uma mente racional e céptica como a da moça.
— Preciso ir para lá! — exclamou Pierre, angustiado — Sei que Beatriz gostaria muito que eu estivesse ao seu lado em uma situação como esta!
Mas...
Pierre também estava enfrentando problemas.
Sem que houvesse uma explicação plausível, também sua vida não estava indo bem.
E não era apenas do ponto de vista espiritual — ele perdera muito do ânimo que sempre tivera, deixara de se interessar pelas muitas amigas que possuía e com quem costumava se divertir até a partida de Beatriz, passara a preferir a solidão e, muitas vezes, surpreendia-se pensativo, relembrando os momentos que vivera ao lado dela, com ela...
Nesta área, o rapaz conseguia justificar o que estava acontecendo, conseguia explicar para si mesmo os motivos de toda essa tristeza.
Sentia muita falta de Beatriz.
Percebera somente depois que ela voltara para o Brasil, que a amava perdidamente e que, por pura teimosia e falso orgulho, não quisera admitir.
Arrependia-se...
Só que, àquela altura, era tarde demais.
Mas não era somente nesse aspecto que Pierre estava mal.
Do ponto de vista profissional, as coisas também iam de mal a pior.
Sem nenhum motivo aparente, perdera o emprego que tinha numa grande companhia de seguros, sua posição como assistente de ensino na Sorbonne estava periclitante por causa da política interna da Universidade e consequentemente, sua conta bancária estava bastante desfalcada.
Desfalcada e baixa a ponto de Pierre não ter condições de satisfazer seu espírito, tomar um avião e voar para o Brasil, passar alguns dias com Beatriz e dizer para ela que estava profundamente arrependido de tudo quanto fizera e que queria uma nova oportunidade.
— Fui um imbecil — pensou, contando passos dentro de seu apartamento — Preciso encontrar uma solução! Preciso arrumar uma maneira de ir visitar Beatriz!
Revoltado contra si mesmo, rememorou a conversa telefônica, observando mais uma vez que não acontecera o que mais esperava: o convite de Beatriz para que ele se mudasse para Vitória, para que fosse fazer parte da equipe da Medeiros de Albuquerque.
— Talvez ela não me queira mais... — murmurou — E na realidade, é muito bem feito para mim, mereci o seu desprezo!

*******

Espichou-se sobre a cama, tentou adormecer com a esperança de que, no sonho, ele voltaria a ter Beatriz ao seu lado, mas...
Não conseguiu conciliar o sono.
Ao amanhecer, com os olhos vermelhos por causa da noite em claro que passara e — mesmo que não quisesse admitir, por causa das muitas lágrimas que derramara em desespero — Pierre resolveu visitar mais uma vez Mère Régine. Talvez ela tivesse, ao menos uma palavra de consolo, talvez ela lhe dissesse alguma coisa que abrisse um caminho, que fornecesse uma esperança de solução.
Surpreendeu-se ao encontrar, apesar da hora, Mère Régine já vestida, com um sorriso no rosto e a mesa do desjejum posta para duas pessoas.
— Eu estava esperando por você — disse ela — Sabia que viria agora de manhã e sei que está precisando desesperadamente de ajuda.
Antes que Pierre pudesse explicar o motivo de sua angústia, a velha falou:
— Eu poderia lhe dar o dinheiro da passagem, Pierre. Mas isso não resolveria o seu problema.
Pierre não concordava, muito pelo contrário.
O rapaz, desesperado como estava, tinha certeza que, se tivesse os meios materiais que o permitissem ir para o Brasil, estaria com tudo solucionado.
E, nesse caso, não estaria ligando nem um pouco para o próprio orgulho. Aceitaria o dinheiro... E de muito bom grado!
Mère Régine não o deixou falar e continuou:
— Seu maior problema, agora, não é estar ao lado de Beatriz, mas sim, saber se ela ainda o quer.
Pierre foi obrigado a admitir que a velha tinha razão e esta, servindo o desjejum para o rapaz, prosseguiu:
— Você terá a resposta para essa pergunta ainda hoje. E, a partir do momento em que isso acontecer, precisará tomar muito cuidado!
Pierre franziu as sobrancelhas interrogativamente, e Mère Régine falou:
— As pessoas que estão se dedicando a prejudicar Beatriz, fazendo uso de forças e energias negativas, também farão de tudo para destruí-lo. Essas pessoas sabem que você estará assumindo uma posição de defesa em relação a Beatriz e isso vai contra seus projetos. É mais do que natural que se esforcem para atrapalhá-lo.
Passou manteiga e geléia numa torrada, entregou-a para o rapaz e disse, com expressão preocupada:
— Infelizmente, não poderei fazer nada para ajudá-lo, meu filho... As forças que estarão direcionadas contra você partem de entidades muito baixas, tão baixas que os meus Guias Cósmicos nem sequer conseguem estabelecer contato com elas.
— Mas isso é incoerente! — exclamou Pierre — Se os seus Guias são entidades mais elevadas, se eles são espíritos que já ocupam uma posição superior no Plano Astral, com certeza deveriam conseguir interferir na ação de entidades menores!
— Há uma divisão muito nítida de dimensões, Pierre — explicou a velha — Se você quiser dizer de uma forma mais precisa, há uma separação muito clara entre os diversos planos astrais e, ainda, entre as categorias de entidades. Assim, um espírito superior, um Espírito de Luz, não pode se preocupar com as ações de espíritos ainda não iluminados e que ainda estão habitando o espaço compreendido entre as Trevas Eternas e o Limiar da Luz!
Pierre suspirou.
— Isso quer dizer, portanto — concluiu ele — que eu terei que me arrumar sozinho.
Balançando a cabeça, desanimado, murmurou:
— Só não sei se terei forças suficientes para evitar o naufrágio!
Mère Régine pousou a mão carinhosamente, sobre o antebraço de Pierre e falou:
— Você conseguirá, meu filho! É claro que conseguirá! Terá que lutar um pouco, mas vencerá!
Obrigando-o a comer um pedaço de bolo, acrescentou:
— Na luta contra as entidades de pouca luz, basta o seu brilho próprio, Pierre. Você possui um espírito que já vem de muitas outras vidas. É, portanto, mais rico em experiências astrais o que significa tão-somente que possui um brilho maior, uma luz mais intensa e mais pura.
Sorriu e arrematou:
— Não deve temer. Deve, isso sim, estufar o peito e enfrentar os reveses que estão para acontecer.
— Já estão acontecendo, Régine — gemeu Pierre — Minha vida parece ter virado, de repente, de cabeça para baixo!
— Eu sei! — exclamou Mère Régine — E como sei!
Muito séria, juntou:
— O pior é que isso é apenas o começo. Eles tentaram atingi-lo materialmente, tirando-lhe a possibilidade financeira de viajar. Agora, estão tentando prejudicá-lo do ponto de vista espiritual, ou seja, fazendo com que você fique desanimado, desiludido, desconfiado de sua própria capacidade de reação. Depois, com toda a certeza, o alvo será a sua saúde. Se ficar doente, definitivamente não poderá ir para o Brasil e, se acabar morrendo...
Pierre sentiu um calafrio a lhe percorrer todo o corpo e Mère Régine, arrematou:
— Por isso, tome cuidado, meu filho! Preste atenção em tudo que o cerca, acautele-se principalmente quando estiver dirigindo, pois é no trânsito que nós mais nos expomos à ação maléfica das entidades que trabalham com o Mal!
Mère Régine queria obrigá-lo a comer mais, mas Pierre recusou, dizendo-se satisfeito e a boa velha, disse:
— Outro ponto perigoso e muito fácil de ser alcançado por essas forças maléficas, é o estômago. Assim, preste bem atenção no que vai comer. Não se esqueça que basta um pedacinho de qualquer coisa estragada, e há uma possibilidade enorme de se ir para o hospital!


TRÊS




Saindo do restaurante de Mère Régine, Pierre já estava se sentindo um pouco melhor e mais animado.
Era verdade que havia a preocupação decorrente do fato de Mère Régine ter avisado que ele estava sendo alvo de pessoas mal-intencionadas e, portanto, deveria tomar muito cuidado.
— Cuidado ao dirigir, disse Mère Régine — pensou Pierre, redobrando a atenção ao volante — Não posso sofrer um acidente, agora!
Lembrou-se da expressão zombeteira da velha quando esta lhe disse que não lhe daria o dinheiro para a viagem unicamente porque era necessário que Pierre se convencesse que Beatriz realmente o queria ao seu lado.
— O que será que vai acontecer? — perguntou-se — Por que Mère Régine não quis entrar em detalhes a esse respeito?
Meneou a cabeça, aborrecido, e murmurou:
— E tenho certeza que ela sabe muito mais do que me contou! Sabe e não quis me dizer além do essencialmente necessário para que eu não entrasse numa profunda crise de desespero!
Mas, com isso, Pierre já deveria estar mais do que acostumado.
A boa velha tinha essa estratégia de ação: mesmo que soubesse de tudo, mesmo que os seus Guias Astrais tivessem lhe contado muito mais, ela se reservava o direito de não transmitir mais do que o estritamente necessário a um empurrão inicial.
Certa vez, quando Pierre reclamara dessa sua atitude, Mère Régine dissera:
— A clarividência e o conhecimento de alguns fatos do futuro, seja imediato ou longínquo, é um dom que nos foi dado pela Existência Astral Superior unicamente para ajudar as pessoas a buscar o melhor caminho. O conhecimento e o uso abusivo desse dom pode modificar o andamento natural dos acontecimentos, tirando até mesmo a livre escolha e o discernimento individual. E isso jamais pode acontecer. O homem precisa trilhar o seu caminho. No máximo o super-conhecimento pode ajudá-lo a escolher uma estrada ou um atalho. Mas, em hipótese alguma pode interferir na trajetória determinada pelo Destino! Saber que tal ou qual evento terá lugar numa determinada vida, numa certa passagem pela Terra, poderá levar o indivíduo a tentar modificar tudo e, o que é pior, sem qualquer resultado. O que está escrito que vai acontecer, acontecerá, de qualquer maneira. Pode haver um milhão de intercorrências, pode haver a impressão de que jamais há de se realizar, mas cedo ou tarde, o Destino deverá ser cumprido, a despeito do que quer que possa ocorrer, a despeito do esforço que se possa fazer para modificá-lo.
Por causa dessa teoria, Mère Régine, muitas e muitas vezes deixava de contar tudo o que sabia.
E Pierre, no fundo, dava razão a ela.
— Mas bem que eu gostaria que ela tivesse sido um pouco mais explícita, desta vez! — pensou o rapaz, já chegando ao seu apartamento — Talvez melhorasse minha ansiedade...
Estava fechando a porta, quando escutou o telefone tocar.
Olhou o relógio.
Era pouco mais de meio-dia, o que o fez ficar surpreso, pois nem percebera o tempo passar.
Ergueu o fone do gancho e a voz de Beatriz chegou-lhe, não apenas ao cérebro, mas principalmente ao fundo de seu coração.

*******

— Passei esta noite pensando em você — disse Beatriz, com uma naturalidade que surpreendeu a si mesma.
— Eu também — confessou Pierre — Mas não foi só esta noite. Tenho pensado em você o tempo todo, o dia inteiro... Até parece que não consigo fazer outra coisa!
Mordaz, ferina, a moça perguntou:
— As outras lhe dão tempo para isso?
— Não há outras, Beatriz — falou Pierre, a voz séria e firme — Acho que, na realidade, nunca houve. Eu é que não tinha percebido antes.
Beatriz sentiu o coração bater um pouco mais depressa e, controlando-se para não deixar transparecer na voz a emoção que sentia, disse:
— Estou precisando muito de você, Pierre...
O rapaz ia retrucar que ele também estava muito necessitado da presença e companhia de Beatriz, mas esta, falando depressa, como se estivesse com medo de, de um instante para o outro, se arrepender e parar, continuou:
— Não posso ficar sozinha aqui, nas garras destas feras que tenho no Conselho Diretivo. Serei devorada, anulada, aniquilada!
Fez uma pequena pausa e falou:
— Com a viagem de Pedreira, estarei sem qualquer assessor direto. Não que ele fosse indispensável, já aprendi praticamente tudo que precisava a respeito da administração da holding. Mas sempre há uma ou outra nuance a que não estou ainda familiarizada, especialmente do ponto de vista técnico-administrativo propriamente dito.
Do outro lado da linha, já adivinhando o que Beatriz estava querendo dizer, Pierre exultava.
Então...
Mais uma vez, Mère Régine estava certa!
Mais uma vez ela tinha toda a razão!
Foi com o coração disparado, saltando-lhe dentro do peito como se estivesse querendo sair pela boca, que ele ouviu Beatriz dizer:
— Gostaria que viesse trabalhar comigo. Acho que poderei oferecer a você algumas vantagens tanto salariais...
— Não é preciso falar dessas coisas, Beatriz — interrompeu Pierre — Você sabe muito bem que o salário jamais seria o fator que me faria aceitar ou não essa sua proposta!
Respirou fundo e disse:
— O problema é que estou atravessando uma fase difícil... Estou muito sem dinheiro...
— Ainda tenho o número de sua conta no Crédit Lyonnais de Saint Germain. Estou enviando hoje, algum dinheiro para as despesas miúdas e, quanto à passagem, o PTA estará na agência da Varig até o final do dia. Você poderá alterar a data do vôo, mas... Peço-lhe o favor de se apressar. Não poderei ficar sozinha e, enquanto você não chegar, não me será possível mandar Pedreira para os Estados Unidos!

*******

Pierre desligou o telefone e, depois de dar uma boa meia dúzia de pulos de alegria, sua primeira vontade era de ir correndo para o restaurante de Mère Régine, contar-lhe a novidade.
Porém, não foi preciso.
Já estava apanhando as chaves do carro para sair, quando o telefone tocou.
Era a boa velha que, com um sorriso na voz, lhe perguntava:
— E então, meu filho? Está tudo acertado?
Por um momento, Pierre teve vontade de indagar como e de que maneira Mère Régine conseguia saber das coisas tão rapidamente e com tão grande precisão.
Mas, seu entusiasmo e seu desejo de compartilhar com ela a felicidade que estava vivendo eram tão intensos, que ele apenas respondeu:
— Sim... Vou começar a me preparar para a viagem... Quero ir para o Brasil o mais depressa possível!
Mère Régine ficou em silêncio por alguns instantes e, com voz preocupada, falou:
— Você precisará ficar muito atento a partir de agora, meu filho... Todas as forças e energias negativas estarão centradas em você, nesta sua viagem. E, por isso, as coisas podem ficar bem perigosas!
— Mas o que poderá acontecer? — quis saber Pierre.
E, com quase incontrolada angústia, pediu:
— Por favor! Não me esconda nada, desta vez! Não conte as coisas pela metade, como costuma fazer!
Muito séria, Mère Régine disse:
— Não se trata de contar as coisas pela metade, Pierre. Você me conhece há muitos anos, já teve tempo mais do que suficiente para saber qual é a minha postura com relação a esse assunto. Eu só transmito aquilo que me é dado transmitir, nem uma palavra a mais ou a menos! Infelizmente, às vezes, você não me compreende e acha que estou sonegando informações!
Sem dar tempo ao rapaz de se defender, a velha falou:
— Você precisará tomar muito cuidado com a sua saúde. No momento, é a única arma que eles têm para prejudicá-lo e para retardar a sua viagem. A esta altura, a parte material, financeira, já está resolvida. A parte espiritual, tanto sua quanto de Beatriz, já se encontra fora do alcance das energias negativas. Portanto, só lhes resta a sua saúde. Qualquer intercorrência um pouquinho mais grave, pode ser suficiente para atrasá-lo e é desse atraso que eles estão precisando.
Pierre podia entender a preocupação de Mère Régine.
Seria o cúmulo, depois de tudo arrumado e resolvido, ele ter que ficar imobilizado por dois ou três meses, por causa de uma perna quebrada...
Do outro lado da linha, Mère Régine dizia:
— É claro que eu estarei me concentrando e canalizando todas as energias benéficas possíveis no sentido de protegê-lo. E há, embora você não saiba, pessoas lá no Brasil, que também estão fazendo o mesmo. Há quem o esteja protegendo mesmo sem o conhecer. Isso é muito bom, mas não é o suficiente. Se você não se cuidar, se não tratar de tomar muito bem conta de si mesmo, não haverá proteção que o segure!
— Mas... — perguntou Pierre, intrigado — Quem poderia estar me protegendo, lá no Brasil? E a troco de quê?
— Não sei, meu filho — respondeu Mère Régine — Só sei que você pode contar com muitas boas energias, por lá. Quanto as motivos...
Ficou calada por alguns segundos e falou:
— Ainda não sei bem exatamente e, por isso, não quero adiantar nada. Mas, posso garantir que os problemas de Beatriz não estão circunscritos à empresa e à inveja que algumas pessoas têm dela. Há outros fatores, há outros acontecimentos relacionados com um passado medianamente longínquo e que estão, agora, interferindo na vida dessa moça. São problemas cujas soluções estão diretamente ligadas à vontade da própria Beatriz. Talvez isso, exatamente esse fato, cause conflitos espirituais, astrais e mentais na pobre moça. Você pode imaginar muito bem que, com qualquer espécie de conflito astral, a solução de uma questão se torna muito mais difícil.
Separando bem as palavras, a velha completou:
— Uma de suas missões com referência a Beatriz, será resolver esses conflitos, ajudá-la a escolher um caminho e mostrar-lhe a sua verdadeira trajetória. Será difícil, Beatriz é teimosa... Mas você conseguirá, estou certa disso.

*******

Pierre desligou o telefone e, sem perda de tempo, começou a se preparar para deixar Paris.
Em seu íntimo, sabia que aquela viagem provavelmente seria definitiva, uma viagem sem volta marcada, com a imensa possibilidade de jamais retornar à França, pelo menos com a intenção de voltar a viver nesse país.
Sempre admirara o Brasil, sempre fora um perdido apaixonado pela cultura e pelo folclore afro-brasileiros — tanto assim que aprendera português e, ainda durante o curso universitário, assistira como ouvinte a um sem número de palestras e aulas sobre tudo o que se referisse ao Brasil — e isso sem contar o sol, o calor, as praias, as morenas...
Sacudiu a cabeça com energia, afastando de sua mente a imagem que acabara de se formar — uma praia banhada de sol e cheia de morenas em biquínis sumaríssimos — dizendo para si mesmo que essa fase de sua vida acabara.
— Agora, só existe Beatriz e nunca mais haverá qualquer outra mulher para atrapalhar a minha felicidade! — pensou.
Telefonou para o seu senhorio, dizendo-lhe que estaria deixando o apartamento, ligou para o Banco e viu, satisfeito, que Beatriz já enviara o dinheiro.
Começou a separar alguns livros e algumas roupas que deveria levar e providenciou, com um amigo, um lugar para deixar guardadas as suas coisas até que decidisse definitivamente o que faria delas.
Foi perceber que estava com fome já perto de seis horas da tarde e, com a mente voltada para a vida diferente que teria a partir do final de semana seguinte, abriu a geladeira e apanhou um pouco de patê que ali estava.
Só percebeu que aquilo estava com um gosto estranho, depois de ter comido duas fatias de pão besuntadas com o patê.
E não foi preciso mais de meia hora para que estivesse rolando de dor, vomitando a alma, sentindo que suas forças se esvaíam ao mesmo tempo que seu intestino, totalmente descontrolado, se esvaziava.


QUATRO




Pierre abriu os olhos e a primeira imagem que viu foi o rosto de Mère Régine, a fisionomia preocupada, o olhar ansioso.
— Você ficou assim, torporoso, por mais de vinte e quatro horas! — exclamou a velha, acariciando a testa úmida de Pierre — Como está se sentindo, agora?
Com sacrifício, o rapaz respondeu:
— Acho... que estou bem...
Esboçou um sorriso e juntou:
— Evidentemente, poderia estar muito melhor...
Tentou se erguer sobre os cotovelos, mas logo percebeu que estava ainda muito fraco e desistiu, deixando-se cair novamente nos travesseiros.
Olhou ao seu redor, estranhou as paredes muito brancas, sem quaisquer enfeites a não ser um crucifixo pendurado sobre a cabeceira da cama.
— Afinal... — fez ele — O que aconteceu? Onde estou?
A curiosidade e o interesse pelo ambiente são as primeiras mostras de melhora num paciente que acaba de sair de uma crise e assim, Mère Régine sorriu, respirou aliviada e explicou:
— Você se intoxicou. Passou muito mal em sua casa e foi M. Legrand, seu vizinho, que o trouxe para o hospital.
Olhando intensamente para o rapaz, disse:
— Teve muita sorte, Pierre. M. Legrand encontrou-o caído junto à porta de seu apartamento, como se estivesse embriagado. Já delirava, dizia palavras e frases desconexas, estava muito mal. A princípio, seu vizinho achou que você estava mesmo bêbado e ia levá-lo de volta para sua casa, mas ao ver que seus olhos pareciam baços e que você estava completamente prostrado, achou melhor trazê-lo para o hospital. Aqui, os médicos constataram uma intoxicação das mais graves.
Nesse momento, uma enfermeira entrou no quarto, viu que Pierre já estava acordado e, com um sorriso, falou:
— Ótimo! Parece que o senhor já está bem melhor... Vou avisar o doutor.
Já à porta, voltou-se para Mère Régine e disse:
— Os resultados do laboratório já chegaram. O doutor Saint-Laurent virá explicar o que aconteceu.
Minutos depois, o médico — um senhor alto, grisalho, sisudo e com um cavanhaque pontudo que fazia lembrar a figura do Doutor Fausto, de Goethe — entrou o quarto.
Examinou cuidadosamente o rapaz e, tirando o estetoscópio dos ouvidos, falou:
— É incrível... Os resultados todos foram absolutamente negativos, não encontramos nada, não somos capazes de dizer o que é que fez mal ao senhor Bertrand...
Mostrando uma bateria de papéis para Pierre, continuou:
— Mandamos fazer exames de tudo o que havia em sua geladeira. Como sabe, temos muito medo de doenças intestinais graves como a cólera...
Balançou negativamente a cabeça e disse:
— Também não encontramos nada. Todos os alimentos estão em perfeitas condições de uso, não há nada estragado ou contaminado.
Fixando o olhar em Pierre, indagou:
— O senhor tem algum caso de diabetes na família?
Pierre respondeu que não.
— Muito pelo contrário, doutor — garantiu ele — Tanto por parte de minha mãe quanto de meu pai, todos sempre gozaram de excelente saúde e não tenho notícias de que algum de meus parentes tenha morrido antes de oitenta anos...
O médico sorriu, meneou a cabeça num gesto de dúvida e disse:
— Então, meu amigo... Não faço a menor idéia do que pode ter acontecido. Todos os seus exames estão normais, não houve contaminação de espécie alguma e, no entanto, o quadro clínico era de uma intoxicação gravíssima, tão grave que o senhor chegou aqui com a pressão arterial perto de zero, em pré-choque.
Dirigindo-se para a porta, completou:
— Justamente por não termos conseguido um diagnóstico, somos obrigados a mantê-lo internado, senhor Bertrand. Pelo menos por mais setenta e duas horas. É preciso ficar em observação. Não há nada que garanta que esse tipo de problema não se repita nas próximas horas.
— Mas eu não posso ficar internado! — protestou Pierre — Preciso viajar! Preciso ir para o Brasil!
— Pois aí está mais um bom motivo para ficar aqui até que melhore — replicou o médico — Em hipótese alguma poderei liberá-lo para uma viagem internacional e, ainda mais para um país tropical, no estado em que se encontra, fraco desse jeito e... sem qualquer diagnóstico!
Pierre ia protestar, ia dizer que queria ir embora e que assinaria não importava qual termo de responsabilidade fosse...
Porém, Mère Régine fez-lhe um sinal para que se calasse e, acompanhando o doutor Saint Laurent até a porta, falou:
— Não se preocupe, doutor... Cuidarei para que Pierre fique aqui, bem comportado e fazendo tudo que lhe for recomendado. É verdade que ele precisa ir para o Brasil o mais depressa possível, mas, também é verdade que de nada adiantaria Pierre viajar assim como está.
Depois de se despedir do médico, Mère Régine voltou para perto de Pierre e disse, segurando-lhe as mãos:
— Você pode ver como eu tinha razão... O que aconteceu nada mais é senão fruto da ação de forças negativas que foram direcionadas contra você. E ainda suspeito que a idéia fosse de acabar definitivamente com a sua vida!
Pierre sentiu um arrepio a lhe percorrer o corpo e Mère Régine prosseguiu:
— Será muito mais seguro você ficar aqui no hospital. Os riscos serão bem menores. Por exemplo, não terá que se arriscar no trânsito. Além disso, sabendo-o em segurança, eu mesma terei a tranqüilidade necessária para invocar uma maior proteção para você.
Acariciou mais uma vez o rosto de Pierre e finalizou:
— E pode estar certo de que você e Beatriz estarão precisando de muita proteção!

