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quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

A CARTA AMASSADA


P R Ó L O G O
U M

O entardecer é sempre um momento mágico, um instante em que até mesmo as mentes mais materialistas e cartesianas, obrigando-se a admitir que a vida não é feita apenas de números, regras, teoremas e objetivos, deixam-se levar por um sonho qualquer, ainda que rápido e fugaz, para um universo povoado por fantasias e doces lembranças.
Mesmo que esse sonho seja apenas a recordação de um outro entardecer já perdido no tempo, escondido dentro de uma gaveta qualquer do passado.
E era exatamente um momento assim que estava vivendo o professor Jorge Feijó, o biólogo responsável por um importante estudo sobre as alterações cromossômicas provocadas pelo uso indiscriminado e irracional de desfolhantes químicos.
O entardecer, o cair do sol lá para os lados da Rodovia Castelo Branco, destacando contra o laranja do céu os edifícios do CRUSP, o prédio da Faculdade de Física e as chaminés das fábricas já em Osasco, fazia-o lembrar, com uma alegre saudade, o fim das tardes em Salto Grande, no interior de São Paulo, quando voltava de uma pescaria ou de uma caçada com os amigos, o varal que traziam sobre os ombros, vergado com o peso de dourados, mandis e pintados, isso quando não era o peso de uma capivara ou de um veado.
Eram tempos bons, aqueles, quando ainda se podia caçar, pescar, usufruir a Natureza...
Jamais passara pela cabeça de ninguém que, um dia, essa mesma Natureza estaria tão destruída e violentada que caçar e pescar — atividades atávicas do ser humano — de repente, precisassem ser catalogadas de crimes inafiançáveis, pois somente com severas punições seria possível evitar a total devastação tanto da fauna quanto da flora.
Fora por isso, por amar a Natureza e por perceber que ela estava sendo aniquilada pelo homem, que Feijó decidira estudar Biologia e, dentro dessa ciência, acabara por se especializar nas pesquisas sobre os danos que os produtos químicos utilizados na agricultura — principalmente nos desmatamentos — poderiam causar, tanto ao meio ambiente, como ao próprio ser humano.
Olhando para o céu que se tornava cada vez mais púrpura, contrastando com a cor turquesa da noite que chegava, Feijó lembrou com raiva as palavras de Tozzi, diretor de pesquisas de uma grande companhia especializada na produção de agrotóxicos.
— Você não está sendo prudente, Feijó — dissera ele — A publicação desse seu trabalho vai trazer problemas para muitos comerciantes. E isso pode ser perigoso!
— Isso soa como uma ameaça... — comentara Feijó, lívido de raiva — Acha, por acaso, que consegue me amedrontar?
Tozzi sorrira.
— Não, meu amigo... Não tenho a menor intenção de amedrontá-lo e o que eu disse não pode ser encarado como ameaça.
Fixando o olhar em Feijó, acrescentara:
— Na verdade, o que eu tenho para lhe dizer é bem o contrário...
Feijó franzira as sobrancelhas, intrigado e Tozzi prosseguira:
— A empresa em que trabalho tem todo o interesse em tomar conhecimento de suas pesquisas. Nós produzimos agrotóxicos de alto poder destrutivo, fitocidas potentes e alguns herbicidas mais brandos que são utilizados por milhões e milhões de agricultores em todo o mundo. Nossos produtos têm sido violentamente atacados por ecologistas e, de uma certa forma, sou obrigado a admitir que eles estão com a razão. Afinal de contas, o Fator Laranja não é bem exatamente um refrigerante... Por isso mesmo, o seu trabalho nos interessa tanto e tão de perto. Não estamos querendo sabotar ou impedi-lo de trabalhar e muito menos de publicar os resultados de seus estudos. Na realidade, queremos pesquisar junto, queremos trabalhar numa espécie de intercâmbio de informações de tal maneira que possamos ter acesso às suas descobertas. Evidentemente, antes de nossos concorrentes.
Com um sorriso, acrescentara:
— Principalmente, antes dos ecologistas xiítas... Assim, poderemos nos defender melhor de seus ataques, provar que não temos interesse em destruir a Natureza, mas sim em ajudar o Homem a dominá-la. E, se for necessário, poderemos corrigir nossos produtos, antes que eles sejam proibidos por instituições governamentais como causadores de destruição ambiental.
Feijó não pudera deixar de se espantar.
Para ele, a intenção básica de Tozzi era fazê-lo parar as pesquisas.
— Tenho uma proposta a lhe fazer — dissera Tozzi — Uma oferta, na verdade...
Pousando a mão sobre o ombro de Feijó, completara:
— Vamos patrocinar suas pesquisas... Mas há a condição de você nos proporcionar acesso aos resultados em primeira mão. E, também...
Fazendo desaparecer o sorriso que estava em seu rosto, arrematara:
— Já lhe disse que isso tudo vai incomodar muita gente. Gente importante, cheia de dinheiro e de poder. Assim, é algo perigoso. Queremos ter a certeza de que você não vai desistir no meio do caminho.
Mordido em seus brios, Feijó protestara:
— Não sou um covarde, Tozzi... Pensei que me conhecesse melhor! Imaginei que todos os anos que passamos juntos, aqui na Faculdade e mesmo depois, quando fomos fazer nossa especialização nos Estados Unidos, tivessem sido suficientes para que você pudesse ao menos prever, ainda que apenas parcialmente, as minhas reações!
Com um balançar de cabeça e um tom escarninho na voz, ele juntara:
— Não será um punhado de interesseiros que me farão desistir de uma pesquisa!
— Não se trata de um punhado de pessoas — advertira Tozzi — Como já falei, trata-se de homens muito ricos e poderosos. São homens que já vêm utilizando há bastante tempo esses produtos que você está pesquisando e, com a ajuda deles, estão devastando florestas inteiras. Essa sua pesquisa poderá fazer com que a OMS determine a suspensão da produção desse produto. Isso acarretará um prejuízo imenso para a nossa companhia, mas além de nós, também esses homens serão muitíssimo prejudicados...
Procurando sorrir, Tozzi dissera:
— Por nós, seremos capazes de absorver o prejuízo e poderemos modificar a fórmula de acordo com o resultado de suas pesquisas. Mas esses homens... Eles não engolirão com tanta facilidade assim uma proibição de desmatamento químico, muito mais rápido e infinitamente menos dispendioso do que os métodos tradicionais... E você sabe muito bem do que essa gente pode ser capaz!
Feijó, cheio de raiva, respondera:
— Pois não tenho medo... Vou continuar meu trabalho. Se for com a ajuda de sua empresa, melhor. Se isso não se concretizar, será com os parcos recursos da Universidade e então, demorarei um pouco mais para chegar a algum resultado.
Semicerrando os olhos, acrescentara:
— Pode ser que leve tempo. Mas, um dia, conseguirei provar minhas teorias. Disso pode ter certeza!
Levantando-se, Tozzi dissera:
— Amanhã eu voltarei. Faço questão que pense bem antes de aceitar minha proposta. Estará correndo riscos muito sérios e talvez o seu idealismo não seja tão grande a ponto de se dispor, por exemplo, a sacrificar suas funções de professor. É preciso que você lembre que esses homens, ao contrário de minha empresa, estão interessados na não publicação da pesquisa. E eles têm influência bastante para bloquear sua carreira e isso, se não conseguirem demiti-lo. Você sabe como é a podridão das pessoas neste país. E pode apostar que essa podridão está em todos os lugares, nem mesmo a Reitoria escapa de uma grande contaminação!