*******

— Sinto muito, Beatriz — disse Pierre, ao telefone, quando ligou para o Brasil, avisando que sua ida para lá, obrigatoriamente ainda demoraria cerca de uma semana — Os médicos acham que eu devo me recuperar um pouco mais. E Mère Régine é da mesma opinião...
— Fique o tempo necessário para sarar completamente — falou Beatriz, esforçando-se para não deixar transparecer em sua voz, a decepção e a frustração — De qualquer maneira, Pedreira não viajará antes de quinze dias.
— Por quê? — indagou Pierre — Você não tinha dito que ele deveria ir embora até o final desta semana, se eu pudesse chegar dentro desse período?
— Era o que eu estava planejando e era o que eu queria que acontecesse — respondeu Beatriz, em tom queixoso — Mas não consegui.
Tomou fôlego e continuou, como se desabafasse:
— Como já lhe disse antes, as coisas aqui andam muito difíceis e complicadas. Minha vontade, apesar de ser eu a dona das empresas e — graças a Deus — ainda poder controlar o dinheiro, vale muito pouco. Basta manifestar um desejo qualquer para que os abutres do Conselho Diretivo o vetem, arranjem mil e quatrocentas desculpas para dizer que não concordam com as minhas idéias.
Pierre percebeu o desespero na voz de Beatriz, quando ela falou:
— Já não agüento mais, Pierre! Se não fosse pela memória de meu pai, eu já teria entregado os pontos e deixado que eles lançassem as ações da holding na Bolsa! Pelo menos eu me livraria desses malditos e poderia me dedicar um pouco mais à fazenda...
— Pois nem pense em permitir tal coisa! — exclamou Pierre — Seria uma imensa leviandade de sua parte e, na minha opinião, uma prova de fraqueza que você não pode se dar o luxo de ter!
Beatriz calou, mordeu o lábio inferior para melhor poder se controlar e, depois de alguns instantes, falou:
— Estou cansada, Pierre... Muito cansada... Não vejo a hora de tê-lo por aqui! Sei que com você por perto, serei mais forte e poderei me defender melhor!
— Tenha paciência, minha querida — pediu o rapaz — Só mais alguns dias! Logo estarei ao seu lado e, juntos, derrubaremos um a um esses chacais!
Emendando uma frase à outra, Pierre falou:
— Vá para a fazenda... Se ainda não puder dormir lá, fique num hotel. Mas não fique por aí, se expondo. Já basta o que aconteceu comigo, não acha?
Intrigada, Beatriz perguntou:
— O que está querendo dizer com isso, Pierre? Será que está atribuindo essa sua intoxicação a alguma espécie de... bruxaria?
— Não consigo pensar de outra maneira, querida — respondeu ele — Mesmo porque Mère Régine já me tinha avisado. Eles iriam agir contra a minha saúde e foi exatamente isso que aconteceu.
Com um tom de preocupação e ansiedade na voz, completou:
— Por isso, Beatriz... é bom que você também se cuide. Não custaria nada para eles, começarem a agir também contra a sua saúde e isso seria péssimo...
Com uma risada, finalizou:
— Você precisará estar muito bem disposta quando eu chegar aí, sabia?


CINCO




Se Pierre estava imaginando que teria alta em três dias, enganara-se.
O doutor Saint-Laurent, não satisfeito com os exames que pedira e sabendo que o rapaz teria que enfrentar o clima quente do Brasil, achou que era necessário esmiuçar um pouco mais e, na tentativa de afastar de si qualquer remorso futuro, ordenou-lhe que fizesse um check-up completo, com dezenas de radiografias, eletrocardiogramas, eletroencefalogramas e mais quantos gramas tivesse direito e pudesse pagar a eficiente Sécurité Sociale francesa.
Enquanto ele se esfalfava caminhando por corredores e corredores de hospitais e laboratórios em Paris, a dez mil quilômetros de distância, em Vitória, Beatriz enfrentava uma seqüência estafante de reuniões do Conselho Diretivo, marcadas por Pedreira, com a finalidade de analisar a viabilidade da idéia de se montar uma ramificação da Medeiros de Albuquerque em New York e outra em Tokyo, visando o mercado exterior.
Beatriz não precisou fazer nenhum esforço para perceber que aquilo não era nada mais que um golpe de Pedreira para não ter de viajar e ficar ali mesmo, no Espírito Santo, como assessor direto da presidência e...
Tentando uma aproximação mais íntima da moça.
Por várias vezes, já cansada e aborrecida com toda aquela perda de tempo, ela teve vontade de mandar todos eles para o inferno, encerrar definitivamente a onda de reuniões e palestras, dissolver o Conselho Diretivo e recomeçar tudo sem a interferência ambiciosa daqueles homens.
Porém, embora tivesse todas as possibilidades legais para assim agir, Beatriz sabia muito bem que, do ponto de vista político, tal atitude não era aconselhável.
Diversos Conselheiros ou eram políticos ou então, parentes de políticos importantes no Estado e assumir uma posição antipática em relação a eles, com toda a certeza, não faria bem para a imagem da holding principalmente junto à Imprensa.
E, infelizmente para todos, atritos com jornalistas sempre implicam em notícias deturpadas, em picuinhas e intrigas.
Coisas que não convêm a nenhuma grande empresa e ainda menos, em se tratando de um conglomerado empresarial permanentemente na mira de alguns líderes sindicais inescrupulosos e de outros tantos fiscais federais, estaduais e municipais, todos eles corruptos.
Dessa maneira, ciente que suas angústias e tormentos estavam para terminar — com a chegada de Pierre as coisas haveriam de mudar, quisesse o Conselho Diretivo ou não — Beatriz achou por bem suportar estoicamente as pataquadas que aqueles senhores diziam, certos de que ela, ainda muito jovem e inexperiente, jamais seria capaz de saber distinguir entre o que era certo e o que era absolutamente idiotice administrativa.
Esperta, ao perceber que se fizesse o corpo mole, seria provável que o Conselho Diretivo sugasse como um aspirador, os recursos da holding, Beatriz decretou uma política de economia absoluta, evitando todo e qualquer gasto, justificando seu súbito pão-durismo com um complicado projeto de expansão que — ela sabia muito bem e era mesmo proposital — jamais seria aprovado, mas que até a recusa final, tomaria dias suficientes do Conselho, fazendo com que eles se dispersassem em discussões retóricas, semânticas e presque academiques, sem chegar a lugar nenhum e apenas forçando-os a esperar que Pierre assumisse definitivamente seu lugar de assessor direto.
Cargo que, para Beatriz, logo seria mudado.
Era seu projeto alterar os estatutos da holding, criando o cargo de Presidente Geral — que ela ocuparia — e de Vice-Presidente — cargo que até então não existia devido à política centralizadora de Nando, e que seria ocupado por Pierre.
Só que, esse projeto, Beatriz nem mesmo poderia cogitar diante dos ambiciosos membros do Conselho...
Seria o mesmo que lançar uma bomba atômica no seio da empresa e ela não duvidaria nada que Pierre até fosse assassinado a mando de qualquer um daqueles Conselheiros ambiciosos.
Mas, se era terrível para a moça, suportar aquelas reuniões, muito pior era agüentar o assédio de Pedreira que, nos últimos dias, estava ficando ainda mais ousado e insistente.
Não havia uma noite que ele não aparecesse na casa de Beatriz para levá-la a algum lugar e, se ela recusasse, ele se plantava na sala, conversando sobre os assuntos mais irritantes e mais banais, até que a jovem, enfastiada e profundamente aborrecida, começasse a bocejar ostensivamente, mostrando que já estava na hora.
Contudo, Pedreira fazia de conta que nem mesmo desconfiava de sua própria inconveniência.
Continuava sentado, tomando copos e mais copos de uísque, insistindo para que Beatriz bebesse também, provavelmente na esperança de embebedá-la e assim tornar mais fácil o seu ataque.
Cansada com tal situação e não conseguindo enxergar uma solução política, que pudesse não ser interpretada como violenta e despótica, quando chegou o fim-de-semana, Beatriz resolveu seguir a sugestão de Pierre e foi para a Fazenda.
Lá, pelo menos, poderia ter um pouco de paz e teria a certeza de não ser perturbada por Pedreira, uma vez que ele, desde que vendera a propriedade para Nando, não mais quisera por os pés na Fazenda Rio Preto.

*******

Beatriz estacionou o automóvel no pátio da Casa Grande e, já ao subir os degraus de mármore de acesso à varanda, se aborreceu.
Aquele terceiro degrau continuava manchado...
Chamou o mestre-de-obras e, sem esconder a irritação, perguntou:
— Mas, seu Crispim... Eu não tinha mandado trocar o mármore desse degrau? Não mandei trazer de Cachoeiro de Itapemirim uma pedra nova, da mesma cor que as outras?
Crispim olhou para o degrau manchado, coçou o alto da cabeça e, muito sem jeito, disse:
— Pois é, dona... Eu estava mesmo para ir a Vitória... Ia lá dizer para a senhora que eu e a turma queremos ir embora...
Beatriz teve que se controlar para não explodir.
Fazendo um enorme esforço para não gritar, ela falou:
— Não acho que um degrau de escada que não foi trocado seja motivo para se demitir, seu Crispim...
— Não é só o degrau, dona — replicou o mestre-de-obras.
Mostrando o casarão com um gesto amplo, explicou:
— É tudo, aqui... Tudo! O serviço não rende, as coisas não dão certo, as medidas estão todas erradas, mesmo sendo eu que as tenha tomado! Os homens ficam doentes, estou com três deles sem poder mexer os braços, com problemas de coluna ou de reumatismo, sei lá!
Tomando fôlego, mostrou o degrau e continuou:
— Nós trocamos esse degrau. Trocamos três vezes, eu mesmo mandei buscar outras duas pedras de mármore em Cachoeiro, com o meu dinheiro! E a mancha volta a aparecer!
Olhando para Beatriz com expressão amedrontada, perguntou:
— A senhora é capaz de explicar isso? A gente coloca uma pedra nova, branquinha e, no dia seguinte, ela está manchada outra vez! No mesmo lugar, do mesmo jeito... Uma mancha feia, como pode notar!
Beatriz olhou para o degrau, balançou a cabeça afirmativamente e murmurou:
— É feia mesmo... Parece sangue... Sangue velho...
— Pois é — prosseguiu Crispim — E há muitas outras coisas! Os barulhos à noite, por exemplo! Ninguém consegue dormir a menos que tenha tomado um litro de pinga! É um tal de arrastar correntes, de barulho de chicotadas e gritos...
Nervoso, com dedos trêmulos, pegou um cigarro do maço, acendeu-o e falou:
— E esses gritos, dona! A senhora precisa ouvir! São terríveis, assustadores! Parece que eles vêm do chão, de algum lugar embaixo da cozinha...
— Mas ali não há nenhum porão! — tentou Beatriz — Deve haver algum engano... Talvez seja o vento, algum animal...
Crispim riu, escarninho, e disse:
— Não, dona... Não é nenhum animal e muito menos o vento. Esses barulhos não são deste mundo! Posso garantir!
Àquela altura, os homens de Crispim já estavam todos por ali, ao redor dos dois, ouvindo com atenção e respeito a conversa.
Beatriz olhou para eles e notou que em todos, havia algo em comum: todos estavam com os olhos muito vermelhos, com olheiras fundas e...
Com uma nítida expressão de medo.
E eram homens valentes, corajosos, que ela conhecia desde seus tempos de menina, quando seu pai começara a construir apartamentos para vender...
Sim...
Alguma coisa estava muito errada, por ali...
Crispim entregou as chaves do casarão para Beatriz e disse, consternado:
— A senhora me desculpe, dona... Mas nós não vamos continuar. Nem precisa nos pagar os dias que tentamos trabalhar, afinal, nada foi feito, a casa está do jeito que nós a pegamos. Se um dia a senhora tiver um trabalho para nós, em um lugar que não seja assombrado, pode chamar. Mas, aqui...
Persignando-se, exclamou:
— Aqui, Deus nos livre!

PARTE IV


LAURA


UM




Laura acordou, naquela terça-feira, com a estranha sensação de que algo não estava completo em seu dia.
Já sentira a mesma coisa anteriormente e sabia que isso era sinal de que estava se esquecendo de uma obrigação, de um compromisso qualquer.
Enquanto tomava o desjejum — parco, uma vez que, morando sozinha, freqüentemente deixava de comer por preguiça de preparar suas próprias refeições — procurou em sua agenda, folheando-a inteira, para ver se conseguia localizar o que diabos tinha prometido fazer e que não estava lembrando.
— Mas não há nada marcado! — exclamou, irritada consigo mesma — E, no entanto, sei que estou esquecendo de algo!
Terminou de tomar o café, acendeu um cigarro e, apanhando o telefone, começou a ligar para as redações dos jornais e revistas para as quais vinha trabalhando como free-lancer.
Fazia isso todos os dias.
Dessas ligações dependia o pouco dinheiro que conseguia ganhar em Vitória, pois quase sempre havia uma entrevista para fazer, uma reportagem ou uma matéria que os repórteres contratados desses jornais e revistas, achavam aborrecidas e preferiam passar para algum autônomo.
Porém, naquele dia, o vento não estava soprando a favor de Laura: não conseguiu nada, não havia qualquer pauta para ela, nenhuma redação tinha necessidade de seus serviços.
Tampouco essas ligações conseguiram reacender-lhe a memória, trazendo à tona o tal compromisso esquecido.
Sem qualquer outra alternativa, decidiu que o melhor que tinha para fazer, era sair à rua, como qualquer foca, à caça de notícias, na esperança de farejar uma boa reportagem que pudesse vender posteriormente, para quem melhor preço oferecesse.
Assim, aproveitou a manhã para cuidar um pouco da casa, de suas roupas, de si mesma...
Já perto de quatro horas da tarde, desceu para a garagem do prédio, sentou-se ao volante de se carro e saiu à rua, os olhos atentos como os de uma verdadeira caçadora, procurando circular pelos locais onde houvesse maior probabilidade de notícias.
Não pode deixar de pensar que tudo aquilo era, na realidade, um imenso contra-senso...
Afinal de contas, ela era uma jornalista formada por uma boa faculdade, tinha se especializado na área político-cultural, tinha feito estágios nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França...
E, no entanto, ali estava ela, Laura Vieira de Souza, andando pelas ruas de Vitória, com um gravador, uma máquina fotográfica e um bloco de notas nas mãos, à procura de alguma coisa que lhe garantisse mais uma ou duas semanas de sobrevivência...
— Eu deveria estar como editora de um grande jornal ou de uma revista importante... — pensou Laura, saindo da Avenida Beira-Mar e entrando à direita, rumo a Jucutuquara — Mas a inveja... A maldita inveja dos colegas...
Laura estava coberta de razão e tinha todos os motivos do mundo para estar revoltada.
Excelente aluna durante a Faculdade, ainda estudante ela conseguira um estágio muito bom no melhor jornal de São Paulo e tinha como certo que, depois que estivesse com o diploma nas mãos, sua carreira seria rápida e fulgurante.
Mas, a jornalista não contava com a inveja...
A inveja, esse mal maior que é capaz de acabar com as pessoas, de destruí-las e enterrá-las...
Nos dias que antecederam a sua formatura, houve uma reunião no Jornal onde ela ainda era uma simples estagiária.
O editor-chefe achava que Laura deveria ser contratada imediatamente, mas o diretor de jornalismo — cuja namorada também era estagiária no mesmo Jornal e estava vários pontos abaixo de Laura, em matéria de conceito — foi de opinião que ela deveria fazer um curso de aperfeiçoamento antes da contratação definitiva.
Laura não discutiu, matriculou-se no curso de pós-graduação e continuou como estagiária.
Duas semanas depois, ela teve o desprazer de ser obrigada a se reportar à namorada do diretor de jornalismo, sua ex-colega de faculdade e sabidamente incompetente.
A moça tinha sido contratada, mesmo sem qualquer pós-graduação e, além disso, conseguira um cargo de chefia: preceptora dos estagiários.
Portanto, preceptora também de Laura.
Era um pouco muito para a jovem e ainda idealista repórter...
Ferida em seus brios, deixou o estágio e concorreu a várias bolsas de estudos no exterior.
Conseguiu ir para os Estados Unidos, depois para a Inglaterra e, por fim, para a França, onde ficou por bastante tempo em Lyon.
De volta ao Brasil, era de esperar que conseguisse um bom emprego, um contrato tão respeitável quanto era respeitável o seu curriculum.
Mas...
O Brasil é realmente um país muito diferente dos outros, no que diz respeito à intelectualidade.
— Aqui, por incrível e absurdo que possa parecer, não se dá o menor valor ao cabedal intelectual das pessoas — pensou Laura, sentida — O que vale, mesmo, é a capacidade de bajular, o desprendimento quanto aos conceitos morais e a carapaça que esconde a canalhice e a cobiça!
Distraída, ensimesmada, a mente voltada quase que somente para a frustração que vinha sentindo aumentar nos últimos tempos, Laura nem percebeu que atravessara todo o Jucutuquara e tinha pegado o caminho para o Aeroporto, dando uma volta enorme e sem sentido.
Foi no instante em que caiu em si e viu que estava indo para um lugar que não estava em seus planos, que ela viu a casa...
E, então, ela se lembrou que já estivera ali e, como se recebesse um balde de água fria em sua cabeça, lembrou do compromisso que havia esquecido...
Ali era a tenda de Raimundo de Ogum.
E era terça-feira...
Exatamente dezessete horas e cinqüenta minutos.

*******

— Você não ia aparecer — disse Raimundo de Ogum, com um sorriso maroto — Fui obrigado a chamá-la...
Laura baixou os olhos, encabulada e, num murmúrio, tentou se justificar:
— Eu me esqueci... Esqueci por completo!
— Não tem importância, Laura — falou Raimundo de Ogum, batendo amistosamente em suas costas — De qualquer maneira, você está aqui e é isso que nos interessa.
Guiando a jornalista para os fundos da tenda, o pai-de-santo convidou:
— Venha. Hoje, a sessão é especial. Será só para você e no peji particular de Ogum.
Laura sentia vontade de dizer a Raimundo de Ogum que ela não queria saber de nada daquilo, que estava com medo e que jamais tivera qualquer tendência para acreditar nas religiões e filosofias espiritualistas. Muito pelo contrário, ainda que católica, Laura mais se considerava como agnóstica, com sériíssimas tendências ao ateísmo, para desespero de sua mãe, verdadeira beata ou, como costumava dizer Laura, uma lambe-padre.
Mas, a voz de Raimundo de Ogum era tão envolvente, seu olhar era tão carinhoso, que ela não conseguiu falar o que pensava e, embora trêmula e insegura, acompanhou-o.
— Não quero que se sinta obrigada a nada, Laura — falou o pai-de-santo — Se não quiser, se achar que não deve...
Laura balançou a cabeça negativamente, sem conseguir pronunciar uma só palavra.
Na realidade, ela não queria, não estava nem um pouco à vontade, não achava certo estar ali, por incrível que fosse, tinha a impressão de estar traindo suas raízes religiosas.
Com um sorriso, Raimundo de Ogum disse-lhe:
— Você não está traindo ninguém, minha filha... Deus é um só. O mesmo Deus dos judeus é o dos católicos, o dos protestantes, dos budistas, dos maometanos... Deus é a representação que os homens dão à Força Cósmica Maior, à Existência Máxima ou Consciência Suprema, que foi muitíssimo bem estudada por Jung. Por isso, você não precisa ter qualquer remorso, não deve alimentar qualquer complexo de culpa.
Abriu uma pesada porta revestida com cobre, fez Laura entrar à sua frente e falou:
— Já sei que você se esqueceu da ferradura e dos sete cravos...
Mais uma vez, Laura baixou os olhos, corando muito.
Raimundo de Ogum deu uma gargalhada e, mostrando a bolsa que ela estava carregando a tiracolo, disse:
— Mas eu cuidei para que a exigência de Ogum fosse cumprida...
Assustada, Laura abriu a bolsa e viu, sem querer acreditar em seus próprios olhos, que ali estavam uma ferradura nova e sete cravos...
— Mas isto é impossível! — conseguiu exclamar a jornalista, depois de algum esforço — Eu não pus nada disso em minha bolsa!
Segurando a ferradura com as pontas dos dedos, como se ela pudesse queimá-la, acrescentou:
— E essa bolsa estava no meu armário, vazia, sem nada dentro, até eu apanhá-la agora há pouco!
Raimundo de Ogum pegou a ferradura e os cravos das mãos de Laura e disse:
— Não tente explicar certas coisas, minha filha... Apenas aceite-as.
Fitando-a com intensidade, juntou:
— E acredite. Acredite que há energias capazes de atuar sobre a matéria, transportando-a de um lugar para outro. Energias dessa espécie tanto são capazes de atuar sobre as pessoas, modificando seu comportamento e sua maneira de pensar, quanto podem alterar os caminhos que essas mesmas pessoas devem trilhar.
Já começando a se recuperar da surpresa, Laura indagou:
— Está querendo dizer que essas energias podem modificar o destino das pessoas?
— Não — respondeu prontamente Raimundo de Ogum — O Destino é imutável, é algo que está escrito, é o próprio Karma de cada um. Mas, para se chegar a esse Destino, há caminhos e caminhos a trilhar. A escolha é que pode ser modificada por essas energias, por esses fluidos. As interferências podem levar uma pessoa a optar por esta ou por aquela maneira de pensar, ou seja, por este ou aquele caminho a seguir.
Mostrando o ambiente com um gesto abrangente, completou:
— Os Orixás ajudam o homem na escolha desses caminhos. Da mesma maneira, eles o auxiliam quando a trilha começa a ficar difícil e, por seu próprio esforço, por sua humildade frente a Deus e frente às Suas determinações, o homem merece ser ajudado.
Pousou a mão sobre o ombro esquerdo de Laura e disse:
— Fique à vontade. Daqui a pouco uma de minhas mucambas virá trazer água e um prato de comida. Você deverá comer e precisará beber toda a água. Enquanto isso, estarei me preparando para o ritual.
Assim falando, Raimundo de Ogum se retirou e, momentos depois, uma bonita mulata, usando um vestido branco e azul, comprido e rodado, aproximou-se da jornalista trazendo numa bandeja um copo de água e uma tigela com salada de feijão fradinho, um dos pratos prediletos de Laura.

*******

A jornalista, que até aquele momento poderia dizer com segurança que não estava com a mínima fome, comeu com apetite e, se mais houvesse, mais comeria.
Tomou a água, surpreendeu-se pensando que, se estava ali não poderia jamais ser à toa e, levantando-se, começou a observar o recinto onde se encontrava.
Não era o mesmo ambiente em que estivera dias atrás.
Onde estivera antes, quando viera com Dona Júlia, era uma espécie de anfiteatro, com poltronas estofadas e um palco semicircular.
Ali onde estava, era um salão bem menor, sem poltronas ou bancos, onde havia apenas um altar, duas cadeiras de braços e um par de atabaques a um canto.
As paredes, decoradas com figuras que pareceram a Laura serem desenhos cabalísticos, estavam muito limpas e pintadas de branco com faixas irregulares em azul claro.
Uma janela alta era coberta por uma cortina de cetim azul-celeste e uma outra cortina, esta branca, fazia as vezes de porta, separando o salão de um corredor que se perdia no interior do templo.
Laura sentiu vontade de sentar numa das duas cadeiras que ali estavam, mas inibida, não teve coragem para tanto.
Passeando pelo salão, olhando os desenhos pendurados nas paredes, Laura sentiu, de repente, uma imensa paz de espírito, percebeu uma sensação deliciosa de desprendimento completo, uma alegria de viver que havia muito tempo, não mais sabia o que era.
Sorriu consigo mesma e, nesse momento, escutou o chocalhar de uma sineta.
Voltou o olhar para a cortina que separava o salão do corredor e viu que o pai-de-santo acabava de entrar.



DOIS




Raimundo de Ogum, acompanhado por duas cambonas, aproximou-se de Laura.
Estava vestido com uma túnica como se fosse a vestimenta de um rei, feita em cetim branco e vermelho, empunhando um cetro dourado em cuja extremidade havia uma pedra arroxeada que Laura logo imaginou tratar-se de uma ametista.
O pai-de-santo estendeu o cetro na direção da moça e pronunciou algumas palavras em nagô, os olhos fechados, a face erguida como se estivesse invocando o auxílio do poderes superiores.
Uma das cambonas sussurrou ao ouvido de Laura:
— Pai Raimundo está incorporando Ogum Naruê, responsável pela quebra dos poderes da Magia Negra. Ogum Naruê tem muita força contra a Quimbanda...
O pai-de-santo fez um sinal chamando as duas cambonas para perto de si e, com o cetro, mostrou a mesa onde, para surpresa de Laura, estavam a ferradura e os cravos que ela deveria ter trazido e que Raimundo de Ogum tinha, por conta própria e miraculosamente, providenciado.
Com uma voz completamente diferente da que Laura já escutara anteriormente, o pai-de-santo exclamou:
— As almas desesperadas estão trabalhando! Os espíritos inquietos estão revoltados!
Indicando a cadeira, falou:
— Sente-se, minha filha... O que Ogum Naruê tem para lhe dizer é muito importante!
Laura obedeceu.
Se, no princípio chegara a estar com medo, naquele exato instante ela estava sentindo uma estranha segurança e — até achava engraçado — percebia sua alma invadida e tomada por uma intensa e deliciosa paz.
O pai-de-santo apanhou a ferradura, colocou-a sobre sua testa, murmurou uma espécie de oração também em língua yorubá e voltou a colocá-la sobre a mesa.
— Há forças do Mal atuando sobre ela... — disse, fixando o olhar em Laura — E sua missão é ajudá-la!
A jornalista não estava entendendo nada, mas intimidada pelo olhar do pai-de-santo, permaneceu calada.
Raimundo de Ogum pegou os cravos na concha da mão, ergueu-os acima da cabeça e deixou-os cair sobre a mesa.
Laura arregalou os olhos, incrédula...
Dos sete cravos, três caíram entre as duas pernas da ferradura, dois se encaixaram nos orifícios da mesma, como se ali tivessem sido propositadamente colocados e os outros dois foram se cravar — fundo, como se tivessem sido martelados — um de cada lado da ferradura, fora da concavidade por ela formada.
Raimundo de Ogum examinou atentamente a posição dos cravos e, depois de alguns instantes, falou:
— Os dois estão bem entrosados, bem grudados um no outro. Mas há interferências de fora, duas pessoas que estão tentando prejudicar e, por serem estranhas ao Karma de quem está sofrendo, tiram o equilíbrio do conjunto.
Ergueu os olhos e fitou Laura, dizendo:
— São três os trabalhos necessários para neutralizar a ação da magia que fizeram contra ela...
Levantou o cetro e apontou-o para Laura, falando:
— E você terá que executar esses trabalhos!

*******

Laura franziu as sobrancelhas fazendo uma expressão que demonstrava claramente que ela não havia entendido absolutamente nada.
Enquanto Raimundo de Ogum se retirava, acompanhado por uma das cambonas, a outra puxou delicadamente a jornalista para a frente do peji e disse:
— Pai Raimundo quis dizer que você precisa ajudar alguém. Deverá realizar três trabalhos para isso e ele vai lhe mostrar o que será preciso.
— Mas quem devo ajudar? — perguntou Laura — E por que eu? Por que fui escolhida para essa missão?
A cambona sorriu e respondeu:
— Pai Raimundo vai lhe explicar tudo, Laura. Tenha paciência.
Laura queria ter perguntado por que ele já não falara de uma vez e por que era necessário toda aquela encenação, uma vez que seria muito mais simples ele chamá-la e contar o que sabia...
Mas, não teve tempo.
Quando ia abrindo a boca para formular a pergunta, a cambona já tinha desaparecido e ela se encontrava novamente sozinha.
— Meu Deus! — pensou, começando novamente a ser tomada pela angústia, a paz que havia pouco sentira sendo substituída por uma desagradável sensação de ansiedade e mal-estar — Mas o que significa tudo isso? E o que estou fazendo aqui, num lugar que nada tem a ver comigo e com a minha maneira de pensar?!
Num lampejo, passou por sua cabeça a idéia de ir embora, de dar as costas para tudo aquilo e fugir...
— Fugir? — perguntou-se em um murmúrio — Mas fugir de quê, por quê e para onde?!
Nesse momento, a cortina do corredor balançou e Raimundo de Ogum voltou para a sala.
Desta vez estava sozinho, ou seja, não havia nenhuma cambona com ele e usava uma espécie de tanga feita com algodão grosseiro, cor de vinho — para Laura pareceu mais ser cor de sangue — e trazia na mão um antigo sabre de cavalaria.
O pai-de-santo sorriu, sentou-se numa das cadeiras e ordenou a Laura que ajoelhasse a seus pés, sobre uma pequena almofada que servia de genuflexório.
Raimundo de Ogum encostou a lâmina da espada sobre a cabeça da jornalista e falou:
— Você terá os meios e a energia para realizar esses trabalhos. Não fraquejará e os Orixás das Sete Falanges de Umbanda vão ajudá-la.
Fez Laura se levantar e obrigou-a a dar três voltas sobre si mesma enquanto ele, com as mãos estendidas para a frente, o sabre sobre os joelhos, murmurava uma oração yorubá. Em seguida, ergueu-se, caminhou até o corredor e, de trás das cortinas, pegou um incensório onde queimava um defumador muito perfumado.
— Que as essências aromáticas das ervas que limpam os caminhos, sirvam para deixá-la mais forte e imune às ações dos maus espíritos e daqueles que, ainda encarnados, estão usando as Falanges de Esquerda para prejudicar pessoas inocentes!
Balançou o turíbulo diante de Laura, mandou que ela desse novamente três voltas sobre si mesma, sempre no sentido anti-horário e, quando terminou, disse:
— Pronto, Laura... Agora, vamos conversar.
Fez um sinal para a jornalista, pedindo-lhe que o acompanhasse pelo corredor.
Parou diante de uma porta de madeira ricamente trabalhada e, abrindo-a, falou:
— Faça-me o favor de aguardar um pouco, enquanto troco esta indumentária. Se precisar de alguma coisa...
Mostrou, sobre a grande mesa de jacarandá que ocupava quase toda a sala, uma pequena campainha de prata, e completou:
— Se desejar algo, é só tocar a campainha que uma de minhas mucambas aparecerá para servi-la... Lembre-se que hoje e sempre, aqui, você é a rainha!

*******

Raimundo de Ogum reapareceu cerca de dez minutos mais tarde, já vestindo roupas normais e trazendo, ele mesmo, uma bandeja com uma jarra de refresco, dois copos altos e biscoitos.
— Sempre tenho fome depois de uma incorporação — justificou-se ele — Esse tipo de atividade exige muito do medium e acho que é o consumo excessivo de energia que acaba dando fome.
Serviu o refresco, comeu um biscoito e falou:
— Você está se perguntando o por quê de tudo isso. É perfeitamente natural, lembrando que você jamais esteve envolvida com qualquer atividade espiritual ou mediúnica.
Tomou um gole de refresco e continuou:
— Você recebeu a missão de proteger uma certa pessoa, ou seja, evitar que lhe aconteça alguma coisa muito desagradável. É uma missão importante e do bom cumprimento da mesma pode depender muita coisa de suas vidas futuras. Ou seja, se pudermos interpretar assim, tão matematicamente, você estará diminuindo o peso de seu Karma.
— E quem é essa pessoa? — perguntou Laura, ansiosa.
Raimundo de Ogum fez um gesto pedindo que tivesse paciência, e prosseguiu:
— Você também está curiosa, está se perguntando a razão de todo esse ritual, de toda essa encenação.
Laura sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e o pai-de-santo falou:
— Não se trata de encenação.
Fez uma pausa como se quisesse que essas suas palavras calassem bem fundo em Laura e disse:
— Toda religião mexe com a magia. Seja a magia, genericamente falando, seja a magia coletiva ou individual. A Umbanda, o Candomblé a Quimbanda, são formas de magia, também. Ora, a magia é antes de tudo, uma abstração. Assim, para que nós, humanos, mortais ainda muito limitados pela carcaça que envolve nosso espírito, ou seja, seres cujo corpo astral ainda se encontra aprisionado dentro do corpo físico, possamos nos integrar completamente à magia, é preciso que haja a interação de todos os sentidos, inclusive do Sentido Especial, aquele que trabalha com os Arquétipos da Inconsciência Coletiva. Por isso, a indumentária, o som de tambores ou música, o cheiro de incenso e de defumações, a bebida ou mesmo a comida que é servida em determinadas liturgias. Essa interação sensorial possibilita com maior facilidade, o contato com o subconsciente, com as chamadas realidades invisíveis, que são alcançadas principalmente quando os arquétipos são acionados.
Laura fez um sinal afirmativo com a cabeça e murmurou:
— Em resumo, a ritualística faz com que se tornem possíveis as projeções do subconsciente...
— Exatamente! — exclamou Raimundo de Ogum — O ritual mágico, através da interação dos cinco sentidos com a subconsciência ou inconsciência junguiana, faz com que se crie individualmente uma quarta dimensão que é o espelho, a imagem ou projeção dessa mesma inconsciência, já trabalhada e ativada pela percepção dos arquétipos, sejam eles coletivos, ou individuais.
Laura refletiu alguns instantes e perguntou:
— Mas... Por que eu? Por que fui a escolhida para ajudar essa pessoa?
Raimundo de Ogum ergueu os ombros como quem pede desculpas e respondeu:
— Isso, não sei. Os desígnios da Consciência Superior são sempre muito mais misteriosos do que podemos imaginar. Talvez, em uma vida anterior você tenha ficado com um débito para com esse outro espírito...
Sorriu e explicou:
— Entenda que você não estará ajudando uma determinada pessoa, mas sim um determinado espírito. Você provavelmente estará impedindo que esse espírito, por uma questão de desespero, de desânimo ou até mesmo de descrença, entre numa fase que piorará o seu desenvolvimento, que atrapalhará a sua caminhada à procura da Luz. Esse espírito e o seu poderão estar ligados em algum ponto da Eternidade...
Fitando intensamente os olhos de Laura, acrescentou:
— Mas isso, no fundo, não interessa. No momento, não é importante saber o que aconteceu a dezenas, centenas ou até milhares de anos atrás. Basta que se saiba o que é preciso fazer para ajudar alguém.
Tamborilou com os dedos sobre o tampo da mesa e disse:
— Essa pessoa que você precisa ajudar, está passando por uma fase astral muito difícil. Está sendo literalmente pressionada a desmantelar um esquema empresarial que levou anos para ser construído e está sendo alvo da inveja de muitos. Como se isso não bastasse, há uma fazenda...
Balançou negativamente a cabeça e falou:
— É uma história complicada e que, para se tornar credível, precisa de pesquisa. Muita pesquisa e, o que é mais importante, de muito desprendimento material.
Com um suspiro, juntou:
— Coisa muito difícil de encontrar entre empresários...
Olhou para Laura e, abrindo um sorriso, disse:
— Você já tem os três trabalhos que precisará realizar: aproximar-se da pessoa, pesquisar e preveni-la do perigo que está correndo.
Vendo a expressão de desânimo que se estampava no rosto da jornalista, Raimundo de Ogum falou:
— A pessoa que você precisa ajudar chama-se Beatriz Medeiros de Albuquerque...
Levantando-se, finalizou:
— E Ogum Naruê vai lhe proporcionar os meios necessários para que possa chegar com êxito ao final de sua missão.


TRÊS




Laura voltou para casa sem nem mesmo perceber que estava dirigindo um automóvel, que estava atravessando a cidade de Vitória num horário que ela detestava — passava de dez horas da noite — e só se deu conta de que estava neste mundo quando se viu diante de sua cama, o corpo dolorido pela tensão, suado, pedindo um banho.
— Mas o que será que está acontecendo? — perguntou-se, enquanto se despia — Logo comigo, que nunca acreditei em nada disso...!
Já debaixo do chuveiro, deixando a água deliciosamente fria escorrer-lhe pelo corpo, a jornalista começou a raciocinar e a tentar por um pouco de ordem em suas idéias.
Em primeiro lugar, havia aquela história de ela ter de ajudar Beatriz.
Evidentemente, ela se lembrava de Beatriz e, portanto, não era muito válida a afirmativa de Raimundo de Ogum quando da primeira vez que Laura o encontrara.
Raimundo dissera que ela nem sequer se lembrava mais daquela amiga e isso, não era verdade.
Laura só não a procurara em Vitória porque, depois daquela noite em Paris, quando Beatriz a deixara falando sozinha no bar, ficara ofendida, jurara que...
— Mas é isso mesmo! — exclamou, enquanto se ensaboava — Eu jurei que a esqueceria! E, para todos os efeitos, sempre que sentia falta de alguém ou de alguma companhia, fosse aqui em Vitória ou em qualquer outro lugar do mundo, jamais me lembrei dela!
Enxaguando a cabeça, murmurou:
— Pensando assim, Raimundo de Ogum estava com a razão! Se for permitido dizer, subconscientemente, eu a esqueci!
Saindo do banho e enxugando-se, pensou:
— Agora... O problema será procurá-la. Sei onde achá-la, mas... Depois de tanto tempo... Não sei como serei recebida, não creio que ela, hoje uma mulher tão ocupada e tão importante, ainda se lembre de mim!
Terminando de se esfregar com a toalha, olhou-se no espelho.
Sorriu...
Sim, a imagem que lhe era devolvida, agradava aos olhos.
— Já perto de trinta anos... — disse Laura, para si mesma — Mas ainda estou em forma! Ainda conseguiria impressionar bem a maioria dos homens!
Com uma ponta de amargura, lembrou-se que, nos últimos tempos, não tinha nem mesmo pensado em arranjar um companheiro, não se preocupara com isso, apenas vira à sua frente, o jornalismo e a imensa necessidade que tinha de conseguir um lugar ao sol, de mostrar o seu valor, de provar para todos e para si mesma, que era capaz de vencer por sua capacidade e não apenas por seus dotes físicos.
Contatos com homens?
Tivera diversos...
Bastava enumerar todos os editores de todos os jornais onde procurara uma vaga.
Talvez, nas redações, não a quisessem, mas...
Na cama, com certeza todos a desejaram e deixaram muito clara essa intenção!
De repente, como num flash muito rápido e quase incompreensível, ela viu diante de si o rosto simpático, bom e sorridente de Raimundo de Ogum.
Assustou-se.
Por que pensara nele, justamente naquele instante?
Já começava a tecer uma complicada e fantasiosa teoria de sugestão pós-hipnótica, quando o telefone tocou.

*******

— Temos de dar um jeito de fazer parar esses ataques dos sindicalistas contra nossas empresas! — falou Beatriz, aborrecida, mostrando para Pedreira uma notícia que lera no principal jornal da cidade — Além de ser mentira, esse tipo de situação está prejudicando nossa imagem e você sabe muito bem que isso não é nada bom!
— A culpa não é dos jornalistas, Beatriz — retrucou Pedreira, com ironia na voz — É sua! Você é que diz coisas que não deve e, depois...
Beatriz foi obrigada a se calar.
Desta vez, Pedreira estava com a razão.
Ela tinha sido extremamente desastrada numa entrevista que dera a esse jornal, quando falara que a maior culpa da quantidade excessiva de acidentes de trabalho no ramo da construção civil, era devida à má-vontade dos próprios trabalhadores, que insistiam em não usar o equipamento de segurança que a empresa lhes fornecia.
Os sindicalistas se aferraram a essa teoria de Beatriz, e atacaram de um modo global todo o conglomerado Medeiros de Albuquerque, dizendo que a instrução sobre a necessidade de proteção e segurança no trabalho, era responsabilidade da empresa, pois os operários, em sua maior parte, pessoal chamado de mão-de-obra não-qualificada, não teria a menor obrigação de nascer sabendo.
Dessa polêmica nasceram outras entrevistas, muitas reportagens, incursões nem sempre bem-intencionadas da fiscalização e mais um milhão de aborrecimentos.
— Você precisa se preparar mais, precisa pensar no que fala! — advertiu Pedreira.
Não querendo discutir esse assunto, Beatriz mudou o rumo da conversa e pediu ao seu assessor notícias de uma das empresas da holding.
Pedreira se retirou para sua sala para apanhar os documentos que precisaria consultar e relatar à presidência, e Beatriz respirou aliviada.
Conseguira mais uma vez, afastá-lo de sua aura e, o que era melhor, conseguira mostrar-lhe quem mandava.
Por infantil que isso pudesse parecer, Beatriz achava ótimo quando tinha oportunidade de dar uma ordem a Pedreira, de fazê-lo ver que ele era apenas um empregado e que tinha como obrigação primordial, cumprir as determinações de seus superiores.
No caso, ela.
Contudo, Beatriz não podia negar que o assessor estava com toda a razão.
Ela tinha sido infeliz em sua entrevista e, como conseqüência, todos estavam pagando o preço.
Pondo um pouco de ordem nos papéis que estavam sobre sua mesa, ela pensou:
— Pierre estava certo quando me disse, ainda lá em Paris, que um empresário deve investir na formação de sua imagem. E, para isso, a única maneira é ter pessoal especializado, ou seja, poder contar com uma boa e eficiente assessoria de imprensa.
Terminando de arrumar a mesa, voltou a apanhar o jornal e, folheando-o, viu de repente, um artigo assinado por Laura Vieira de Souza...
— Ora! — exclamou — Mas é aquela moça que eu encontrei em Paris!
Imediatamente, a idéia se formou em sua cabeça.
Ligou para a redação do jornal, descobriu o telefone de Laura e, sem vacilar, discou para ela.

*******

A jornalista, assim que ouviu Beatriz se identificar, do outro lado da linha, ficou estática, muda, sem conseguir mexer um só músculo.
Aquilo era demais, para ela...
Lembrou-se de Raimundo de Ogum dizendo-lhe que ela
seria ajudada em sua missão, mas daí a acontecer tudo assim, tão rapidamente...!
Ouviu a voz de Beatriz, quase gritando:
— Alô! Alô! Você está me ouvindo, Laura?
Como se saísse de um sonho, a jornalista respondeu:
— S-sim... Sim... Estou ouvindo...
E, tentando se recompor, exclamou:
— É incrível! Há menos de dois minutos, eu estava pensando em você...!
Beatriz riu, disse-lhe que vira seu nome assinando uma matéria do jornal e, por isso, lembrara de telefonar.
—Estou atravessando uma fase difícil — falou — Tenho tido muitos problemas com a imprensa. É verdade que fui culpada, mas...
Fez uma pausa e juntou:
— Acho que preciso arrumar uma maneira de corrigir a má imagem que seus colegas jornalistas estão passando de mim e de minha empresa.
Laura continuou calada e Beatriz disse:
— Tenho a impressão que as coisas melhorariam se eu conseguisse montar uma boa assessoria de imprensa, um departamento dentro da holding que cuidasse apenas da divulgação do que fazemos, da preocupação social que temos com relação aos nossos empregados.
Laura, a cada instante, ficava mais impressionada.
Da forma como Beatriz estava se expressando, parecia-lhe que a amiga pretendia convidá-la para participar dessa equipe de assessoria.
Seria, realmente, o cúmulo!
O primeiro passo para o reencontro das duas, já tinha sido dado e... pela própria Beatriz. Agora, como se não fosse o suficiente, ela estava deixando entender que queria a jornalista fazendo parte de sua equipe de trabalho!
Ou seja, alguém a estava ajudando muito eficientemente, pois além de facilitar o encontro, estaria possibilitando os recursos materiais de que Laura precisava para bem desenvolver os trabalhos que Raimundo de Ogum dissera.
Confirmando as suposições de Laura, Beatriz falou:
— Achei que você talvez pudesse organizar essa assessoria para mim. Não sei quanto está ganhando no jornal, mas com certeza não irá se arrepender por trocar de emprego.
Riu, mais uma vez — e Laura teve a impressão de que o riso era excessivamente nervoso e tenso — e completou:
— No mínimo, você estará trabalhando com uma amiga, não é mesmo?
Conversaram mais alguns momentos, combinaram uma reunião para dentro de três dias e despediram-se, Laura ainda atordoada e espantada, enquanto que a outra, estava sorridente, cheia de esperanças e com a idéia certa e segura de ter conseguido resolver pelo menos um grave problema da empresa.
Laura tinha acabado de desligar o telefone e já estava se dirigindo para o quarto, quando o aparelho soou novamente.
Não foi preciso fazer nenhum esforço para que a moça reconhecesse a voz grave e cheia de Raimundo de Ogum.
— E então? — perguntou o pai-de-santo — Quando começa a trabalhar com Beatriz?
E, antes que a jornalista pudesse responder, Raimundo de Ogum falou:
— Como pode ver, você está sendo ajudada. Por aí, pode avaliar quanto os Orixás estão achando sua missão importante. Não os decepcione... Não me decepcione!


PARTE V


AS FORÇAS DE ESQUERDA



UM




O Boeing 737-300 da Vasp, pousou suavemente na pista do Aeroporto de Goiabeiras, em Vitória, taxiou e se aproximou do terminal de passageiros, as turbinas já diminuindo a rotação e desprendendo o cheiro característico de querosene queimada, enquanto os alto-falantes anunciavam com aquela voz mole, ao mesmo tempo impessoal e sensual, a chegada do vôo procedente de São Paulo, com escala no Rio de Janeiro.
Beatriz começou a caminhar para o portão de desembarque, pensando:
— Tenho de manter a calma... Preciso me controlar. Não posso demonstrar o que estou sentindo e não quero que Pierre perceba o que, na realidade, a sua presença causa em mim!
Vendo os primeiros passageiros saindo do avião e caminhando pelo pátio ensolarado em direção ao salão de desembarque, murmurou:
— Pierre vai me ser muito útil, aqui. Mas está vindo para trabalhar como meu assessor e nada mais! Não posso misturar o passado ao presente e, muito menos, tentar sonhar com um futuro baseado no que aconteceu, esquecendo o que sofri lá em Paris por sua causa!
Viu o rapaz surgir na porta do salão, dirigir-se para a esteira rolante e apanhar duas malas.
Sentiu o coração bater mais forte, percebeu que, ainda que lutasse desesperadamente para manter as aparências, seus olhos se enchiam de lágrimas...
Pierre olhou para ela e sorriu.
Beatriz agitou a mão através do vidro do salão e soube, naquele instante, que tudo quanto havia planejado para aquele momento — a recepção o mais profissional possível, a distância que pretendia manter de Pierre, o relacionamento mais frio — acabara de cair por terra.
Ela estava feliz, feliz como havia muito tempo não se sentia.
Pierre deixou as duas malas no chão, olhou para Beatriz e disse, abraçando-a:
— Você está ainda mais bonita, Beatriz! Mais bonita do que nunca!
Beijaram-se.
No primeiro instante, foram dois beijos castos, amigos, um em cada lado do rosto, mas logo em seguida...
Seus lábios se encontraram, ardentes, ansiosos, voluptuosos, seus corpos se colaram, sentindo-se, despertando desejos que havia muito estavam adormecidos e latentes.
— Não queria que fosse assim... — queixou-se Beatriz, a respiração ofegante, os lábios trêmulos — Não poderia ser assim!
— Não poderia haver outra maneira, minha querida — sussurrou Pierre, ao seu ouvido — Esperei tanto tempo por este momento...! Esperei tanto para poder lhe dizer que a amo, que a quero, que minha vida mudou muito desde que você voltou para o Brasil...
Pierre pôs as malas num carrinho e empurrando-o, acompanhou Beatriz até o estacionamento.
— Minha vida também mudou, Pierre — disse ela, abrindo o porta-malas do automóvel — E, na realidade, mudou para pior.
Sentando-se ao volante, juntou:
— Tenho tido aborrecimentos demais... Chego a sentir que envelheço dez anos por semana!
Sorriu para o rapaz e arrematou:
— Para uma mulher, isso é muito grave, concorda?

*******

Dirigindo com calma e prudência, Beatriz atravessou o Jardim da Penha até chegar à Praia de Camburi. Virou à direita , em direção à Praia do Canto, e falou:
— Reservei um apartamento para você no Hotel do SENAC, na Ilha-do-Boi. É um lugar bonito, um hotel considerado muito bom.
Parando num semáforo que dera luz vermelha, acrescentou:
— E tem a vantagem de ser bem perto de casa...
Pierre não pode esconder uma ponta de decepção.
Estava imaginando que ficaria hospedado na residência de Beatriz o que significaria uma abertura a mais, uma maior possibilidade de reatar integralmente o relacionamento tão estupidamente interrompido em Paris.
Mas, pelo que estava percebendo, a moça não tinha muita vontade de que as coisas entre eles acontecessem dessa maneira.
O semáforo deu luz verde e Beatriz arrancou com o carro.
A sombra esverdeada surgiu no canto direito do campo de visão de Pierre, como um monstro que os atacasse.
O rapaz teve tempo de gritar e, com um golpe de direção ao mesmo tempo em que pisava o freio com violência, Beatriz conseguiu evitar o choque.
A camionete entrou como um bólido, atravessou a pista e virou à esquerda, seguindo na direção do Porto de Tubarão.
Beatriz respirou fundo, ainda trêmula, e balbuciou:
— Meu Deus...! Se você não tivesse gritado...
Olhou para o rapaz que também estava lívido, e disse:
— A pancada teria sido do seu lado! E com a velocidade que essa camionete estava desenvolvendo, creio que...
Interrompeu-se, cobriu o rosto com as mãos e começou a soluçar.
Pierre se esforçou num sorriso, passou o braço esquerdo por cima dos ombros de Beatriz e falou:
— Mas não aconteceu nada, minha querida... Fique calma, vamos...
A moça, a muito custo, conseguiu se controlar e, dando partida novamente ao motor, retomou o caminho.
Ao seu lado, Pierre comentou, quase que monologando:
— É... Parece que as coisas por aqui, andam muito mal... Tenho a impressão que, definitivamente, não sou bem vindo!
Beatriz ainda estava soluçando um pouco e Pierre, tentando acalmá-la, falou:
— Mas nós vamos consertar tudo... Você vai ver como as coisas se arranjarão! Só preciso que você me passe todas as informações e, talvez, precise de cerca de dez dias para tomar pé na situação e começar a ajeitar a...
Olhou de lado para Beatriz e disse:
— ... nossa vida!
A jovem nada respondeu e Pierre, pousando a mão esquerda sobre a coxa de Beatriz, perguntou:
— Esse tipo de incidente tem acontecido com muita freqüência?
Ela refletiu por alguns segundos, lembrou-se de duas ou três vezes em que por muito pouco não se vira envolvida num acidente grave no trânsito, e respondeu:
— Com freqüência, não digo... Mas tem acontecido, sim. Muito mais do que seria normal.
Já fazendo a conversão à esquerda para entrar na Ilha-do-Boi, Beatriz falou:
— Tenho atribuído esses quase acidentes à minha distração. Como minha vida está muito atribulada e tenho tido muitos aborrecimentos, imagino que isso, de certa maneira, influa. Presto menos atenção no trânsito, acabo cometendo imprudências.
— Agora há pouco, não houve nenhuma imprudência ou distração de sua parte, querida — ponderou Pierre — O acidente só não aconteceu porque você teve um reflexo muito rápido...
Com um sorriso e olhando intensamente para Beatriz, ele finalizou:
— Ou, então, porque alguém conseguiu segurar o carro...

*******

Beatriz lançou um olhar furioso para o atrapalhado rapaz da recepção do hotel e, pela terceira vez, perguntou:
— Mas como, não há reserva para o senhor Pierre Bertrand?
O recepcionista, encabulado, sem saber onde enfiar a cara, voltou a folhear o livro de reservas, consultou mais uma vez o computador e respondeu:
— A reserva, de fato, foi feita, senhora... Mas foi cancelada! Foi cancelada há dois dias!
Mostrando para Beatriz a tela do monitor, explicou:
— Recebemos um telefonema da Medeiros de Albuquerque, cancelando a reserva. Pode ver, aqui no computador!
— Mas isso é um engano! — protestou Beatriz — Eu não mandei ninguém cancelar coisa nenhuma!
— Houve o cancelamento... — insistiu o funcionário do hotel — Isso não apareceria no computador gratuitamente!
Beatriz bufou, irada e, procurando manter a calma, disse:
— Muito bem... Houve o cancelamento... Se foi engano, mal-entendido, ou qualquer outra coisa, agora isso não interessa. O que é preciso é arrumar acomodações para o senhor Pierre Bertrand.
O recepcionista balançou negativamente a cabeça e falou:
— Sinto muito, senhora... Mas não há vagas... Nenhuma! Nem mesmo poderia arranjar um quarto provisório!
Com um risinho sem graça, explicou:
— Estão acontecendo três grandes congressos na cidade. E, por isso, todos os nossos apartamentos estão ocupados. Só poderei conseguir alguma coisa, dentro de três ou quatro dias!
Beatriz olhou para Pierre e este, com um sorriso, falou:
— Não há o que fazer, querida... A esta altura...
Passou o braço pela cintura da moça e sussurrou ao seu ouvido:
— Só lhe resta aceitar as evidências, Beatriz. Precisarei ficar em sua casa!


DOIS




O dia começava a morrer, o sol já tinha caído por trás das montanhas e a luminosidade esmaecida do anoitecer tornava a paisagem que Pierre descortinava da varanda, ainda mais bela.
Sentado ao lado de Beatriz, que acabara de relatar os principais e mais urgentes problemas por que estava passando, Pierre tomou mais um gole de uísque com água de coco, e disse:
— Bem, minha querida... Acho que o problema mais grave, ou seja, a ingerência de Pedreira na empresa, a partir de minha chegada, tornou-se fato ocorrido, coisa do passado.
Vendo um grande cargueiro que deixava o porto, continuou:
— Foi uma boa idéia mandar esse indivíduo para o exterior e será uma idéia melhor ainda, ao seu regresso, demiti-lo da holding. Pedreira não será mais necessário funcionalmente e, para ser muito sincero, não gostaria de tê-lo por perto, gavionando a mulher que eu amo.
Beatriz sorriu, encostou a cabeça no ombro de Pierre e falou:
— Essa é uma preocupação que eu não tenho. Pedreira pode gavionar quanto quiser...
Beijou os lábios do rapaz e acrescentou:
— Meu coração já tem dono, Pierre. E, segundo você mesmo e as suas feiticeiras Madeleine e Mère Régine, nós dois somos um só, há muitas vidas...!
Pierre acariciou os cabelos de Beatriz e ela continuou:
— Não gostaria de demitir Pedreira assim. Ele já está na empresa há muitos anos, de uma maneira ou de outra, tem seus méritos e, no fundo...
— No fundo — interrompeu Pierre — ele é tão inescrupuloso que foi capaz de agir contra você e contra mim, fazendo uso de Magia Negra! Só isso, para mim, é o suficiente!
— Como pode ter tanta certeza assim? — perguntou Beatriz.
— Você sabe que determinadas certezas, principalmente quando estão relacionadas com fenômenos supranaturais, não precisam de provas. A intuição é o quanto basta e, nesse caso especificamente, há ainda as informações que me foram passadas lá em Paris, por Mère Régine.
Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes e, depois de se servir novamente de uísque, Pierre disse:
— Mas... Concordo que você não precipite os acontecimentos. Acho até bom protelar um pouco essa demissão.
Voltou-se para Beatriz e, segurando o queixo da moça entre o polegar e o indicador da mão esquerda, falou:
— Só que não é por nenhuma questão humanitária, por caridade, pena ou o que quer que você possa pensar que eu concordo com o adiamento da demissão de Pedreira. Pura e simplesmente é para evitar que ele recrudesça os ataques através da Magia Negra.
Muito sério, explicou:
— Por mais que você e eu estejamos protegidos, por mais que saibamos ser muito difícil sermos atingidos, há sempre a probabilidade. A carapaça protetora que nos envolve, uma carapaça energética altamente positiva, pode ter um ponto fraco. Basta que Pedreira o descubra e...
— Não vejo nenhum ponto fraco, querido — riu Beatriz, abraçando-o — Havendo amor...
— Está certo — concordou Pierre — Talvez Pedreira jamais possa nos atingir no que diz respeito à nossa união, especialmente agora, que eu me convenci definitivamente que a amo e que você é a única mulher de minha vida. Mas, há outros pontos. A empresa, por exemplo. A nossa integridade mental, outro exemplo.
Beatriz fez uma expressão de interrogação e Pierre falou:
— Se começarem a acontecer muitas coisas excessivamente estranhas, é muito possível que você...
Olhou intensamente para Beatriz e disse, separando bem as sílabas:
— É possível que você não tenha estrutura psicológica para suportar. E, se acontecer de você cruzar os fios, entrar em uma crise psicológica grave, venha a cometer loucuras. Loucuras de uma maneira geral, sejam elas empresariais ou pessoais.
Beatriz não respondeu, lembrando-se que, dias atrás, estivera a ponto de jogar tudo para o alto e desaparecer...
— Sim... — murmurou consigo mesma — Teria sido uma loucura empresarial e pessoal ao mesmo tempo...
Pierre fez de conta que não tinha ouvido, e prosseguiu:
— Pedreira é um homem perigoso. Toda pessoa que lida com Magia Negra, acaba sendo perigosa para os outros e para si mesma. Por isso, não podemos esperar que ele tenha um fim dos melhores.
— Você está sendo tétrico! — protestou Beatriz — Eu não desejo mal a ninguém, nem mesmo a Pedreira!
— Eu não disse que você lhe deseja mal. Eu, tampouco, quero que lhe aconteça qualquer coisa de ruim. Mas é o que vai suceder, Beatriz! Pedreira vai acabar mal e o que eu não posso querer é que você esteja envolvida com ele quando isso acontecer!
Mais uma vez, Beatriz sorriu e, aproximando-se de Pierre, falou:
— Não haverá a menor possibilidade de estar envolvida com Pedreira. Nunca mais estarei envolvida com outro homem que não seja você, Pierre...
Encostou-se muito a ele, fazendo com que o rapaz sentisse seus seios rijos roçando, por sob o pano fino da blusa, em seu peito...
Com voz rouca, a voz quente que as mulheres têm quando estão completamente dominadas pelo desejo, Beatriz murmurou:
— Não sei e nem quero saber se estou cometendo um erro, Pierre... Mas eu não o soltarei mais. Nunca mais!
E, ali mesmo na varanda, à luz de uma enorme lua-cheia que parecia brotar do mar, Pierre e Beatriz se entregaram, como loucos, como se o mundo para eles fosse terminar no instante seguinte, às delícias do amor.
De um amor que parecia ter sido reprimido por séculos...
Talvez até mesmo por milênios...






TRÊS




— Sim... — murmurou Paulinho de Salvador, os olhos fechados, as mãos estendidas sobre uma lasca de quartzo rosa muito bem polida e lapidada — Eu os estou vendo...
À sua frente, Pedreira apertou muito os maxilares e rilhou os dentes, morrendo de vontade de perguntar ao pai-de-santo, o que é que ele estava vendo.
Não foi preciso.
Paulinho de Salvador abriu os olhos e, com um sorriso carregado de malícia, disse:
— Eles estão se amando. Estão se entregando a uma verdadeira orgia, na varanda da casa de Beatriz, ao lado da piscina.
— Malditos! — exclamou Pedreira, com o mesmo ódio que teria um marido traído ao saber das prevaricações da esposa — Desgraçada! Com ele, com esse francês, ela é capaz de fazer essas coisas!
Paulinho de Salvador riu, voltou a estender as mãos sobre o quartzo e, depois de alguns segundos, disse:
— Você não deve perder as esperanças, Pedreira. Se souber agir direito...
Levantou-se, apanhou uma vela vermelha e outra preta, ambas com o formato de caveira, acendeu-as dos dois lados da mesa e ficou observando suas chamas.
Depois de mais de dois minutos, Paulinho de Salvador ergueu os olhos para Pedreira e falou:
— Temos de fazer uma oferenda para Exu d’Aruanda. E isso precisa ser feito com muita urgência, pois do contrário, sua posição poderá correr perigo!
Cruzou os braços e, estufando o peito, disse:
— E somente Exu d’Aruanda poderá resolver esse seu problema!
Pedreira reprimiu um suspiro e controlou-se para não protestar. Já estava ficando farto daquelas oferendas que, todas as vezes, significavam despesas bem grandes com que ele tinha de arcar.
E o pior...
O pior era que nada parecia dar certo!
Beatriz acabava sempre fazendo o que bem entendia, dava um jeito de dobrar aqueles molóides do Conselho Diretivo e aos poucos ia impondo a sua vontade e a sua maneira de dirigir a empresa.
Por mais trabalhos que fizesse, por mais dinheiro que gastasse, não conseguia enxergar nenhum progresso no seu relacionamento com a moça. Bem ao contrário, havia aquela última novidade, querer que ele fosse para o exterior...
Mas isso estava muito bem explicado!
Beatriz queria vê-lo longe para poder, não somente alijá-lo da holding, mas principalmente para poder ficar mais à vontade com o francês...!
Em sua mente doentia, Pedreira já se colocara como senhor e proprietário tanto do corpo quanto da alma de Beatriz e assim, aquela história dos dois estarem na varanda, ao lado da piscina, entregues a um amor desenfreado, fazia com que ele se sentisse um marido traído, cheio de ódio e de ciúmes.
E agora, lá vinha Paulinho de Salvador exigindo mais trabalhos a Exu, dizendo que ele teria mais despesas para fazer!
— Mas vai funcionar, desta vez? — perguntou Pedreira, sem conseguir esconder a irritação.
Paulinho de Salvador olhou para ele, apertou as pálpebras e rosnou:
— É claro que vai funcionar, Pedreira. Mas é preciso que você tenha fé! Sem fé, sem determinação, com esse espírito de dúvida que você tem, nada pode dar certo! Nada!
Levantando-se e fazendo um sinal para que o outro o acompanhasse, falou:
— Se você continuar a duvidar do poder de meus Guias de Esquerda, só vai continuar a gastar dinheiro e a me fazer perder tempo! Você me conhece, sabe muito bem que não gosto nem um pouco de perder tempo com pessoas que não acreditam em minha magia! E você sabe que meus trabalhos funcionam!
Com os olhos despedindo chispas de furor, arrematou:
— Mas é claro que só pode funcionar cem por cento, se houver fé e boa-vontade por parte do interessado!
Pedreira mordeu a língua.
De qualquer maneira, a última coisa que queria era irritar o pai-de-santo, fazê-lo se voltar contra ele.
Tinha medo...
Muito medo do poder daquele homem que lidava com tanta naturalidade com as forças do Mal, que falava com os Exus com tanta intimidade, chegando a rir com eles.
— Desculpe-me — disse Pedreira, entrando atrás de Paulinho no salão de sacrifícios aos Exus — Ando muito nervoso, você sabe disso...
O pai-de-santo riu, pousou a mão sobre o ombro de Pedreira e falou:
— Tenha fé, meu amigo...! Você precisa ter fé! Verá que tudo vai dar certo e que você ganhará essa partida!

*******

Nus, ofegantes por causa do excesso de amor, Beatriz e Pierre entraram na piscina para se refrescar.
Com a abóbada celeste carregada de estrelas como teto, os dois voltaram a se abraçar e Pierre, beijando os lábios da moça, falou:
— É engraçado... Há pouco, enquanto estávamos...
Sorriu, apertou-se mais a Beatriz e completou:
— Tive a impressão de que estávamos sendo observados...
Beatriz sacudiu a cabeça negativamente e, com um gesto amplo, como se quisesse abarcar tudo à sua volta, disse:
— É impossível, Pierre... Estamos num dos pontos mais altos da ilha, não temos vizinhos, não há um só empregado em casa a esta hora...
Deu uma risadinha marota e acrescentou:
— E eu não ouvi nenhum helicóptero passando e flanando sobre nossas cabeças...
— Pode ser... — admitiu Pierre — Mas a verdade é que eu tive essa sensação. E posso garantir que não achei graça nenhuma...
Antes que Beatriz pudesse insistir em que seria absolutamente impossível alguém os espionar, o rapaz falou:
— Você sabe muito bem a que tipo de espionagem estou me referindo, querida... A espionagem telepática!
Beatriz gostaria de ter podido dizer que não acreditava, que espionagem telepática era um absurdo, que não existia...
Mas...
Depois de tanta coisa...
E, em se tratando de Pierre, uma vez que ele estava afirmando ser possível, como não acreditar?
Saindo da piscina, Pierre continuou, mais uma vez entrando nos pensamentos de Beatriz:
— Sou obrigado a imaginar que muito do que está acontecendo conosco e, principalmente com você, tenha suas raízes em algo supranatural. Não se trata de fanatismo de minha parte e muito menos de querer encontrar justificativas para tudo no campo do fantástico. Mas, depois do que me foi dito por Mère Régine, e depois de ter constatado que ela sempre esteve certa, não me resta outra alternativa.
Deitando-se numa espreguiçadeira, aceitou com um sorriso o novo copo de uísque que Beatriz lhe servia e completou:
— De qualquer maneira, sei que vamos vencer essa batalha. E, como já sei quem é o maior responsável por tudo isso que vem lhe acontecendo, pode estar certa que a vitória ficou ainda mais fácil e segura!

*******

Durante o jantar — um jantar à luz de velas que os dois fizeram juntos — Beatriz falou:
— Poderíamos ir para a fazenda... Você vai gostar do lugar, é muito bonito...
Servindo mais um pouco de maionese de lagosta no prato de Pierre, ela disse:
— O casarão, uma construção do século passado, é um dos problemas de minha vida. Não consigo quem o reforme, há sempre alguma história fantástica que assusta meus operários e os põe de lá para fora apavorados!
— E você? — indagou Pierre — O que acha? Acredita que haja, mesmo, alguma coisa de anormal?
Beatriz ergueu os ombros, desanimada e respondeu:
— Sinceramente, não estou em condições de achar coisa nenhuma...
Pierre serviu o vinho, provou, estalou a língua aprovando-o e murmurou:
— Construções antigas são sempre um excelente foco de miasmas do passado, de energias remanescentes de pessoas que ali viveram, sofreram e morreram. Não seria de espantar se, de fato, alguma coisa incrível existir por lá.
Tomou mais um gole de vinho e juntou:
— Basta lembrar dos fantasmas dos velhos castelos escoceses... Há pessoas das mais idôneas que os viram!
— Acredito muito na auto-sugestão, nesses casos — ponderou Beatriz — A pessoa vai a um desses castelos imbuída da idéia de que lá existem fantasmas. E, por um fenômeno de auto-sugestão, ela acaba mesmo vendo-os.
Pierre, com a boca cheia, não pode dizer nada e Beatriz, aproveitando a oportunidade, falou:
— No caso desse casarão, a história é outra. Há um fenômeno, por exemplo, para o qual eu não tenho a menor explicação.
Pierre ergueu os olhos para a moça, curioso, e esta prosseguiu:
— Na escada de acesso à varanda, no terceiro degrau, o mármore está manchado. É uma mancha muito feia, com aspecto de sangue velho. E essa mancha não sai. Mesmo trocando o degrau por um outro, novo, a mancha voltou a aparecer. Idêntica e no mesmo lugar. Tive a impressão até de que o degrau não tinha sido trocado, esbravejei com o mestre-de-obras... Mas o Crispim, que esteve trabalhando lá até pouco tempo atrás, é pessoa de total confiança. Jamais teria se sujado por um degrau de escada! Uma coisa tão barata e banal!
— O que você sabe sobre a história do lugar? — perguntou Pierre.
— Por enquanto, muito pouco — respondeu Beatriz — Pedi para a jornalista que está encarregada da assessoria de imprensa da holding, para estudar o assunto e procurar documentos a respeito.
Com um sorriso triste, acrescentou:
— Era minha intenção fazer uma pesquisa histórica, juntar dados, até mesmo escrever um livro sobre essa fazenda. Mas...
Suspirou, balançou a cabeça negativamente e, tomando um gole de vinho, completou:
— Não tive tempo. Não tive tempo para nada, desde que assumi a presidência da holding. Tenho de estar sempre preocupada com a ação daninha desses abutres do Conselho Diretivo, preciso estar alerta e atenta às manobras que ficam tentando fazer! Por exemplo, se eu não abrisse os olhos a tempo, eles teriam conseguido transformar o conglomerado numa sociedade anônima, com ações na Bolsa de Valores! E, é claro, eu teria perdido o controle não somente da situação, mas da empresa toda!
Por sobre a mesa, Pierre segurou a mão esquerda de Beatriz e disse:
— Esse problema está muito perto do fim, minha querida. Com a minha chegada, muita coisa vai se resolver.
Deu um sorriso para Beatriz e falou:
— Os abutres serão obrigados a voar em outros campos. Você vai usar seus direitos e vai dissolver esse Conselho Diretivo. Doa a quem doer.
— Mas não é assim, tão fácil! — protestou Beatriz — Esses homens estão na empresa há muitos anos! São acionistas da holding! Para mandá-los embora, há procedimentos jurídicos complicados...!
— Sem dúvida — concordou Pierre — Mas há procedimentos econômicos muitíssimo mais fáceis. Como, por exemplo, fazê-los desistir das ações que possuem...
— Já tentei comprá-las — murmurou a moça — Mas só consegui ouvir desaforos e negativas. Todos eles disseram que eu estava querendo passar-lhes a perna e que pretendia vê-los pelas costas!
Pierre refletiu por alguns momentos e, depois de repetir a maionese, falou:
— Pelo que sei, pelas informações que já me deu, sua empresa é forte e não corre o menor risco de quebrar. Além disso, seus clientes são estáveis, não vão abandoná-la por qualquer motivo. Estou certo?
— Está — admitiu Beatriz.
— Pois bem — continuou Pierre — Você vai dizer que está reestruturando a empresa. Vai dar férias coletivas por trinta dias, quinze dos quais serão ocupados por uma auditoria geral que será comandada por mim. Mostrará que anda desconfiada de falcatruas e de desfalques.
Beatriz tentou protestar, mas com um gesto, Pierre a fez calar e prosseguiu:
— Você dirá que as investigações somente atingirão aqueles que permanecerem no Conselho Diretivo e que forem acionistas. Dará oportunidade, a quem quiser vender as próprias ações para a empresa, de se retirar limpo como um bumbum de anjo...
Sorriu e arrematou:
— Enquanto isso, nós dois estaremos cuidando com mais carinho dessa sua fazenda. Não sei por quê, mas ela me deixa extremamente curioso...!


QUATRO




Apesar de já um bocado acostumado àquela situação e àquele ambiente, Pedreira não conseguia deixar de se impressionar cada vez que Paulinho de Salvador o levava para os fundos de sua tenda, para o salão destinado aos trabalhos especiais com Exu.
Era uma sala de teto baixo, revestido por esteiras de taboa, com cerca de cento e cinqüenta metros quadrados de área. No lado oposto à entrada — protegida por uma porta metálica que só podia ser aberta pelo próprio pai-de-santo — havia uma série de sete jaulas com barras de ferro como portas, parecendo mesmo um local apropriado para se guardar feras. Segundo o que dissera Paulinho de Salvador, ali ele mantinha presos, cada um em sua jaula, os sete Exus Coroados, cada um deles relacionado com um Orixá, dito Orixá Ancestral.
Paulinho de Salvador já explicara tudo isso para Pedreira e dissera que o Exu Coroado, que mais se ligava aos problemas que estava enfrentando, era justamente o mais exigente deles, o Exu Coroado Pinga-Fogo que, por sua vez, iria se utilizar das energias do Exu-Menor d’Aruanda.
— É um Exu muito forte — falou o pai-de-santo — Capaz de feitos incríveis e rápidos! Por isso é que nós vamos fazer uma oferenda a ele.
Paulinho de Salvador levou Pedreira até o centro da sala, para um local onde havia, desenhados no chão de cimento, sete pontos riscados.
Obrigou Pedreira a ficar de pé, diante do quinto desenho e explicou:
— Este é o triângulo vibracional do Exu Pinga-Fogo. É aqui que você vai ficar e vai prestar bastante atenção às minhas ordens.
Pedreira fez um sinal afirmativo com a cabeça, e olhou para baixo, para o desenho ritualístico que estava diante de seus pés.
Era um triângulo cujo vértice apontava para a frente com uma flecha retorcida. Em seu interior, uma outra flecha em forma de raio saía pela base da figura e era cortada por uma linha reta que mostrava, em suas duas extremidades, a parte traseira de duas outras flechas.
Paulinho de Salvador, deixando Pedreira plantado ali, imóvel, dirigiu-se para a quinta jaula e abriu-a, saltando imediatamente de lado, como se estivesse deixando passar por ele um animal perigoso.
Pedreira não pode deixar de sentir medo...
Se havia algo que o apavorava, era justamente seres ou coisas que não conseguia enxergar...
— Dispa-se! — ordenou o pai-de-santo — Dispa-se completamente!
Pedreira obedeceu e Paulinho de Salvador apanhou as roupas do outro, entregando-as para uma cambona que aparecera ali sem que Pedreira pudesse ver de onde ela viera, uma vez que a porta metálica, o único acesso visível àquela sala, tinha sido trancada pelo pai-de-santo, assim que eles entraram.
Nu como um verme, de pé diante de um desenho esquisito, Pedreira começava a se sentir ridículo quando o pai-de-santo falou:
— Feche os olhos e pense no objetivo que quer alcançar! Pense com muita energia, com muita força e fé!
Pedreira obedeceu e, enquanto se imaginava ao lado de Beatriz, sentado à cabeceira da mesa de reuniões da holding, Paulinho de Salvador começou a juntar sobre o desenho à frente do outro, alguns pedaços de folhas de comigo-ninguém-pode e de aroeira-brava. Em seguida, colocou ao lado esquerdo de Pedreira, uma panelinha de barro com álcool em seu interior e nela mergulhou um pedaço de pão. À esquerda, numa outra panelinha, esta com uma mistura de óleo de comida e álcool, pôs uma fatia de bolo de fubá.
Ajoelhou-se diante da jaula aberta, ergueu os braços para o alto e gritou:
— Iyeeê! Alufa durodê Exu d’Aruanda!
Ficou assim por quase um minuto e erguendo-se, voltou-se para Pedreira, curvou-se quase até o chão e falou:
— Bãlé Elebo ki Orixá! Irubó eran iná idanrawo idawo tóto Eléda!
Ao lado de Pedreira, a cambona que tinha levado embora suas roupas, explicou:
— Pai Paulinho foi até a casa de Exu d’Aruanda e disse que o estava esperando. Depois, ele se fez passar por você e disse que vai oferecer um sacrifício de carne e fogo como prova de que reconhece a divindade e o poder de Exu d’Aruanda.
Retomando a posição ereta, o pai-de-santo fez um gesto rápido com a mão direita e a cambona colocou uma cuia metálica, parecida com um capacete antigo, diante de Pedreira, exatamente sobre o vértice do desenho. Dentro da cuia, a mulher esvaziou um cartucho de pólvora preta fazendo, com o conteúdo de dois outros cartuchos, um rastilho de pólvora que ligava a cuia metálica às duas panelinhas que se encontravam ao lado de Pedreira.
— Kikó! — exclamou Paulinho de Salvador, autoritário.
A cambona fez um sinal afirmativo com a cabeça, saiu da sala através de uma passagem que ficava por trás das jaulas e voltou trazendo nas mãos um galo índio, inteiramente preto, e uma faca.
— Pá kikó! — ordenou o pai-de-santo.
A cambona, com grande habilidade, segurou o galo entre as pernas, pegou-lhe o pescoço e, com um golpe certeiro, decepou-lhe a cabeça.
Em seguida, soltou o animal que, batendo as asas, sem mais qualquer controle neuro-motor, esparramou seu sangue pelo chão até se aquietar, morto, perto da jaula aberta.
— Iná! — rosnou Paulinho de Salvador.
A cambona se afastou de Pedreira, deu dois passos para longe do rastilho de pólvora, fez uma reverência e, riscando um fósforo, atirou-o no interior da cuia.
Não houve, propriamente, uma explosão.
Houve, isso sim, uma combustão rápida e violenta da pólvora que estava na cuia, o fogo seguindo pelos dois rastilhos, até incendiar as o conteúdo das duas panelinhas de barro.
Pedreira, que estivera o tempo todo com os olhos fechados, apertou-os ainda mais ao sentir o calor do fogo e, involuntariamente, estremeceu.
Enquanto, no interior das panelinhas, o pão e o bolo queimavam, Paulinho de Salvador e a cambona, dançaram freneticamente, ao som de uma cantiga que ambos entoavam, em língua nagô.
Quando o fogo se extinguiu, Paulinho de Salvador se aproximou de Pedreira e disse-lhe:
— Pronto... Pode abrir os olhos.
Ainda assustado, Pedreira obedeceu e o pai-de-santo disse:
— Agora, faça uma oração a Yorimá, agradecendo pela presença de Exu d’Aruanda. Depois, acompanhe a mucamba pois ela vai lhe dar um banho e lhe devolver suas roupas.
Pedreira obedeceu.
Murmurou, desajeitadamente, um agradecimento ao Orixá que o pai-de-santo dissera e, depois de fazer uma profunda reverência, curvando-se na direção da casa de Exu Pinga-Fogo, acompanhou a mucamba para a parte de trás da série de jaulas, onde um banho de ervas o estava esperando.

*******

Sorridente, a mucamba fez Pedreira entrar numa espécie de sala de banhos e mostrou-lhe um banco redondo, de madeira, dizendo:
— Fique aí e espere que vou buscar a infusão do banho... A água precisa estar na temperatura certa.
Minutos depois, ela retornou, trazendo um grande balde de água e duas toalhas: uma dependurada no braço e a outra...
A outra estava enrolada em seu corpo nu...
Pedreira sorriu.
Pelo que estava vendo, iria gostar muito daquele banho.
Sem qualquer inibição, ele estendeu a mão e soltou a toalha que envolvia o corpo escultural da mulata.
Ela sorriu, apanhou uma cuia de cabaça que estava pendurada em um prego na parede e começou a lavar o corpo de Pedreira.
Depois, com seu próprio corpo, esfregou o do homem, em movimentos sensuais, voluptuosos, de fêmea no cio.
— Venha... — disse ela, tomando-o pela mão — Vamos para o peji de Exu-Gererê... Lá, estaremos abençoados...
Esse peji, Pedreira já sabia o que era: a alcova de Nanã-Burukun, o apelido daquela fogosa mucamba de Paulinho de Salvador.
E, sob os símbolos cabalísticos e os pontos riscados de todas as pombas-giras, Nanã-Burukun e Pedreira, se entregaram de corpo e alma à oferenda que faziam a Exu-Gererê...

*******

Era já alta madrugada quando Pedreira entrou em seu automóvel e ligou o motor, iniciando a volta para casa.
Verificou os bolsos do paletó, suas canetas, calculadora e documentos, estavam ali.
No bolso traseiro da calça, a carteira também estava.
Só que Pedreira achou que ela estava fina demais...
Apanhou-a.
Sorriu, entre divertido e aborrecido.
Era mais do que evidente que ali não havia mais nenhum tostão...


CINCO




O clima, na sala de reuniões do Conselho Diretivo, estava tenso e tão pesado que se tinha a impressão de poder cortá-lo com uma faca.
Os velhos abutres, como Beatriz dizia, receberam Pierre com extrema frieza e, quando a moça anunciou que ele, a partir daquele instante, passaria a ocupar o cargo de vice-presidente, faltou muito pouco para que uma explosão ocorresse ali dentro.
José Pedreira, indignado, pediu a palavra e disse que Beatriz estava sendo despótica, que o fato de ser a detentora da imensa maioria das ações da holding, eticamente não a autorizava a impor um estranho como vice-presidente, ou seja, não permitia dentro dos moldes da elegância e cavalheirismo, que ela desse o segundo cargo da empresa para alguém que nada tinha a ver com o Conselho Diretivo.
Depois de falar durante quase quinze minutos, Pedreira terminou sua peroração, dizendo:
— Considero essa atitude da presidência uma verdadeira afronta. É uma afirmação de desconfiança, é mostrar que nenhum de nós, do Conselho, somos dignos de partilhar as decisões que norteiam os rumos da Medeiros de Albuquerque. Minha sugestão é que todos nós peçamos demissão e ponhamos nossas ações à venda.
Maldoso, sorriu para Beatriz e falou:
— No instante em que o meio financeiro souber que todos nós pusemos à disposição do mercado nossas quotas da holding, haverá um choque e os negócios da empresa se tornarão muito mais difíceis.
Olhando para Pierre, ele arrematou:
— Não quero acreditar que as idéias que a presidência expôs, tenham sido fruto da própria Beatriz. Imagino que tenham, isso sim, partido da mente do pretenso vice-presidente que, por ser estrangeiro e nem sequer conhecer a nossa língua, tampouco conhece o país e as nuances econômico-político-financeiras que regem, a bem dizer a verdade, todo e qualquer empreendimento de vulto que se possa imaginar dentro de nossas fronteiras. Peço à presidência, que traduza minhas palavras para o senhor Bertrand...
Pierre sorriu, levantou-se empunhando um maço de papéis e disse, em bom e castiço português:
— Não é necessário traduzir. Antes de aceitar este cargo, tomei o cuidado de estudar a língua que se fala aqui e, evidentemente, pesquisei com muito critério e atenção todas as nuances a que se referiu o senhor Pedreira. Por outro lado, li e reli os estatutos da sociedade e cheguei à conclusão que os senhores, em primeiro lugar, não podem vender suas ações no mercado. Há um item contratual que obriga a oferecer a cessão das ações, antes de mais nada, para a própria empresa, na figura de seu presidente.
Fitou um por um dos conselheiros e continuou:
— Dessa maneira, a partir dos dados fornecidos pelo último balancete executado e aprovado pelo próprio Conselho Diretivo, pude estabelecer um valor ideal para cada quota da Medeiros de Albuquerque. Como já imaginava a reação dos senhores, tomei a liberdade de tentar ganhar tempo e preparei as cartas de cessão de suas quotas, computando um valor igual a duas vezes o valor ideal encontrado. Juntamente com a cessão, está também a carta de demissão que, espero, cavalheiros tão finos e elegantes, não hesitarão em assinar.
Faltou muito pouco para o prédio todo vir abaixo.
Aqueles cavalheiros, tão finos e elegantes, perderam completamente as estribeiras, gritaram, xingaram, deblateraram e, quando as coisas começaram a cheirar violência física, Beatriz apertou o botão da campainha, chamando os homens da segurança que, já postos de sobreaviso por ela mesma, estavam à porta, somente esperando o momento de entrar.
O Conselho Diretivo foi dissolvido e de uma maneira muito mais simples e rápida do que imaginava o próprio Pierre.
A reunião começara pontualmente às dez horas da manhã e às onze e meia, todas as cartas de demissão estavam assinadas, as cessões de quotas estavam regularizadas e Beatriz estava olhando para Pierre, ainda abismada.
— Mas é incrível! — exclamou ela — Se eu soubesse que iria ser tão simples...!
Pierre meneou a cabeça em sinal de dúvida e retrucou:
— Você se engana, achando que isso acabou assim...
— Mas eles já assinaram, já receberam... Até já foram embora! O que é que ainda pode complicar?
Muito sério, Pierre respondeu:
— Você deve ter notado que o único que não possuía qualquer quota da holding, era...
— Pedreira — falou a moça — E ele sempre dizia que ainda tinha muitas ações da empresa! Descobrimos que era tudo mentira quando o contador veio nos trazer os resultados das pesquisas que você ordenou ainda ontem à noite!
Pierre fez um sinal afirmativo com a cabeça e disse:
— Pois é... Ele se sentiu tremendamente humilhado quando esse seu segredo veio a público, agora há pouco. E isso, essa humilhação, terá um preço, minha querida! Pode acreditar que será bem caro!
Com expressão preocupada, murmurou:
— Pedreira disse que haveria de se vingar, que cedo ou tarde toda a holding seria dele e só dele... E falou que não mediria esforços e nem meios para conseguir alcançar esse objetivo!
Acompanhando Beatriz até a sala da assessoria de imprensa, onde Laura já estava trabalhando, prosseguiu:
— Lembre-se que esse homem está trabalhando contra nós, fazendo uso da Magia Negra. Isso já é péssimo e, a partir de agora, vai ficar pior ainda!

*******

Dirigindo como um demente, Pedreira atravessou a cidade e rumou para a tenda de Paulinho de Salvador.
Estava furioso, transtornado, com desejos assassinos a lhe atravessar a mente.
— Aquele trapaceiro! — bufou — Canalha! Passou todo esse tempo roubando o meu dinheiro! O pouco dinheiro que me restava!
Parando com estrépito diante da tenda, pensou:
— Mas isso não vai ficar assim! Esse bandido vai me pagar! Vai devolver até o último tostão que me roubou!
Não bateu à porta.
Simplesmente empurrou-a com tal violência que arrebentou as duas taramelas que a trancavam, e entrou tenda adentro, gritando:
— Seu pai-de-santo safado! Apareça, se é homem! Mostre a cara, maldito!
De uma porta, apareceu o rosto espantado de Nanã-Burukun que, numa tentativa de acalmar Pedreira, falou:
— Mas o que é isso, benzinho? Por que está tão nervoso?
E, aproximando-se, o andar coleante, acrescentou:
— Venha cá que eu sei de um bom remédio para acalmar seus nervos...
Mas Pedreira não estava ali para brincar e muito menos para se divertir com o corpo quente e carinhoso de Nanã-Burukun. Ele queria era Paulinho de Salvador, o pai-de-santo que o enganara e roubara durante todos aqueles anos.
— Onde está o Paulo? — perguntou, ríspido, afastando a mulata com um repelão.
Nanã-Burukun olhou com raiva para o homem e respondeu:
— Pai Paulinho não está. Mas isso não tem importância, seu Pedreira... Sei quem poderá atendê-lo.
Bateu palmas e, no mesmo instante, dois homens negros, altos, musculosos, com cara de poucos amigos, apareceram.
— Então, o branco está querendo fazer desordem no congá de Pai Paulinho... — falou o maior deles, mastigando as palavras.
Pedreira estacou.
Olhou, apavorado para os dois homens, sua raiva se transformando rapidamente em medo, o rubor colérico de suas faces, tornando-se uma palidez quase marmórea.
O negro avançou para ele, apanhou-o pela gola do paletó e ergueu-o vinte centímetros do chão, dizendo:
— Aqui é um lugar de respeito, seu moço... Não se pode entrar gritando num congá, assim como você fez!
Mantendo Pedreira suspenso apenas com uma das mãos, com a outra, esbofeteou-o duas vezes e completou:
— Está com sorte, hoje... Estou de dieta por causa de um trabalho que Pai Paulinho está fazendo para mim. Por isso, não posso lidar com sangue. E menos ainda, com sangue de porco!
Empurrou-o para longe e Pedreira, recuando como se estivesse bêbado, bracejando desesperadamente em uma tentativa de manter o equilíbrio, só não caiu no chão porque o outro negro, no instante em que passava pela porta, acertou-lhe um pontapé nas nádegas, enviando-o quase sem tocar o solo, para o meio da rua.
Pedreira conseguiu não cair, correu para seu automóvel e, já sentando ao volante, ouviu Nanã-Burukun dizer:
— Não volte aqui, branco. Se um dos meninos farejar o seu cheiro...
Não precisou escutar o restante.
Sabia o teor da ameaça, sabia que ali, só poderia voltar armado e acompanhado por pelo menos uma dúzia de seguranças...

*******

— Foi espetacular! — exclamou Laura, quando Beatriz e Pierre contaram o que tinha acontecido na sala de reuniões — E eles bem que mereceram!
Fitando Beatriz, ela falou:
— Achei que você não deveria ter dado tanto dinheiro pelas ações da empresa. O que eles já conseguiram roubar daqui...! E com aquelas caras de santarrões...
Mostrou sua mesa de trabalho, atulhada de papéis e explicou:
— Estou fazendo um levantamento histórico da Medeiros de Albuquerque. A idéia era preparar um release sobre a empresa, mas...
Com expressão desanimada, disse:
— Comecei a localizar falcatruas e desfalques incríveis! Daí, chamei o contador e deixei-o vasculhando alguns documentos.
Riu, apontou para um rapaz que estava se descabelando na sala ao lado, e completou:
— Tenho a impressão que ele vai enlouquecer antes do final do expediente...
Uma servente apareceu com café e biscoitos, deixando a bandeja sobre a mesa de Laura, numa perigosa experiência de equilíbrio.
Laura serviu o café para seus dois visitantes e disse:
— Encontrei algumas coisas sobre a fazenda... Mas nada que possa me orientar para um relatório. Por enquanto, são apenas escrituras antigas, inclusive a de José Miranda Pedreira.
Baixando a voz, como se tivesse medo que as próprias paredes tivessem ouvidos, Laura contou:
— Vários funcionários da área de Investimentos e Tecnologia, que é onde Pedreira mais atuava, disseram que ele vivia dizendo que haveria de recuperar essa fazenda. E que, além da fazenda, acabaria dono de toda a empresa!
Beatriz riu e comentou:
— Acho que era isso mesmo que ele estava pretendendo quando decidiu que haveria de se casar comigo... Pobre coitado!
Despedindo-se de Laura e já carregando Pierre pela mão, Beatriz convidou:
— Vamos para a fazenda, Laura? Teremos todo um fim-de-semana e poderíamos aproveitar para por nossa conversa em dia...
Laura ia aceitando, toda feliz, mas lembrando-se que deveria ir à tenda de Pai Raimundo de Ogum naquela mesma noite, fez uma expressão consternada e respondeu:
— Oh, Beatriz... Que pena! Tenho um compromisso inadiável, esta noite. Quem sabe, uma próxima vez...?
Beatriz e Pierre fizeram alguns comentários jocosos a respeito do tal compromisso inadiável e, deixando a sala de Laura, rumaram para o estacionamento da empresa onde a jovem já tinha deixado seu carro, pronto e carregado para irem em seguida para a fazenda.
Sem conseguir esconder uma ponta de preocupação, Beatriz perguntou:
— Será que Pedreira vai, realmente, continuar a agir contra nós? Será que vai usar mais bruxarias e feitiços?
Pierre meneou a cabeça em sinal de dúvida e respondeu:
— Possivelmente. Um homem com a índole de Pedreira, não se deixa abater com facilidade. Melhor dizendo, não consegue aceitar a derrota. Acho que ele vai tentar novamente e...
Entrando no carro de Beatriz, completou:
— O pior é que eu acho que ele não vai demorar muito tempo para dar sinal de vida!



PARTE VI

AS FORÇAS DE DIREITA


UM




Laura já começava a ficar acostumada a ir à tenda de Raimundo de Ogum, principalmente às sextas-feiras, quando então, além de todo o ritual das celebrações que fazia, Pai Raimundo atendia seus fiéis, ouvia pacientemente suas lamúrias, suas queixas, suas doenças e problemas.
Resolvia a maior parte das questões, para surpresa de Laura, que não conseguia entender como o pai-de-santo conseguia atingir tão bem e tão facilmente a psique de todas aquelas pessoas, extremamente diferentes entre si e, por isso mesmo, levando para a tenda problemas das mais diversas espécies e que exigiam respostas e soluções também totalmente distintas umas das outras.
— Você deve ser um grande psicólogo... — comentou Laura — Entender e ajudar todas essas pessoas...
— Não, Laura — contestou Raimundo de Ogum, com um sorriso — Apenas sou um medium. Um medium honesto, cuja missão é ajudar as pessoas e fazer uso do dom que me foi dado pela Suprema Consciência, de poder intermediar o Plano Astral e o Plano Terreno, corporal. Não há qualquer estudo de psicologia, não há nenhum truque.
— Não estou dizendo que haja truques! — protestou a jornalista — E, diga-se de passagem que o fato de eu não conseguir entender tudo o que acontece aqui, não implica em descrença de minha parte!
Raimundo de Ogum acariciou seu cabelo e murmurou:
— Nós, mediuns, temos muitas derrotas e algumas vitórias em nosso curriculum. Você tem sido as duas coisas...
Laura ia perguntar o que é que ele queria dizer com aquela frase, mas levantando-se, Raimundo de Ogum falou para uma de suas mucambas cuidar para que Laura ficasse bem à vontade enquanto ele atendia as outras pessoas e, com um outro sorriso dirigido à moça, encaminhou-se para o anfiteatro.
Naquela sexta-feira à noite, Laura estava surpresa com ela mesma.
Afinal de contas, recusara um convite de Beatriz — que mesmo sendo sua amiga, não deixava de ser sua patroa — unicamente porque tinha dito a Raimundo de Ogum que, se pudesse, passaria pela tenda para dois dedos de prosa.
O que, em hipótese alguma firmava um compromisso inadiável.
Saindo do escritório, foi diretamente para casa, tomou um bom banho e se vestiu caprichadamente, ficando satisfeita com o resultado final, quando se olhou ao espelho, já no instante em que deixava o apartamento.
Minutos mais tarde, a caminho da tenda de Raimundo de Ogum, Laura sorriu consigo mesma, perguntando-se a troco de quê tinha se produzido daquela maneira, já que estava indo para um lugar onde quem ali comparecia, não estava nem um pouco preocupado com a aparência.
— Ora! — exclamou — O que é que tem? Afinal, não posso estar errada em me querer fazer bonita, de vez em quando! Isso, ao contrário, só pode é me fazer bem!
Parando num semáforo, voltou a retocar o baton sobre os lábios e, olhando-se no espelhinho, riu sozinha.
— É engraçado... — murmurou — Até pouco tempo atrás, eu não estaria ligando a mínima para estar maquiada ou bem-vestida!
O sinal abriu, ela engrenou a primeira e, arrancando, disse:
— Alguma coisa está acontecendo comigo... Disso, não tenho a menor dúvida e...
Acendendo um cigarro, arrematou:
— Tenho até medo de desconfiar o que possa ser...!

*******

Laura estacionou diante da porta da tenda e estranhou não ver aquela grande quantidade de veículos estacionados ali, como das outras vezes.
Olhou o relógio, imaginando que já fosse muito tarde, ela poderia ter se perdido quanto ao horário enquanto tomava banho e se vestia, mas viu que passava pouco de nove horas da noite.
— O que será que está acontecendo? Normalmente, a essa hora isto aqui está cheio de carros! — pensou.
E preocupada, desceu apressada, perguntando-se:
— Será que ele ficou doente?
Porém, seu receio era infundado, pois Raimundo de Ogum estava ali, saudável e sorridente como sempre, sentado numa poltrona, na parte privativa da tenda.
Uma mucamba, mexendo alguma coisa numa panela, na cozinha, cantarolava baixinho e uma outra, com um grande avental branco, estava arrumando um buquê de flores em um vaso.
Vendo a jornalista chegar, Raimundo se ergueu e, aproximando-se de Laura, falou:
— Muito obrigado pelo sentimento de carinho e pela preocupação com a minha saúde...
Laura sorriu.
— Já não me espanto mais com as suas adivinhações, Pai Raimundo — disse ela — Mas fico muito satisfeita ao ver que você está bem.
Aceitando a cadeira que uma mucamba trazia, justificou-se:
— Quando cheguei aqui, não vi nenhum automóvel estacionado e, é claro, fiquei preocupada.
— Suspendi o culto, hoje — explicou o pai-de-santo.
Vendo a expressão de curiosidade de Laura, ele falou:
— Hoje, o assunto é só com você, há coisas muito importantes para lhe dizer e não seria possível com todos os outros aqui.
Preocupada, Laura indagou:
— Mas o que é tão importante assim?
— Sua amiga precisa de ajuda e é preciso andar depressa, pois o risco que ela está correndo é muito grande!
Sério, ele acrescentou:
— Talvez nós precisemos fazer uma pequena viagem... Pode ser que seja necessário irmos ao encontro dela, lá em Alfredo Chaves, ainda hoje!
Antes que Laura pudesse perguntar o que é que estava acontecendo, antecipando-se à indagação, Pai Raimundo falou:
— Só estou sabendo que ela vai correr um risco muito grande lá na fazenda. Porém, meus Guias ainda não entraram em mais detalhes, nem sequer sei como chegar à Fazenda Rio Preto!
Apontou o dedo indicador para a jornalista e disse:
— Tenho a impressão que eles estão esperando a sua presença ao meu lado. Necessito de sua energia para esses contatos mais difíceis, mais delicados...
Laura sentiu o coração bater mais depressa e Raimundo de Ogum, retirando-se para um dos muitos aposentos da tenda, falou:
— Os mediuns não deixam de ser seres humanos, Laura. Como tal, todos nós temos limitações. Quando atingimos nosso limite, muitas vezes a somação da energia de uma outra pessoa que, de alguma maneira tenha afinidade com nosso Corpo Astral, ajuda a potencializar nossa capacidade de incorporar certos espíritos ou, outras vezes, auxilia a defesa contra entidades malignas que podem tentar uma incorporação excessivamente prejudicial.
Laura ia perguntar de que maneira, com que bases, Pai Raimundo poderia dizer que ela, uma moça sem qualquer preparo espiritual e com a certeza de não ter a menor tendência para a mediunidade, seria a pessoa indicada para somar energias com ele, um medium consagrado e que já tinha conseguido convencer até mesmo a ela, que sempre se considerara incrédula e céptica com relação a todas essas coisas.
Mas, não teve tempo.
O pai-de-santo já tinha se eclipsado atrás das cortinas daquele cômodo e ela ali ficou, estática, sem conseguir por em ordem seus pensamentos e, para seu desespero, tampouco seus sentimentos.

*******

— Concentre-se, Laura — pediu Raimundo de Ogum, segurando as duas mãos da jornalista — Concentre-se em Beatriz! Procure localizá-la em sua mente, tente visualizá-la. Preciso de sua energia!
Laura fechou os olhos, mentalizou o rosto de Beatriz, esforçou-se...
Mas, sem qualquer sucesso.
Tornou a abrir os olhos e, com desespero na voz, falou:
— Não consigo! O rosto de Beatriz aparece em minha mente, mas logo desaparece!
— Não se preocupe, Laura — recomendou o pai-de-santo — E não desista! Continue mentalizando Beatriz e nós vamos conseguir localizá-la.
Raimundo de Ogum sorriu e levantando-se da cadeira em que estava sentado, disse:
— Descanse um pouco. Vamos tentar de novo daqui a pouco e com a ajuda de alguns rituais mágicos.
Apanhando dentro de uma gaveta, um pedaço de cristal e duas esferas de aço, ele explicou:
— Como já lhe disse, uma vez, o simbolismo é muito importante e ajuda muito, principalmente a concentração. Por isso, vamos usar esta lasca de ametista e estas esferas. Você verá como estes objetos vão ajudá-la na mentalização que precisa fazer.
Mostrou a pedra e as esferas para Laura e continuou:
— Como você pode ver, não há nada de mais nestes objetos. São simples e puros. Mas, com a ajuda de nossa magia interior, eles podem assumir até mesmo um efeito oracular.
Sentando-se e pondo os objetos sobre a mesa que havia diante deles, convidou:
— Vamos tentar?
Laura fez um sinal afirmativo com a cabeça e, obedecendo à recomendação de Raimundo de Ogum, fixou o olhar primeiramente nas duas esferas.
Elas pareciam brilhar estranhamente à medida que ela conseguia transportar seus pensamentos para o interior das mesmas e, de repente, o rosto de Beatriz surgiu outra vez diante de Laura.
Só que desta feita, não era em sua mente, mas sim na esfera que estava à sua direita.
— Estou vendo — murmurou a jornalista — Ela está aqui, na esfera... Parece estar feliz, está sorridente... E Pierre está com ela.
Firmou um pouco mais a vista e disse:
— Acho estranha a iluminação do ambiente... Parece ser muito fraca, só enxergo o rosto de Beatriz e o vulto de Pierre, ao seu lado.
De repente, Laura arregalou os olhos e, com voz esganiçada, falou:
— Agora, na outra esfera, estou vendo o rosto de Pedreira! Ele está num lugar bem iluminado, posso ver as gotas de suor em sua testa. Ele está esquisito... Parece embriagado.
— E o que mais você está conseguindo ver? — perguntou Raimundo de Ogum, ansioso — Consegue ouvir ou pelo menos ler alguma coisa nos lábios de Pedreira?
Laura voltou a se concentrar, mas depois de alguns segundos, balançou negativamente a cabeça, dizendo:
— Não... Não consigo ver nada disso... Pedreira não está falando. Seus lábios não se mexem.

*******

Pedreira, humilhado, sentindo-se o mais miserável e enganado de todos os homens, depois de ter sido expulso da tenda de Paulinho de Salvador, rodou pela cidade durante algum tempo e, sem norte ou objetivo, acabou encostando a barriga no balcão de um bar nas vizinhanças do Jardim da Penha e começou a beber.
As três primeiras doses serviram para queimar a raiva que estava sentindo, mas em compensação, despertou o complexo de inferioridade que sempre se manifestava quando começava a beber.
Era justamente por isso que Pedreira jamais ficava em apenas três doses... Passava logo para a quarta e a quinta, quando tinha a sensação de ser um super-homem, de poder e de conseguir realizar tudo quanto desejasse.
Dizia-se, quando já na sexta dose, ser outro homem, sem qualquer complexo ou preconceito, isento de tabus e...
Absolutamente invulnerável.
Porém...
Depois do sétimo copo, embora ainda conseguisse manter o equilíbrio físico, pelo menos ficando de pé sem se estatelar no chão, Pedreira mudava completamente de personalidade e, agressivo, arrogante e brigão, não via limites diante de si e freqüentemente acabava provocando situações constrangedoras, com agressões físicas e grosserias verbais de fazer corar qualquer carregador do cais.
E, naquela sexta-feira, quando os relógios estavam marcando alguma coisa perto de nove e meia da noite, Pedreira já tinha, havia muito tempo, perdido a conta de quanto bebera.
Estava taciturno, cabisbaixo, os olhos injetados pelo excesso de álcool e pelas lágrimas amargas que derramara a cada vez que se lembrara da humilhação a que fora exposto pelos dois seguranças de Paulinho de Salvador.
Mas, mais do que tudo isso, ele estava enfurecido.
Sentia muita raiva do pai-de-santo, de Pierre e, principalmente de Beatriz.
— Mas quem ela pensa que é? — perguntava-se — Beatriz não é nenhuma rainha! Ela não é nem um pouco diferente de qualquer outra mulher!
Porém, tanto consciente quanto inconscientemente, Pedreira sabia que Beatriz não era uma mulher comum. Tanto assim que ele a desejava, que ele queria a todo custo, se unir à moça.
Mas...
Havia Pierre.
Pierre era a grande pedra em seu sapato, tinha sido ele que transformara em areia o seu sonho de poder e de riqueza. — E ela está agora, na fazenda — rosnou Pedreira, cheio de raiva — Na fazenda que foi minha e que eu me vi obrigado a vender para aquele outro canalha... Para o pai de Beatriz!
Entornou goela abaixo, mais uma dose de uísque puro e sem gelo, murmurando:
— Imagino o que ela e aquele francesinho estão fazendo por lá!
Riu consigo mesmo e disse:
— A mulher que teria sido minha, na fazenda que foi minha... Aquele maldito francês destruiu todos os meus sonhos!
Pediu mais um uísque e o barman, olhando-o de lado, pensou seriamente em não servi-lo.
Contudo...
Ele estava ali para vender bebidas e não para fiscalizar homens já barbados, com os cabelos começando a branquear, e que não sabiam o seu próprio limite.
Ergueu os ombros como se pedisse desculpas para si mesmo e encheu novamente o copo de Pedreira que, depois de tomá-lo de um só trago, deixou sobre o balcão dinheiro suficiente para pagar três vezes a quantidade que havia consumido. Cambaleando, Pedreira entrou no carro e ligou o motor.
Para surpresa — e horror — do barman e de todos os que estavam por ali e viram quanto Pedreira tinha bebido, ele conseguiu fazer funcionar o carro e saiu, dirigindo de maneira impressionantemente estável para o seu estado de embriaguez.
— Essa bebedeira ainda vai terminar mal... — comentou um senhor, com o barman.
— Problema dele, moço ! — replicou o funcionário do bar — Eu é que não vou me meter com um tipo desses! Já pensou se ele se irrita e tem um revólver? Bêbado como está, só vai lembrar que atirou em mim, amanhã de manhã! E olhe lá!

*******

Pierre acendeu mais uma vela, prendendo-a na boca de uma das garrafas de vinho que ele e Beatriz já tinham tomado, e disse:
— Este lugar é mais do que romântico, querida... É simplesmente afrodisíaco!
Beijou os lábios da moça e arrematou:
— Fico excitado só de pensar que os fantasmas do passado podem estar aqui, nos observando!
Beatriz riu, tomou mais um gole de vinho na própria garrafa que Pierre tinha acabado de abrir e falou:
— Não entendo por que os operários disseram tantas coisas sobre esta casa... Aqui parece reinar a maior paz do planeta!
— Bem... — replicou Pierre — Talvez eles não tivessem uma mulher como eu tenho... Nem, tampouco, tantas garrafas de vinho!
Olhou a escuridão ao seu redor e murmurou:
— Mas eu ainda acho que há alguma coisa no ar... Estou sentindo isso!
Beatriz balançou a cabeça negativamente e disse:
— Pois eu não estou sentindo nada...
Ela ia abrindo a boca para dizer que simplesmente não acreditava nas palavras de Crispim e de todos os outros operários que tinham passado por ali, quando sentiu um arrepio lhe percorrer todo o corpo.
— Estranho... — falou — Senti um frio, de repente!
Pierre sorriu, puxou-a para perto de si e disse:
— Frio é um problema muito fácil de resolver. Basta tomar mais vinho e...
Beatriz se afastou, olhou intensamente para Pierre e murmurou:
— Não, querido... Não foi um frio normal. Foi diferente, tive a impressão que alguém estava tentando entrar em contato comigo...!
Muito sério, Pierre falou:
— Pois então, concentre-se! Concentre-se, tente abrir seu espírito, procure mentalizar uma corrente elétrica, procure se fixar em quem tenha tentado contatá-la!
Segurando as mãos de Beatriz, o rapaz explicou:
— A mentalização de uma corrente de energia elétrica é mais fácil do que a de uma corrente de energia pura, metafísica. Pense num raio, por exemplo, em centelhas ou faíscas... Qualquer coisa que lhe dê a impressão arquetípica de uma corrente transmissora!
Beatriz fechou os olhos, pousou a fronte entre as mãos e, depois de alguns momentos, disse:
— Parece ser absurdo, querido, mas quando eu me concentrei, a única imagem que se formou em minha mente, foi a face de Laura...
O rapaz meneou a cabeça afirmativamente e, depois de alguns segundos de reflexão, murmurou:
— Pode ser um simples acaso. Laura pode estar pensando em você, comentando sobre você com amigos, por exemplo. Afinal, a vida dela mudou radicalmente depois que ela foi contratada pela Medeiros de Albuquerque. Seria mais ou menos normal que ela se entusiasmasse, falasse sobre o novo emprego.
Ergueu os olhos para Beatriz e disse:
— Mas, por outro lado, pode ser que ela tenha alguma coisa muito importante para você. Não se esqueça que Laura está pesquisando dados sobre esta fazenda!
Tomou um gole de vinho e, levantando-se, perguntou:
— Onde você pôs o telefone celular?
Beatriz, um pouco sem jeito, respondeu:
— Não trouxe... Achei que seria bom, para nós dois, ficarmos um fim-de-semana sem a menor comunicação com o resto do mundo.
Pierre sorriu, abraçou Beatriz e falou:
— E você está certa, querida. Não há a menor necessidade de pressa! O que quer que Laura tenha descoberto — se é que era ela, se é que aquilo que você sentiu, era mesmo uma tentativa de contato de alguém — pode perfeitamente esperar até segunda-feira!
Beijou-a apaixonadamente e arrematou:
— O que não pode esperar é o que eu estou sentindo por você, neste instante, Beatriz...
— O que estamos sentindo um pelo outro, você quer dizer — corrigiu a jovem.
Beijaram-se outra vez e, nesse instante, eles escutaram, nitidamente, o ruído de um automóvel estacionando no pátio, bem diante do casarão.


DOIS




Aflita, com o desespero estampado em seu rosto, Laura quase gritou:
— Tente você, Raimundo! Afinal, você é que é o pai-de-santo! Eu não sou ninguém! Como é que pode exigir isso de mim?!
Raimundo passou a mão carinhosamente pelos cabelos da jornalista e respondeu:
— Esta é a sua missão, Laura. Ninguém mais pode levá-la a cabo! Só você!
Laura começou a chorar e Raimundo, erguendo-se da cadeira, aproximou-se dela e abraçou-a pelas costas, fazendo-a encostar a cabeça em seu corpo.
— Tenha calma — pediu — Não se desespere. Você vai conseguir, vamos tentar outra vez.
Laura anuiu com a cabeça e, respirando fundo, olhou mais uma vez para as duas bolas de aço e, desta feita, pareceu-lhe ver uma espécie de raio de luz que saía de ambas as esferas e entrava pelo vértice do pedaço de ametista.
Concentrou-se o mais profundamente que podia, tentando se abstrair da beleza que era aquele raio de luz e, depois de alguns segundos, pareceu-lhe escutar o ruído de chuva.
Sem tirar os olhos das esferas, ela perguntou:
— Está chovendo?
— Não — respondeu Raimundo de Ogum — Aqui não há o menor sinal de chuva, nem mesmo, nuvens no céu. Ainda há pouco, estive lá fora para invocar as Energias e as Forças Telúricas. Vi que a noite está belíssima, o céu cheio de estrelas... Não há nem vento...
— Então... — falou Laura, sentindo-se de repente invadida por uma grande paz — Lá está chovendo.
Apertou um pouco as pálpebras e depois de alguns segundos, disse:
— É uma chuva forte, embora não esteja ouvindo trovões e nem mesmo vendo o brilho de relâmpagos. Mais parece até uma dessas chuvas de verão.
— Não seria o som de uma cachoeira? — indagou Raimundo — As cachoeiras, assim como os cursos rápidos de água, normalmente são excelentes transmissores de energia telepática. Talvez a casa da fazenda esteja muito perto de uma cachoeira ou de um rio.
— Não — contestou Laura — É som de chuva. Chego até a sentir o cheiro de terra molhada.
Sem que pudesse controlar seus movimentos, como se suas mãos tivessem vontade própria, ela apanhou as duas esferas de aço nas mãos e, aproximando-as dos olhos, murmurou:
— Beatriz e Pierre estão na fazenda. Estão felizes, tomando vinho à luz de velas. Mas...
Largou as esferas sobre a mesa, apanhou o pedaço de ametista e fixando-o com o olhar, disse:
— Mas há um automóvel se aproximando da casa. Já está chegando! Está parando na frente do casarão... Pedreira está descendo...
Franziu as sobrancelhas e falou, com expressão preocupada:
— Parece que ele está completamente transtornado. Que está embriagado, não resta a menor dúvida. E sua fisionomia...
Largou a ametista como se ela queimasse seus dedos e gritou, agarrando-se ao pai-de-santo:
— Ele está armado, Raimundo! Pedreira está armado com um revólver!

*******

Saindo do bar, Pedreira continuou a dirigir à toa, rodando sem destino pelas ruas da cidade.
Estava zonzo, sentindo os efeitos do álcool e, para agravar, estava a cada instante mais e mais furioso.
Não conseguia admitir que Beatriz tivesse ido para a fazenda com Pierre — ele tinha ouvido, ao sair de sua sala na Medeiros de Albuquerque, a moça dizer para o francês que iriam para lá — e não chegara à conclusão do que o magoava mais: se era o fato de Beatriz estar com outro homem, ou se era os dois estarem na fazenda que tinha sido sua.
— Desgraçada! — exclamou para si mesmo ao entrar na BR-101, arrancando a gravata —Ela me humilhou! O pai dela me humilhou! Não! Isso não pode ficar assim! Não viverei em paz enquanto não me vingar! Esses canalhas vão aprender pela maneira mais dura que não se faz um homem de palhaço! Muito menos quando esse homem se chama José Miranda Pedreira!

*******

— Está certo, Laura... Está certo... — disse Raimundo de Ogum para a moça, tentando acalmá-la — Pedreira está armado e está entrando no casarão da fazenda...
Forçou a jornalista a encará-lo e falou:
— Mas nós estamos aqui, muito longe de Alfredo Chaves e o que é pior, sem a menor possibilidade de chegar lá a tempo!
Uma das mucambas trouxe um copo de água com açúcar para Laura e Raimundo de Ogum, enquanto ela se recompunha, murmurou:
— A única possibilidade é tentarmos uma comunicação telepática...
Olhou para Laura e, constatando que a moça estava exausta, disse:
— Você não vai conseguir... E Beatriz, que não possui nenhum preparo para essas práticas paranormais, também deve estar cansada e completamente fora de ação.
Sentando-se e apanhando as duas esferas, segurou-as com força e disse:
— Pierre Bertrand... Pierre Bertrand... Tome cuidado! Tome muito cuidado!
Ficou em silêncio, concentrando-se, durante mais de dois minutos e disse, desanimado:
— Não sei, Laura... Não posso ter certeza de ter conseguido um contato telepático com ele...
— Mas nós precisamos fazer alguma coisa! — choramingou a jornalista — Não podemos ficar assim, assistindo a um crime de braços cruzados!
Raimundo de Ogum sorriu e, puxando Laura pela mão, levou-a para o grande anfiteatro da tenda e falou:
— Não vamos ficar de braços cruzados, minha querida... Muito pelo contrário! Vamos fazer de tudo para ajudar Beatriz e Pierre!
Aproximando-se do peji de Ogum, acrescentou:
— E, por ação indireta, também estaremos protegendo esse tal de Pedreira!



TRÊS




— Parece ser um automóvel chegando aqui! — exclamou Beatriz, preocupada — Quem viria até este fim de mundo a esta hora e com esta chuva?
Pierre fez um sinal para Beatriz se calar e, tomando-a pela mão, embrenhou-se no interior da casa.
— Para onde está me levando? — perguntou a moça, assustada — Esta casa é enorme! Lá para os fundos é um verdadeiro labirinto!
— Pois é isso mesmo que eu quero — explicou Pierre — Não sabemos quem está aí e o que quer. Por isso, por uma simples questão de segurança...
Porém, a idéia de Pierre de se esconder, de encontrar um local onde pudesse estar em segurança com a sua amada, não era nem um pouco gratuita.
Momentos antes, enquanto Beatriz estava se perguntando quem poderia estar ali, pareceu-lhe escutar uma voz de homem recomendando-lhe que tomasse cuidado.
E essa voz, soara-lhe interiormente, exatamente como acontecia quando Mère Régine entrava em contato com ele através da telepatia.
O que era muito significativo...
Com a bagagem que já tinha nesses assuntos, Pierre sabia muito bem que deveria respeitar pelo menos sua intuição, se é que não tinha sido realmente um aviso telepático.
Iluminando o caminho com uma pequena lanterna de chaveiro, Pierre e Beatriz percorreram o corredor que levava à parte íntima da casa, atravessaram uma espécie de copa e, depois de muitas voltas, chegaram à antiga cozinha da casa.
Olhando ao seu redor, o francês avistou uma porta parcialmente comida pelos cupins e que parecia não se tratar de um cômodo fechado, como uma despensa, por exemplo.
Aproximou-se, iluminou o local através de um rombo na madeira, viu uma escada que descia íngreme, e mergulhava na escuridão.
— Sabe onde vai dar essa porta? — perguntou, ao ouvido de Beatriz.
— Dá numa passagem que leva ao porão da frente — respondeu a jovem, a voz assustada — A cozinha não tem porão, só esta passagem. Lá funcionava, muito antigamente um alambique para fazer cachaça.
Estremecendo, num calafrio, ela acrescentou:
— Não é um lugar bonito... Quando fui lá, senti uma opressão muito estranha no peito!
Pierre ergueu os ombros como se estivesse pedindo-lhe desculpas e disse:
— Pois é para lá que temos de ir.
Começaram a descer os degraus da escada de acesso à passagem quando escutaram passadas sobre as tábuas largas da sala e a voz de Pedreira, gritando:
— Onde vocês estão, canalhas desavergonhados?! Apareçam, que nós temos contas a ajustar!
Ouviram as passadas se aproximando, rápidas, firmes.
Viram passar pela cozinha, o forte facho de luz de um farolete e Pedreira, mais uma vez, falou:
— Malditos! Apareçam! Não adianta vocês tentarem se esconder de mim, aqui! Esta casa é minha, eu a conheço tanto quanto a palma de minha mão!

*******

Na tenda de Raimundo de Ogum, o pai-de-santo acabara de acender um defumador no peji de seu Orixá e, enchendo um copo de cachaça, ergueu-o com as duas mãos, falando:
— Ogum, meu pai, meu Orixá, meu Guia Protetor!
Baixou os olhos, murmurou algumas palavras em yorubá e, de um só trago, bebeu a cachaça, estalando a língua por três vezes.
Ficou imóvel, calado por alguns segundos e, voltando-se para Laura, os olhos com um brilho completamente diferente e a voz muito aguda, disse:
— Os Orixás não vão deixar! As almas dos negros que ali morreram não vão permitir! E o Exu que está possuindo o corpo daquele que quer matar, ficará com medo e irá embora!
Laura quis perguntar o que significavam aquelas palavras, mas a cambona que estava ao seu lado, fez-lhe um sinal pedindo que se calasse.
Raimundo de Ogum deu três voltas sobre si mesmo, curvou-se para a frente e falou:
— Debaixo das tábuas está a resposta. É uma promessa que não foi cumprida. Aquele que está com o Exu não sabe de nada, acha que foi roubado. Mas não foi! E o Exu vai ficar furioso e vai se retirar!
Chamou a cambona, sussurrou-lhe algo ao ouvido e a mulher se retirou, voltando alguns momentos depois, com uma bacia cheia de água e um punhado de ervas.
Pai Raimundo jogou as ervas dentro da água, fez uma série de gestos cabalísticos com as mãos, e disse:
— A água lava tudo, até mesmo o pecado! E a água protege! Protege do Exu que tem medo de ficar limpo!
Pegando a bacia, despejou o seu conteúdo no chão e, ajoelhando-se sobre o molhado, falou:
— O Elebara já está sendo castigado! E com muito rigor, pelos próprios Exus que aprisionou! Não era um falso Elebara, mas se deixou levar pela ambição. Por isso, deve ser castigado e, nesta vida, nunca mais há de possuir ninguém!
Deu outras três voltas sobre si mesmo, desta vez em sentido contrário ao das primeiras e, depois de sacudir a cabeça e estremecer violentamente, deixou-se cair sentado, sobre uma grande almofada que a cambona, previdente, já tinha aproximado do pai-de-santo.
Ainda trêmulo, com os olhos muito vermelhos, Pai Raimundo voltou-se para Laura e murmurou:
— Agora, precisamos fazer uma oferenda a Ogum... E. depois, podemos ir para Alfredo Chaves.
Ouvindo as palavras do pai-de-santo, a cambona se apressou em preparar o que era necessário para o ritual a Ogum.
Raimundo de Ogum aceitou o copo de água açucarada que a própria Laura fora incumbida de lhe dar e, enquanto as mucambas iam ajeitando o peji, ele explicou:
— Para uma oferenda a Ogum, o medium precisa estar devidamente paramentado. Isso quer dizer que eu vou ser obrigado a usar a capa, o capacete e a espada que as mucambas puseram aí, ao lado do peji.
Laura viu uma capa branca debruada em vermelho, um capacete dourado e uma sabre de cavalaria.
O pai-de-santo, já vestindo a capa, continuou:
— Esses paramentos são necessários porque Ogum, em uma situação como a que estamos vivendo, precisa se apresentar como um soldado, como um guerreiro que vai em busca de Justiça.
Vendo que as mucambas deixavam ao lado do peji, um ramo de losna e outro de comigo-ninguém-pode, disse:
— Ogum representa a cura dos males sociais e a força principal para o reinício da vida. Por isso a losna, que é um remédio fabuloso, e o comigo-ninguém-pode que, por ser muito venenosa, representa a morte e, por extensão, o reinício, o retorno ao seio da Consciência Suprema.
Acabou de se paramentar, orou em silêncio, de joelhos diante do peji e, ao terminar, com a espada, cortou as ervas em sete pedaços, jogou-as dentro da bacia e, misturando pólvora com álcool, ateou-lhe fogo.
Enquanto a fumaceira produzida se dissipava, Raimundo de Ogum orou novamente, sempre em silêncio e com os olhos baixos.
Depois de quase dez minutos de intensa concentração, ele se voltou para Laura e falou:
— Agora sim, podemos partir para Alfredo Chaves...
Sorriu e arrematou:
— Vamos ver o que aconteceu por lá!

*******

Paulinho de Salvador, escondido num dos muitos cômodos de sua tenda, vira a chegada de Pedreira, furioso, sedento de vingança, muito provavelmente querendo que ele lhe devolvesse todo o dinheiro que tinha cobrado pelos trabalhos que realizara e que em nada tinham resultado.
Ora...
Pedreira não era um indivíduo raquítico, muito pelo contrário... E, movido pela fúria, com certeza ficaria muito mais perigoso.
Assim, Paulinho determinara que seus dois guarda-costas, Abel e Moura, tratassem de expulsar o intruso, de pô-lo para fora correndo e bem avisado de que jamais deveria voltar.
Porém, o pai-de-santo estava cansado de saber que seria impossível manter essa proibição. Mais dia, menos dia, Pedreira arranjaria uma maneira de prejudicá-lo ou até mesmo de se vingar.
Era, pois, necessário acabar com ele e, enquanto isso, enquanto sua magia cuidava de Pedreira, Paulinho de Salvador iria descansar um pouco, aproveitar o dinheiro que tinha acumulado durante os últimos tempos, a maior parte desse dinheiro tendo saído diretamente dos bolsos de Pedreira para os do pai-de-santo.
Dessa maneira, mal Pedreira tinha sido posto para fora da tenda, Paulinho de Salvador correu para o Salão dos Exus e começou a fazer uma invocação.
Queria todas as Falanges de Esquerda trabalhando em conjunto, contra Pedreira e, assim, abriu todas as portinholas das jaulas, conjurando os Exus para virem ajudá-lo.
Eram sete os Exus chamados...
Eram sete os cartuchos de pólvora que deveria queimar.
Apressado, aflito e excitado, apanhou no depósito a pólvora de que iria precisar, a garrafa de álcool e começou o trabalho.
Despejou a pólvora numa bacia de ferro fundido, molhou-a com o álcool e, quando estava acendendo o fósforo para atear fogo à bacia, lembrou-se que precisava queimar vivo um galo preto.
Não vacilou.
Foi até o galinheiro, pegou, o primeiro galo preto que viu e voltou para o salão, decidido a terminar depressa com aquilo para poder viajar ainda naquela noite.
Amarrou as patas do galo, passou um barbante ao redor de seu corpo para lhe prender as asas e colocou o pobre animal, vivo, dentro da bacia.
Molhou-o com mais álcool e deixou a garrafa sobre a mureta de uma das gaiolas.
Riscou o fósforo e jogou-o na bacia.
Com um ruído de explosão abafada, o fogo começou...
O galo, as penas queimando, agitou-se.
A cordinha que o amarrava, soltou-se e a ave, em chamas qual uma tocha viva, saltou de dentro da bacia, correndo pelo salão, desesperadamente.
Foi tudo muitíssimo rápido...
O galo derrubou o frasco de álcool, incendiando-o.
Correndo, desnorteado, o animal encontrou uma porta aberta, no fundo do salão e, ante o olhar apavorado de Paulinho de Salvador, entrou.
Era, justamente, o depósito onde o pai-de-santo guardava os muitos cartuchos de pólvora que costumava usar em seus rituais...
A explosão foi formidável.
O pai-de-santo viu, apenas, a imensa língua de fogo que se formou juntamente com o estampido brutal da pólvora se incendiando dentro dos cartuchos de papelão, dentro de vasos de metal e de recipientes de alumínio.
As labaredas se ergueram, atingindo o madeiramento do telhado, as cortinas, as paredes divisórias de madeira da tenda.
Nanã-Burukun, que naquele exato momento, estava em seu quarto com Abel, saiu correndo para o meio da rua, sem se incomodar com o fato de estar nua como Deus a pusera no mundo.
Já Moura, que tinha ido ver o que Paulinho estava fazendo, entrara no salão no instante da explosão e foi atingido por uma viga que, com a força do deslocamento de ar, fora arrancada do teto.
Quando os bombeiros chegaram, cerca de vinte minutos depois, o máximo que puderam fazer, foi dar um cobertor para que Nanã-Burukun cobrisse a sua nudez e...
Recolher os corpos de Paulinho de Salvador, Moura e do próprio Abel que, no afã de se vestir e não sair nu à rua, acabara sendo atingido pelas chamas e morrera queimado...
QUATRO




Pierre, segurando a mão de Beatriz, sentiu-a úmida e trêmula, prova de que a moça já estava atingindo o seu limite máximo de tensão.
— Fique calma, querida — sussurrou ele ao seu ouvido — Se não fizermos barulho, ele não vai nos descobrir.
Beatriz não respondeu.
Sabia que, nervosa e apavorada como estava, se tentasse falar qualquer coisa, sua voz poderia simplesmente não sair ou, então sair alta demais, completamente fora de controle.
Limitou-se a se aproximar ainda mais de Pierre, buscando no contato com o corpo do rapaz, um pouco mais de conforto e segurança.
Com todo o cuidado, Pierre tentou avançar pelo porão.
Acendendo rapidamente a lanterna, viu que estavam num lugar bastante amplo, mas que, como todo porão de casa velha, era imundo e atravancado de objetos, de coisas que atrapalhariam muito seus movimentos, se tentassem andar por ali. Bastaria um esbarrão para desencadear uma verdadeira avalanche de cacarias, com a conseqüência de um barulho dos infernos.
— Temos de ficar quietos e esperar — falou o francês, baixinho — Vamos aguardar que Pedreira se canse e vá embora.
Em seu íntimo, Pierre estava revoltado consigo mesmo.
Ele sabia que poderia facilmente enfrentar Pedreira, pois além de ser mais jovem, era pelo menos quinze centímetros mais alto e vinte quilos mais pesado. Vinte quilos a mais de musculatura bem preparada, sem um grama sequer de gordura supérflua.
Mas...
Havia Beatriz.
Ele estava consciente de que não deveria se arriscar, pois se por um azar lhe acontecesse alguma coisa, Beatriz estaria absolutamente à mercê de Pedreira.
E Pierre não queria nem mesmo imaginar o que aquele bandido transtornado seria capaz de fazer com a sua amada.
Assim, abraçando a moça, ele murmurou:
— Ele vai desistir, querida... Fique sossegada e não faça nenhum barulho!
Contudo, Pedreira não estava dando mostras de quem iria desistir.
Caminhando de um lado para o outro pela casa, ele continuava a gritar por Beatriz e Pierre, dizendo que os descobriria, nem que fosse a última coisa a fazer na vida e que se vingaria das humilhações por que passara.
— Seu pai destruiu minha vida, Beatriz! — gritou ele — Primeiro, por ter roubado a mulher que eu amava. Depois, por ter me obrigado a lhe vender esta fazenda, que demorei tanto tempo para poder possuir!
Deu uma sonora gargalhada, mostrando quanto estava desequilibrado e berrou:
— Mas isso não vai ficar assim! Vou recuperar estas terras, custe o que custar! E você será minha, entendeu? Vou possuí-la nas barbas desse francesinho e ele vai ficar ouvindo você gemer debaixo de mim!
Pierre mordeu a língua, n um tremendo esforço para se controlar e Pedreira, exatamente em cima de onde estavam, urrou:
— Apareçam, malditos! Quero ver se têm a mesma coragem que mostraram naquela sala de reuniões!
Deu mais alguns passos e Pierre, franzindo as sobrancelhas, notou que, de repente, o som das passadas tinha se modificado.
Não eram mais passos pesados, com o tacão dos sapatos percutindo as tábuas. Muito pelo contrário, os passos pareciam ser mais rápidos e muito mais leves, como se ele tivesse se descalçado.
E, subitamente, escutaram um baque surdo sobre o assoalho e uma voz esganiçada, quase infantil, que gritava:
— Não! Não! Pelo amor de Deus, não me batam mais!
Assustados, os dois jovens ouviram risadas de muitas pessoas e sons de chicotadas misturados a gritos de dor...

*******

Durante alguns minutos, Beatriz e Pierre ficaram estáticos, sem saber o que fazer, sem entender o que poderia estar acontecendo.
Sabiam-se sozinhos no casarão, apenas Pedreira tinha chegado e mais ninguém poderia estar ali.
E, no entanto, havia todo aquele barulho que, somado ao som da chuva que caía, tornava a situação ainda mais tétrica e aterradora.
Aos poucos, como despertando de um sonho ruim, Pierre foi se conscientizando de que não poderiam ficar ali pelo resto do tempo, simplesmente aguardando o desenrolar dos acontecimentos, mesmo porque, ele tinha necessidade de saber que acontecimentos eram aqueles.
No pavimento superior — e Pierre tinha a impressão de que tudo estava ocorrendo exatamente sobre suas cabeças — não mais se escutavam as passadas de Pedreira, mas em compensação, ouvia-se claramente as chibatadas que alguém estava recebendo e muitos gritos de dor.
— Vamos subir — disse Pierre, tomando uma decisão — Precisamos descobrir o que é isso!
Beatriz, como se estivesse hipnotizada e torporosa, deixou-se guiar pelo rapaz e, com muita cautela, os dois subiram a escada, chegando novamente à cozinha.
Tudo estava às escuras e Pierre, com receio de acender a lanterna e, com isso denunciar sua presença, avançou colado à parede, tateando, tentando se lembrar da disposição das portas.
Foi quando chegaram à esquina do corredor que dava para a parte íntima da casa, que eles notaram uma luz difusa que vinha da sala-de-jantar.
— Eles estão ali — sussurrou Pierre, ao ouvido de Beatriz.
Apertando a mão da jovem, avisou:
— Vou ver o que está acontecendo, Beatriz... Fique aqui e procure não fazer nenhum ruído!
Beatriz fez um sinal afirmativo com a cabeça e Pierre, depois de lhe dar um beijo na testa, afastou-se, caminhando silenciosamente na direção da luz.
O francês sabia-se corajoso. Onde quer que fosse, andava sem temor algum, freqüentara os pontos mais perigosos de Paris, de Londres e até mesmo do Rio de Janeiro, quando aqui estivera, havia mais de cinco anos. Jamais fora um homem de sentir medo de coisas, seres ou situações que pudesse enxergar, palpar e compreender.
Mas, daí a enfrentar algo que ele não conseguia entender e muito menos explicar, o passo era muito longo.
Pierre Bertrand estava, realmente, apavorado.
Sentia as mãos suadas, as pernas bambas, trêmulas...
Foi com muito sacrifício que conseguiu chegar até a grande porta da sala e, juntando o que ainda poderia ter de coragem e desprendimento, arriscou uma espiadela.

*******

Laura ficou impressionada quando Raimundo de Ogum ordenou que entrasse numa camionete de cabine dupla, maravilhosamente bem equipada.
— Não imaginava que você, um pai-de-santo, pudesse ter um veículo como este... — murmurou.
Raimundo de Ogum riu e, olhando para a moça, falou:
— Já lhe disse que um pai-de-santo não é nada mais além de um ser humano normal, como qualquer outro. A diferença está no fato de termos consciência de nossa missão neste mundo e do dom que nos foi dado pela Consciência Suprema, para que melhor possamos traçar a nossa trajetória.
Dirigindo habilmente em direção à BR-101, continuou:
— Isso significa que nós, pais-de-santos, temos todo o direito de desejar os mesmos confortos e facilidades de que podem desfrutar os cidadãos comuns. O que inclui bons automóveis, boa moradia, mesa farta e... amor!
— Mas, se vocês não podem cobrar pelo que fazem — ponderou a jornalista — como conseguem ter recursos materiais para sustentar esse padrão de vida?
— Não cobrar pelos trabalhos espirituais, pela ajuda que prestamos às pessoas que nos procuram — respondeu Raimundo de Ogum — não quer dizer que não possamos ter outras atividades, Laura. Muito pelo contrário! Quanto melhor estivermos indo em nossa vida particular, em nossa vida física, melhor poderemos desempenhar nossas funções na dimensão astral, já que jamais precisaremos utilizar nossos dons supranaturais para a sobrevivência ou para conseguir alcançar algum objetivo!
Antecipando-se à pergunta da jovem, ele disse:
— Eu, por exemplo, sou escritor... Tenho alguns livros publicados e é isso que me permite uma vida material mais folgada, menos atribulada. Meus livros têm tido boa aceitação tanto por parte da crítica quanto do público e, assim, vou conseguindo levar uma vida razoavelmente confortável do ponto de vista material. Esse conforto me permite atender quem quer que venha me procurar, sem precisar cair na tentação de aceitar um presente ou de cobrar alguma coisa!
— Mas eu vi, lá em sua tenda, algumas pessoas dando dinheiro para suas mucambas — argumentou Laura.
— E é verdade — admitiu Raimundo de Ogum — São pessoas cuja formação é tão material e chã, que precisam pagar para acreditar que estão conseguindo alguma ajuda. Esse dinheiro...
O pai-de-santo se interrompeu enquanto ultrapassava um automóvel, deu uma risada e explicou:
— Esse dinheiro é insignificante, minha querida! Não me ajudaria em nada! Mas, mesmo sendo pouco, ele serve para comprar uma lata de leite para uma criança pobre, uma camisa para um velho... Ou para pagar uma dívida de armazém de um pai desempregado. É para isso que minhas mucambas destinam o que são... obrigadas... a receber.
Laura anuiu com a cabeça e Raimundo de Ogum continuou:
— Infelizmente, há muitos terreiros onde o chefe não pensa assim. Há cobranças, há exigências, há explorações. Normalmente, os pais-de-santo que trabalham com as Falanges de Esquerda, ou seja, com os Exus, cobram por seus serviços. E é justamente por esse motivo que nenhum deles termina bem nesta vida material. Durante algum tempo, eles até podem mostrar riqueza, progresso... Mas, é infalível! De um momento para o outro, acontece alguma coisa que os aniquila.
Muito sério, arrematou:
— O que a Consciência Suprema nos dá gratuitamente, não pode ser objeto de ganhos materiais sob pena de tudo nos ser tirado da mesma maneira que nos foi dado!
Raimundo de Ogum continuou discorrendo sobre as obrigações dos verdadeiros pais-de-santo, contou para Laura inúmeros casos em que um chefe de um terreiro, depois de ter conhecido a fama e a glória, tinha despencado vertiginosamente por causa de orgulho e ambição, e relatou outros tantos casos em que uma pessoa humilde, subira na vida de forma meteórica, unicamente para melhor poder desempenhar seu papel de pastora de almas.
Assim conversando, nem sequer notaram o tempo passar e muito menos se preocuparam com a direção a seguir, depois que tinham chegado a Alfredo Chaves.
Laura só percebeu que estavam na Fazenda Rio Preto, quando Raimundo de Ogum parou a camionete diante do casarão, exatamente ao lado do automóvel de Pedreira.

*******

Colado à parede do corredor, Pierre arregalou os olhos, não conseguindo acreditar no que estava acontecendo.
Não viu Pedreira, ele não estava mais ali, muito embora a voz esganiçada que estava escutando, tivesse em algum lugar, o mesmo timbre que a voz do ex-assessor de Beatriz.
E essa voz vinha da boca de um mulato claro, de pouco mais de vinte anos de idade, de feições delicadas, cujas roupas mostravam não se tratar de um escravo ou de um trabalhador rural.
Esse mulato tinha as mãos amarradas atrás das costas já bem lanhadas pelas chibatadas recebidas, e estava de joelhos, a cabeça abaixada, diante de um homem branco, pouco mais velho do que ele, e que segurava um chicote de couro cru, de três tentos, com uma pequena bola de couro mais duro em cada ponta.
— Vamos, negro maldito! — gritava o homem, com um forte sotaque lusitano — Diga onde escondeu esse papel! A carta que meu bisavô escreveu!
E, sem dar tempo ao pobre mulato de responder, desceu-lhe o chicote no lombo, fazendo-o gritar de dor.
Ao redor, diversos outros homens, todos muito brancos, riam e batiam palmas a cada chibatada que o coitado recebia.
Pierre sentiu Beatriz encostar-se às suas costas e, carinhosamente, puxou-a para si enquanto a moça dizia, num sussurro:
— Não agüentei ficar ali, sozinha...
Já um pouco menos tenso e amedrontado, o rapaz começou a prestar mais atenção à cena.
Olhou com cuidado para as pessoas que estavam na sala e não teve qualquer dificuldade em concluir que as roupas que aqueles homens estavam usando, eram do início do século XX, o que queria dizer que o acontecimento, se transportado para a época em que de fato ocorrera — àquela altura Pierre já não tinha mais nenhuma dúvida quanto a estar presenciando um fato passado, através de uma brecha no Tempo — teria sido por volta de 1915.
O português da chibata não mostrava ter a menor piedade daquele mulato e suando, apertando as mandíbulas com força, batia com o chicote no pobre homem, até que este, não mais suportando tamanho castigo físico, caiu no chão
— Pelo amor de Deus...! — pediu o mulato — Não me matem! Não me batam mais...! Tenho mulher e um filho pequeno! Tenham piedade de mim!
Mais uma vez, Pierre notou a semelhança daquela voz com a de Pedreira e, olhando para Beatriz, viu que a moça também percebera esse fato.
— Mas é o Pedreira! — exclamou Beatriz, num murmúrio espantado — É a mesma voz!
O português chutou o mulato com violência e disse:
— Fale onde está escondido o papel, desgraçado! Fale e você estará livre!
Mas, o mulato já não mais se encontrava em condições de falar.
O português, muito vermelho e furioso, berrou:
— Pois eu vou matá-lo, negro maldito! Vou matá-lo se não me disser o que quero!
Jogou o chicote no chão, meteu a mão no bolso da calça e sacou um revólver.
Apavorados e estranhamente paralisados como se estivessem colados ao chão, Beatriz e Pierre viram o português apontar a arma para a cabeça do mulato que estava aos seus pés, amarrado e absolutamente indefeso.
Foi nesse momento que eles escutaram passos apressados no corredor, e Beatriz reconheceu a voz de Laura, que a chamava:
— Beatriz! Beatriz! Onde está você?!

*******

Como num passe de mágica, tudo desapareceu.
Na sala, onde antes um homem estava sendo chicoteado, cercado por quase uma dezena de pessoas, não havia mais ninguém a não ser Pedreira, estirado no chão, respirando com dificuldade.
Ao seu lado, o revólver que estivera empunhando quando chegara ao casarão e...
Um chicote de três pontas.
Com a ajuda do farolete do próprio Pedreira, Pierre viu que ele tinha a camisa completamente rasgada nas costas.
Com cuidado, afastou os farrapos em que estava transformada a camisa do ex-assessor de Beatriz e, horrorizado, viu as marcas deixadas pelas chibatadas.
— Mas... — fez, abismado — Então...
— Sim — falou Raimundo de Ogum, aproximando-se — Ele recebeu as chicotadas. E, agora, vamos precisar descobrir por quê!

EPÍLOGO

O médico, com voz grave e pausada, explicou:
— O doutor José Pedreira vai precisar ficar algum tempo aqui na clínica. Ele sofreu um abalo muito grande, seu sistema nervoso não suportou. Está com manifestações clínicas de uma psicose grave e não podemos correr o risco de deixá-lo assim, sem um acompanhamento rigoroso do ponto de vista psicológico e, também, metabólico.
Olhou para Pierre, que estava sentado bem à sua frente, acrescentou:
— Como o senhor deve saber, os distúrbios psíquicos, muitas vezes são acompanhados por problemas metabólicos bastante sérios, como a diabetes, por exemplo. Quanto às conseqüências de um descuido no que diz respeito ao apoio psicológico de que o doutor Pedreira está precisando, é muito fácil imaginar. Um homem com a posição social que ele conseguiu conquistar, não tem, normalmente, estrutura para suportar um débacle... O resultado de uma depressão mais violenta é a autodestruição física, ou seja, o suicídio.
— O senhor tem carta branca, doutor — disse Beatriz, manifestando-se — O que for necessário para que o doutor Pedreira melhore, deverá ser feito.
O médico sorriu, voltou-se para Raimundo de Ogum e Laura, e falou:
— O doutor Pedreira teve muita sorte... Se ele estivesse nas mãos de um outro que não fosse Raimundo de Ogum, com certeza estaria perdido. Há muitos falsos pais-de-santo que se aproveitam de pessoas que apresentam distúrbios mentais, passageiros ou não, e as utilizam em suas sessões, dizendo que são representantes diretos de algum Exu... Graças a Deus, conheço Raimundo há muitos anos e sei que ele jamais seria capaz de fazer algo assim. A prova aí está. Foi o próprio Raimundo que o trouxe para minha clínica.
Fez uma pausa e, voltando-se para Beatriz, disse:
— Por enquanto, o que ele vai precisar é de repouso, de boa alimentação e de alguns medicamentos tranqüilizantes. Acredito que, dentro de um ou dois meses, ele poderá ter alta.
Os cinco ficaram em silêncio por alguns segundos e Laura, acendendo um cigarro apesar da expressão de reprovação do médico, perguntou:
— O senhor acha que ele ficará completamente curado?
— Não sei dizer ainda — respondeu o médico — A mente humana ainda é uma grande desconhecida para nós, os homens da ciência. Pode ser que sim, pode ser que não. Somente o tempo será capaz de dizer.
Laura fez um sinal afirmativo com a cabeça e falou:
— Desde aquela noite, tenho feito algumas pesquisas a respeito da Fazenda Rio Preto e, também, sobre a família do doutor Pedreira. Com isso, conseguimos descobrir que ele tem alguns parentes aqui em Vitória, parentes que ele nem sequer sabia e que, por sua vez, também não desconfiavam do fato. São pessoas simples, mas gente boa. Uma parenta dele, aliás, é uma advogada de sucesso e, por ser uma mulata muito bonita, além de advogada é manequim de alta costura. Também é bom lembrar que o doutor Pedreira era casado e tinha um filho. Estava separado da mulher há vários anos e não estava prestando nenhuma assistência a eles.
Fitando o médico, a jornalista indagou:
— O senhor acha que seria conveniente promover a aproximação desses parentes? Acha que isso poderia ajudar a recuperação do doutor Pedreira?
O médico meneou a cabeça em sinal de dúvida e, depois de refletir por alguns momentos, respondeu:
— Por enquanto, vamos deixar as coisas como elas estão. Se Pedreira não teve curiosidade de pesquisar ele mesmo sobre sua família, pode haver algum motivo que ainda não sabemos. Por outro lado, uma ex-esposa normalmente não é a pessoa mais indicada para ajudar numa recuperação psíquica.
Sorriu e, levantando-se, finalizou:
— Vamos deixar o doutor Pedreira se recuperar sem grandes interferências. No momento em que ele manifestar desejo de encontrar parentes ou amigos, eu os avisarei. Por enquanto, ele ficará aqui na clínica, sem direito a visitas e sem a menor relação com o mundo exterior por um prazo de pelo menos dez dias. Depois desse tempo decorrido, vamos ver como é que as coisas se desenvolverão.

*******

Naquela noite, na tenda de Raimundo de Ogum, o pai-de-santo falou, fixando o olhar de Beatriz:
— Sua responsabilidade é muito grande, Beatriz. E o prejuízo também não será pequeno.
A moça se mexeu na cadeira em que estava sentada e Raimundo de Ogum, explicou:
— Quando uma certa entidade me falou a respeito de alguma coisa estar escondida sob as tábuas, e somando essa informação ao que você e Pierre me contaram sobre os acontecimentos no casarão, Laura e eu chegamos à conclusão que ali naquela casa, em algum lugar sob o assoalho, haveria algum documento importante. Não foi difícil imaginar que esse esconderijo só poderia ser no porão, mais especificamente, no lugar onde outrora funcionara uma distilaria de cachaça. Ali, no interior de um tonel e numa espécie de fundo falso feito com tábuas, encontramos um documento muito antigo, um testamento já quase totalmente apodrecido pela umidade.
Laura tirou de dentro de sua pasta, um envelope de plástico transparente e mostrou-o para Beatriz e Pierre, dizendo:
— Este é o documento. Poderão ler a cópia que fiz no computador, para evitar que ele se destrua ainda mais.
Sorriu, entregou um outro calhamaço de papéis em formulário contínuo para Beatriz e falou:
— Esta é a história que Raimundo de Ogum obteve a partir de informações que lhe foram passadas por algumas entidades da esfera astral. Creio que aí está a explicação de tudo...
Beatriz apanhou os papéis e, ao lado de Pierre, começou a ler.

*******

A melhor e maior fazenda daquela região serrana do Espírito Santo, naqueles idos de 1865, era a Fazenda Rio Preto, cujo proprietário chamava-se Bartholomeu Villasboas de Miranda Pedreira, nome tão pomposo quanto era imensa a sua fortuna.
E Bartholomeu era, de fato, muitíssimo rico.
Tanto em terras quanto em gado e em valores reais, ou seja, em ouro armazenado em várias pilhas de lingotes ou na forma de muitas e muitas moedas, nos porões da Casa Grande, ouro em que ele praticamente não mexia já que a fazenda produzia quase tudo de que ele e a família pudessem necessitar. Assim, a família Miranda Pedreira, podia dizer com justificado orgulho, que não dependia de ninguém e que poderia acontecer o que acontecesse que jamais passariam qualquer necessidade.
Por isso, já que o velho Miranda não precisava ter quaisquer preocupações com o futuro, decidiu enviar o filho único do casal, o Mirandinha, para a Metrópole, com a missão específica de estudar e conseguir um diploma de Coimbra, enquanto cá na fazenda, o pai se ocupava unicamente em amealhar mais e mais dinheiro a cada safra.
Ora, naquela época, para a imensa maioria das pessoas, ser um rico latifundiário significava ser um senhor de escravos, quase sempre desumano e cruel.
Porém, não era isso o que acontecia na Fazenda Rio Preto.
O casal Miranda Pedreira, apesar de ricos e conscientes de sua posição de quase senhores feudais, tinham por princípio tratar bem todos aqueles que trabalhavam em suas terras e que, direta ou indiretamente, contribuíam para que sua fortuna cada vez mais se solidificasse.
Essa filosofia de vida implicava numa incrível quantidade de afilhados, agregados, dependentes e, é claro, de escravos.
Uma verdadeira multidão de escravos que eram tratados pelos donos das terras como se fizessem parte integrante da família, com direito a boas refeições, a repouso, a carinho e...
Com direito a muito respeito.
Segundo o velho e poderoso fazendeiro, os escravos que ali viviam, também eram filhos de Deus e ele, Bartholomeu Villasboas de Miranda Pedreira, só estava na posição em que se encontrava, por uma graça de Deus.
— Eu poderia ter nascido negro e escravo... — costumava dizer — Mas Deus não o quis. Deus, em Sua infinita bondade, deu-me um berço de ouro e a fortuna que possuo.
E, para espanto e até mesmo horror de muitos outros grandes proprietários da região, Miranda insistia:
— Na realidade, eu não sou dono de nada. Apenas sou um usuário destas terras que, no final das contas, pertencem a Deus. Quando eu morrer, não poderei levar para a outra vida, um só grão destas terras. Por isso, minha missão é fazer bom uso delas, proporcionando trabalho, paz e alguns confortos materiais a quem quer que derrame seu suor aqui, a quem quer que dê de si para que a fazenda produza.
Justamente por seguirem à risca a sua própria filosofia, Miranda Pedreira e sua mulher eram muito bons para seus negros e, conseqüentemente, eram amados por eles.

*******

Numa noite de Natal na fazenda, enquanto todos festejavam o nascimento de Cristo, numa casinha retirada, bem próxima a uma das barrancas do rio, uma escrava sem marido, trouxe ao mundo um menino.
Sem qualquer assistência, sem ninguém por perto para socorrê-la, ela não resistiu ao difícil parto e morreu.
Por mero acaso, horas depois, uma das aias da Casa Grande, passou ali por perto e escutou o choro tímido e fraco do bebê.
Estranhando ouvir uma criança naquela casa que, todos sabiam, havia muitos anos estava abandonada, ela resolveu ver o que estava acontecendo.
Entrou no casebre e, se não fosse uma preta forte, já de uma certa vivência em meio aos sofrimentos do mundo, certamente teria desmaiado.
A criancinha, nua, suja de terra e de sangue, já quase nem tinha forças para chorar, nos braços do cadáver de sua mãe.
Era uma cena terrível: um bebê, nos braços de uma morta, em meio a uma poça de sangue...
Compreendendo no mesmo instante o que acontecera, a preta apanhou o bebezinho, agasalhou-o com seu xale e foi para a Casa Grande.
Chamou o Miranda Pedreira para um canto e falou:
— O sinhô está vendo esta criança? Viu como os cabelinhos são claros e como a pele é menos escura?
— Sim, estou vendo — falou o velho, sem atinar com o que a preta estava querendo dizer.
— Pois é, sinhô... — completou ela — Esse menino é seu neto!
Por um instante, ela pensou que o velho ia ter alguma coisa, ia desmaiar ou, quem sabe, até mesmo morrer com uma crise de apoplexia.
Ele ficou muito vermelho, seus lábios se mexeram, os olhos se arregalaram, mas ele não conseguiu dizer coisa nenhuma.
Finalmente, readquirindo um pouco do controle sobre si mesmo, ele perguntou:
— Mas como? Como é que uma coisa dessas foi acontecer...?
— É só o senhor se lembrar — falou a preta — Não faz seis meses que o sinhozinho foi para Lisboa?
O velho fez um sinal afirmativo com a cabeça e a escrava prosseguiu:
— Pois antes de ir embora, ele esteve andando muito lá para os lados do Fundão...
— E a mãe? — quis saber o Miranda Pedreira — Quem é a mãe? Porque ela não veio me procurar antes?
— Ela morreu... E não disse nada sobre a gravidez por medo, sinhô... Não disse nada a ninguém.
A preta respirou fundo, olhou para cima como se pedisse proteção aos Céus e...
Contou a mentira de sua vida:
— Foi só na hora da morte que ela me confiou seu segredo. Falou, contou toda a história e morreu, já sem sangue, em meus braços.
Deixando grossas lágrimas escorrerem por seu rosto luzidio, a preta arrematou:
— Ela me pediu que cuidasse da criança, que não causasse aborrecimentos para o senhor e nem para o sinhozinho... Mas eu não posso... Já sou uma velha, não teria saúde e nem paciência...
Coração de manteiga, o Miranda Pedreira apanhou a criança nos braços, sorriu para o bebê e murmurou:
— Meu neto... Meu primeiro neto...
E, com um sorriso onde misturava raiva e orgulho, finalizou:
— Aquele canalha do meu filho...
Como o pretinho começasse a chorar, mais do que depressa ele o devolveu para a aia. Porém, não conseguiu refrear a mão que, carinhosamente, brincou com as bochechas do recém-nascido.
Sem perder tempo, a esperta preta aproveitou:
— Não é mesmo uma gracinha, sinhô? E olhe que tem o mesmo jeito do avô...
Disfarçadamente, ela olhou para o velho, viu que ele se derretia todo, e desferiu o golpe de misericórdia:
— É uma pena ter que entregá-lo para as freiras... Elas jamais saberão como cuidar do neto do sinhô...
Não foi preciso dizer mais nada.
Na mesma noite, já o menino estava dormindo num bercinho no quarto de hóspedes, com uma ama-de-leite rigorosamente escolhida pela aia, com a assistência e concordância de Dona Alcina de Miranda Pedreira, a avó.

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Severo e metódico com as coisas da moral e da religião, Miranda escreveu para o filho, ordenando-lhe que voltasse imediatamente para o Brasil.
Não disse, na carta, o que é que o chamava com tanta urgência à casa paterna, apenas mencionou negócios de família, conhecedor que era do próprio filho e sabedor que, se falasse demais, era muito provável que ele se alongasse no mundo e nunca mais aparecesse a não ser para receber a herança, quando ele e sua mãe morressem.
Assim, quando o trole que trazia o Mirandinha de volta à casa cruzou a porteira da fazenda, o jovem estudante de Coimbra ainda não sabia de nada e nem sequer desconfiava do que o estava esperando na Rio Preto.
— Meu filho?! — fez ele, cheio de surpresa, quando o pai lhe contou o que acontecera e o que motivara a sua chamada com tanta urgência — Vocês todos estão malucos! Isso não é possível, de jeito nenhum! Não vou...
A bofetada do pai cortou-lhe a continuação da frase em sua garganta.
— Moleque! — urrou o velho — Moleque irresponsável!
Ainda assustado com tudo aquilo e literalmente apavorado pela reação violenta do velho, Mirandinha ainda tentou protestar:
— Mas, meu pai...! Eu não...
Outro tapa, este dado com as costas da mão direita, fez o sangue escorrer pelos lábios rachados do rapaz.
— Não me interrompa! — gritou o velho — Você, além de ser irresponsável, é um monstro cruel e desalmado!
— Mas... Não pode ser! Eu não...
O terceiro tapa, a força da mão pesada do Miranda Pedreira, já avançado em anos, mas ainda forte o bastante para escornar um boi bravo, derrubou o filho no chão e o fez compreender que de nada adiantaria protestar.
Além do mais, Miranda Pedreira estava dizendo:
— É só olhar para o garoto! Tem tudo dos Miranda Pedreira!
Desanimado, vencido, Mirandinha foi até a beirada do berço e olhou para o menino que, ignorando o drama de que estava sendo o pivô, sorriu para ele.
No dia seguinte, foi reconhecido no Cartório de Registros, como sendo filho da família Miranda Pedreira e ganhou o solene nome de Joaquim José de Miranda Pedreira.
Convocado, o padre veio da paróquia mais próxima para batizá-lo e uma grande festa foi dada na Fazenda, para comemorar o acontecimento.
Quinze dias depois, Mirandinha voltava para Portugal arrasado, ofendido, jurando que nunca mais voltaria a pisar no Brasil e, muito menos, na Fazenda Rio Preto.

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Os anos se passaram e ele cumpriu a promessa: não respondeu a uma só carta vinda do Brasil, nunca mais pediu dinheiro ao pai — aceitava-o, isso sim, pois o velho Miranda Pedreira jamais deixara de enviar uma gorda quantia por ano para o filho — casou-se por lá e por lá ficou.
Aos amigos portugueses dizia sempre que, do Brasil, não guardava nenhuma saudade, nenhuma boa recordação.
Enquanto isso, Joaquim José crescia.
Logo se transformou num moço desempenado, sacudido, trabalhador e inteligente.
Desde sempre, soubera que o Mirandinha, seu pai, não mais se considerava filho da família Miranda Pedreira e assim, numa tentativa de pagar pelo amor que recebia a todo instante dos dois velhos, Joaquim José assumiu para si a posição de filho e a responsabilidade de cuidar dos avós como se estes fossem — e de fato o eram — tudo o que tinha na vida.
Aprendeu com a avó o Catecismo e com a velha aia, a enérgica Eugênia, as tradições, religiões e costumes dos povos da África, terra de seus avós maternos.
A princípio, Dona Alcina achou ruim, disse que era uma heresia, que era pecado...
— Misturar essas feitiçarias com a Palavra de Cristo! — exclamava ela, horrorizada — Isso é um absurdo!
Porém, essa mescla de religiões, a mistura de conceitos e de dogmas, era algo inevitável e Dona Alcina logo percebeu que perderia tempo tentando tirar da cabeça de Joaquim José tudo o que Eugênia lhe dizia.
Em primeiro lugar, tal empreitada era difícil, porque a religiosidade dos africanos estava no sangue de Joaquim José, era algo já atávico e indelével. Por outro lado, até mesmo ela, Alcina, percebia — muito embora a contragosto — que as crenças e tradições religiosas dos escravos, estavam muito mais próximas da compreensão daquelas mentes simples, do que os complicados e inexplicáveis Mistérios da Fé Católica.
E, de vez em quando, a própria Dona Alcina se surpreendia usando roupas brancas em certos dias de festa dos seus escravos, cumprindo criteriosamente alguns rituais que poderiam parecer meras superstições e...
Até mesmo acendendo velas para divindades que ela, como católica apostólica romana, teria obrigação de abominar.
Passou a rir de si mesma, deixou um pouco de lado a carolice das rezas na Igreja da vila — principalmente depois que soube que o padre, o sisudo e severo padre Ignácio, tinha fugido com uma mulatinha espevitada e ordinária e, por isso, o Bispo de Vila Velha tinha enviado para lá um outro sacerdote — e começou a seguir com mais atenção os ensinamentos de Eugênia.

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Enquanto isso, Joaquim José crescia...
Não apenas em tamanho mas, principalmente, em respeito e responsabilidade.
Estudioso, quando não estava zelando pelo serviço das terras, estava sentado na biblioteca do avô, procurando aprender alguma coisa, ou então sentado diante do velho, ouvindo atentamente suas histórias e procurando aprender o mais possível da vivência e experiência de Miranda Pedreira.
Não quis ir para a escola por não querer deixar os avós e, muito menos, a velha aia a quem chamava de mãe.
Convenceu-se de que não tinha pai, mas em compensação, sabia ter o amor dos avós, de Eugênia, e a admiração e respeito de todos na Fazenda.
Já adulto, depois que a Princesa Isabel assinara a Lei Áurea, libertando definitivamente todos os escravos, foi ele, Joaquim José, que conseguiu transformar todos aqueles negros em empregados dedicados.
Resultado: na Fazenda Rio Preto, ao contrário do que estava acontecendo na maioria das grandes propriedades rurais, não houve quebra da produção, não foi preciso mandar vir imigrantes italianos, ninguém queria deixar as terras do velho Miranda.
Joaquim José, com toda a naturalidade que se poderia esperar, assumiu a administração geral da Rio Preto. Era ele quem respondia por tudo na Fazenda, realizava os negócios, pagava, recebia, vendia, comprava... Era, em suma, o responsável, o que mandava, aquele que decidia e em quem Bartholomeu Miranda depositava toda e irrefutável confiança.
Honesto, Joaquim José nunca guardou para si, jamais lançou mão de um só níquel em benefício próprio.
O Miranda Pedreira, com lágrimas nos olhos, costumava dizer:
— Meu neto é muito mais que um filho! Bendito seja Deus!
A aia, ouvindo essas palavras do patrão, sentia-se orgulhosa e realizada, já até esquecida que a Mariazinha Preta, a mãe de Joaquim José, na verdade era uma pretinha muito sem-vergonha, que vivia escondida pelos matos com muitos homens diferentes, inclusive o Ephraim, um mascate alourado que volta e meia andava por lá...
Ela, a aia, e só ela, sabia que o menino Joaquim José era muito provavelmente filho desse Ephraim ou de algum outro louro...
Mas, jamais seria filho do Mirandinha, elitista demais para se deitar com uma preta escrava.
E Eugênia não tinha o menor remorso.
Primeiro por que, com essa mentira, com esse segredo que levaria para o túmulo, ela salvara a vida de uma criança.
Segundo, por que não gostava do Mirandinha, tinha-o como o típico tiranozinho despótico, acostumado a tratar as outras pessoas de cima para baixo, como se tivesse não só um rei na barriga, mas sim uma corte inteira.
Terceiro, por que não poderia haver homem melhor do que Joaquim José.
E no dia que seu filho de criação se casou com a Ester de Lima Feitosa, sobrinha do Juiz de Vila Velha, uma lourinha delicada, de bom coração, muito prendada e trabalhadeira, Eugênia parecia ainda mais feliz do que a própria noiva.
Mesmo porque, pouco mais de nove meses mais tarde, ela estava segurando nas mãos um bebê que considerava como se fosse seu neto, um bebê lourinho, de pele muito clara e cabelos bem lisos.
— Este terá muita sorte na vida! — exclamou Eugênia — Saiu louro como um anjo! E por ser um anjinho, tenho certeza que acabará trazendo muitas bênçãos e alegrias para esta família!

*******

Enquanto os sabiás cantavam nas matas às margens do rio, nas laranjeiras e jabuticabeiras do pomar da Fazenda Rio Preto, lá em Portugal também o tempo passava, com o chilrear dos melros e as cantigas das moças nos lagares.
Mirandinha enviuvara cedo.
Sua mulher, vítima de uma doença que os médicos não conseguiram descobrir, morrera dois anos após lhe ter deixado um filho homem.
Desde cedo, Pedro Mário — como fora batizado o menino — mostrou ter herdado toda a avareza da avó materna, toda a mesquinharia da velha matrona lusa. Como se não bastasse, era dono de um gênio terrível...
Briguento quando criança, adolescente tornou-se insuportável.
Com o tempo, foi ficando violento e a atração pela boêmia piorava ainda mais as coisas.
Mirandinha não conseguia mais dominá-lo e, a cada ano que passava, mais e mais se sentia enfraquecer em relação ao filho.
Um dia, por causa de uma dívida de jogo de Pedro Mário, Mirandinha se aborreceu profundamente e sentiu-se mal, muito mal...
O médico foi chamado e logo se ficou sabendo que o coração de Mirandinha não suportaria muita coisa mais.
Ciente de que não deveria alimentar esperanças de vir a conhecer os netos, mandou chamar o Pedro Mário e, coisa que nunca havia feito antes, contou-lhe sobre a Fazenda Rio Preto, dizendo, já exausto:
— Aquelas terras valem uma fortuna. Só que há um problema...
Mirandinha parou de falar, respirando mal.
Instigado pela impaciência do filho, prosseguiu, depois de alguns momentos:
— Há lá um moço, um mulato, pouco mais velho que você, que eu fui obrigado a reconhecer como filho... Tenho certeza, que é esse moço quem está tomando conta da propriedade... Certamente, ficará com tudo! Mas ele... Ele não é meu filho! Tenho certeza disso!
Não conseguiu continuar.
Uma crise sufocante de tosse o acometeu e Mirandinha, por mais de quinze minutos, tossiu o que lhe restava de vida.

*******

Nesse ínterim, enquanto Pedro Mário se despedia da mulher e dos dois filhos que arrumara e fazia os preparativos para vir ao Brasil com o intuito de assumir sua herança, na Fazenda Rio Preto também havia tragédias se desenrolando...
O velho Miranda Pedreira, já havia muito tempo senil e fraco, adoeceu gravemente.
Pressentindo a morte, chamou Joaquim José e disse-lhe:
— Vivi nestas terras, aqui me casei, aqui enterrei minha mulher... Muitos de meus fiéis escravos também repousam neste solo, aguardando o dia do Juízo Final. E eles foram os responsáveis diretos por tudo quanto nós temos, foi do suor deles que brotou todo o ouro que possuímos.
Os olhos já baços fixaram Joaquim José e Bartholomeu falou:
— Quando minha mulher morreu, eu tomei a decisão de doar estas terras aos que foram meus escravos. Escrevi uma carta oficializando essa doação. Quero que a cumpra. No prazo de dois anos depois de minha morte, estas terras terão que estar transferidas para todos os que trabalham aqui. Faça uma colônia, uma cidade, uma espécie qualquer de comunidade. Seja o chefe. Use o dinheiro que precisar, a metade de tudo o que eu tenho é seu. A outra metade é de seu pai, que está em Portugal.
Bartholomeu Villasboas de Miranda Pedreira, morreu durante a noite, como um passarinho, indo finalmente fazer companhia à sua mulher.
Após um velório cheio de lágrimas e de um enterro digno dos grandes nobres, Joaquim José começou a preparar o inventário de tudo o que havia na fazenda bem como do numerário existente em espécie, para dar cumprimento às últimas vontades do velho.
Porém, não teve tempo de realizar seu intento.
No começo da safra, Pedro Mário chegou.
E chegou tão altivo, fidalgo e orgulhoso, que Joaquim José nem sequer teve oportunidade de lhe falar a respeito da doação da fazenda aos antigos escravos e muito menos da idéia de Bartholomeu, de fundar uma cidade que pertencesse a eles e que fosse, tanto econômica quanto administrativamente, independente de tudo e de todos.
Prepotente, Pedro Mário já foi modificando a disposição dos móveis, não quis ficar no quarto de hóspedes, exigindo que lhe fosse dado o quarto de seu avô. À mesa, fez questão fechada de sentar à cabeceira e de ser servido antes de Joaquim José.
Quando este tentou dizer a Pedro Mário sobre a carta e sobre a situação da Fazenda Rio Preto, foi interrompido secamente:
— Eu sou o dono e o senhor. Eu direi quando desejar falar com você.
Menos de uma quinzena depois de sua chegada, Pedro Mário o chamou ao escritório.
— Vejo que você é praticamente o dono de tudo isto aqui — disse ele — Quero informá-lo que, a partir de amanhã as coisas estarão mudadas. Tenho todos os direitos do meu lado e estarei assumindo o controle da Fazenda e das propriedades de meu pai.
Joaquim José, já farto de tanta arrogância, balançou negativamente a cabeça e falou:
— Sinto muito. Há um engano de sua parte. Nosso avô doou esta fazenda para os antigos escravos e, dessa maneira, não temos nenhum direito sobre as terras. Há o dinheiro. E eu tenho aqui a relação de bens que lhe pertencem. Destes, você pode tomar posse imediatamente.
Apanhou no armário, uma mala de couro e entregou-a para Pedro Mário, dizendo:
— Aí tem você todas as documentações, todos os inventários e tudo quanto possa precisar para compreender e comprovar que eu estou dizendo a verdade.
Pedro ficou completamente desconcertado.
Abrindo a mala, pegou um por um dos papéis que ali estavam, leu e releu a relação de bens, leu e releu a carta de doação e todos os documentos assinados pelo avô e por Joaquim José, como seu procurador.
Não conseguia compreender...
Em sua mente mesquinha e cheia de avareza, idéias terríveis começavam a se formar...
— Aqui há dente de coelho... — rosnou — Não é possível que meu avô tenha doado a Fazenda para um bando de negros!
Olhando por cima dos papéis que segurava, viu a expressão inocente de Joaquim José.
Isso serviu apenas para aumentar suas suspeitas e, com expressão furiosa, Pedro Mário falou:
— Isso é um golpe seu! Uma ladroeira de sua parte! Você ficará com tudo, com toda a Fazenda Rio Preto! É isso que está tentando fazer! E sem contar que você deve se ter enchido os bolsos durante todos estes anos, mulato canalha!
Joaquim José arregalou os olhos.
Na realidade, ele imaginara que as coisas iriam ocorrer de maneira muito diferente.
Pedro Mário poderia até ficar aborrecido com a doação das terras, mas afinal de contas, ele não deveria ter qualquer motivo de queixas. Ficaria com uma fortuna incalculável em dinheiro, dinheiro que poderia levar de volta para Portugal e não teria o problema de administrar uma propriedade agrícola num país que não era o seu, rodeado de pessoas que não pertenciam ao seu círculo.
Poderia, enfim, levar uma vida de rei na Europa!
O que mais teria para desejar?
Gaguejando, atônito, Joaquim José murmurou:
— Mas... eu não... Não pense...
— Cale-se! — cortou Pedro Mário — Não dê um pio! Com essa sua farsa, você apenas está cavando um pouco mais a sua própria cova! Não há juiz que acredite que meu avô tenha doado essas terras! É mais do que claro que você forjou esse documento e isso, se não obrigou meu avô a assiná-lo!
Semicerrando os olhos, acrescentou:
— E não duvido nada que você o tenha assassinado só para antecipar a chegada de sua fortuna!
Joaquim José era um indivíduo educado e pacífico, porém o que tinha correndo nas veias era sangue...
Sangue muito bom, de alguém que vivera até então dentro da honestidade e do trabalho.
Não era água, mas sim sangue.
Sangue misturado, metade vindo da África...
Sangue de gente valente, de quem estava acostumado a enfrentar feras e clima árduo.
Por isso, ao ouvir Pedro Mário falar daquele jeito, ferveu.
De um salto, aproximou-se de Pedro Mário e ergueu-o pela gola do paletó, enquanto o filho mais velho de Joaquim José, um garotinho assustadiço e curioso que tinha ido ver o motivo da gritaria, sem nem mesmo saber por quê, apanhava os papéis que estavam na mala e que se espalharam pelo chão, desaparecendo porta afora.
Da escada que dava para o porão, o menino ainda escutou o pai gritar:
— Canalha é você! Canalha e mesquinho! Você diz que nenhum juiz acreditará nessa história?! Pois é isso que nós vamos ver!
Sorriu, com desdém e acrescentou:
— Para seu desespero, o Juiz de Vila Velha também é mulato... E tenho certeza que ele saberá muito bem distinguir o falso do verdadeiro!
Com um safanão, empurrou-o de volta para a escrivaninha e, dirigindo-se para a porta, abriu-a, dizendo:
— Ponha-se daqui para fora! Saia desta fazenda, pois aqui você não ficará um minuto a mais! Procure seus direitos, se é que está convencido de tê-los! De minha parte, posso apenas garantir que ainda esta semana estarei conversando com o Juiz para que tudo possa ser feito límpida e transparentemente de forma a você jamais poder reclamar coisa nenhuma!
Como Pedro Mário permanecesse no lugar, muito pálido e imóvel, agarrou-o pelo braço e puxou-o para fora do escritório.
O outro tropeçou, quase caiu, mas após algum esforço, conseguiu se manter de pé e, furioso, com os olhos injetados de sangue, avançou para Joaquim José, urrando:
— Cão bastardo! Maldito! Você vai se arrepender de ter nascido!
A velha aia, que naquele momento estava ali perto, ouviu a gritaria e veio correndo, da maneira como melhor conseguia com suas já trôpegas pernas, na tentativa de apaziguar os dois homens, na esperança de impedir uma tragédia que, em sua intuição, ela sabia que iria acontecer.
Alcançou-os no meio da escada, no momento em que Pedro Mário segurava o braço de Joaquim José, berrando:
— Você vai ver de que sou capaz, desgraçado! Você não tem direito a nada! A nada! Nem mesmo meu irmão você é! Você não passa do filho de uma cadela! Do filho de uma negra escrava com quem jamais meu pai se deitou!
Com um riso sarcástico, completou:
— Ou acha que ele se sujaria a esse ponto?
A velha tentou se meter no meio dos dois, tentou separar a briga:
— Parem com isso! Onde já se viu?! A violência só pode trazer a desgraça, não levará a nada!
Sem a menor consideração, Pedro empurrou-a.
A pobre mulher, já sem forças nas pernas, desequilibrou-se e caiu, bateu a cabeça no terceiro degrau da escada e, sem nem mesmo um gemido, ali ficou, inerte, o sangue escorrendo por seus ouvidos, tornando rubro o branco do mármore.
Joaquim José não viu mais nada.
Diante de si, havia apenas o rosto distorcido pela raiva, de Pedro Mário, do assassino que matara sua mãe de criação...
Com um rugido que o fez parecer uma fera no ataque, ele agarrou o pescoço de Pedro e o apertou.
O tiro o apanhou em pleno peito.
Joaquim José não vira a pistola na mão de Pedro Mário, apenas escutou o estampido e sentiu uma dor funda no peito, uma intensa falta de ar e um gosto horrível, asqueroso, de sangue em sua boca.
Ainda assim teve forças para apertar o gasnete de Pedro Mário e de empurrá-lo escada abaixo.
Pedro tropeçou no corpo da velha e caiu.
Bateu a cabeça no mesmo degrau em que a aia estava e, num estertor, morreu.
Joaquim José, ferido de morte, tombou sobre os dois cadáveres seu sangue se misturando com o de Pedro Mário e o da aia, sangues tão diferentes quando em vida e que, naquele momento, faziam a mesma mancha vermelha no degrau...