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— Tozzi está exagerando — disse Feijó, com raiva — Não é possível que na própria Reitoria da Universidade exista quem se deixe influenciar por dinheiro e por política! Não posso acreditar que um homem como eu, que se dedica unicamente à Ciência, possa se ver prejudicado por pessoas inescrupulosas que estejam visando somente lucros, somente maiores ganhos, em detrimento da Humanidade, em prejuízo da Natureza!
Olhando para Sidney, seu assistente, o professor murmurou:
— De qualquer maneira, eu não poderia dar uma resposta a Tozzi antes de lhe contar o acontecido. Afinal, você é o meu assistente e sua participação em todo o projeto é da maior importância.
Com ansiedade na voz, indagou:
— Está disposto a continuar, mesmo sabendo os riscos a que estaremos sujeitos?
Sidney, muito sério, respondeu:
— Ouça, Feijó... Sem você, eu não seria ninguém. Todos sabem que dependo intrinsecamente de suas mãos e, principalmente de sua cabeça, de suas idéias. Estou consciente disso, meu amigo!
Erguendo os ombros, acrescentou:
— Pode acreditar que não o invejo, que não tenho o menor ciúme. O expoente é você e eu estou apenas presente nos créditos de seus trabalhos, o que já é uma grande coisa e... por mera benevolência sua.
Olhando intensamente para Feijó, disse:
— Se eu não aceitar esse desafio, automaticamente estarei fora. E fora, voltarei a ser um mísero professor secundário de Biologia, alguém sem qualquer expressão e, o que é pior do que qualquer outra coisa, sem a menor esperança de progresso científico e intelectual.
Voltando a sorrir, concluiu:
— Pode contar comigo, professor. Serei seu assistente até o final, aconteça o que acontecer, mesmo que seja apenas para limpar seus cachimbos!
Feijó riu, porém sem conseguir esconder uma certa tristeza em sua fisionomia.
— Há muito que não fumo mais cachimbos, Sidney — murmurou o professor.
Ficou em silêncio por alguns segundos, olhando parado para o anoitecer e, após um suspiro, falou:
— Mas isso não vem ao caso... Fico muito feliz sabendo que você está disposto a me acompanhar.
Levantando-se, debruçou-se numa das amplas janelas do restaurante da Faculdade de Biologia e murmurou, como se monologasse:
— Muito bem... Vamos aceitar a proposta de Tozzi. Vamos começar a trabalhar o quanto antes. O que está faltando pesquisar é relativamente pouco e acredito que, dentro de no máximo seis meses, teremos terminado todos os estudos e estaremos em condições de enviar um relatório completo para a OMS. Um relatório que provavelmente vai deixar muitas indústrias de agrotóxicos em péssima posição junto à opinião pública!
Sidney veio ficar ao seu lado e Feijó falou, com expressão nostálgica:
— É lindo o anoitecer... É linda a Natureza...
Deixando o olhar perdido no horizonte, murmurou:
— O que nós, homens, estamos fazendo, não passa de um crime dos mais hediondos, Sidney. Destruir tudo isso... Poluir o céu, acabar com a água, envenenar o ar que nós mesmos respiramos, destruir as florestas...
Deixando a janela, dirigiu-se para a saída, dizendo:
— Espero que nosso trabalho sirva para impedir, ao menos um pouco, toda essa destruição...
E, com um tom de preocupação na voz, finalizou:
— Também espero, sinceramente, que me deixem chegar ao final dessa pesquisa. Não posso negar que as palavras de Tozzi, de uma maneira ou de outra, conseguiram me assustar...!

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Feijó estacionou seu automóvel, um Volkswagen velho, cor de vinho, quase caindo aos pedaços, em frente ao prédio em que morava.
Poderia, como estava habituado a fazer, entrar pela porta da garagem e, em vez de descer a rampa para o subterrâneo, deixar o carro no alpendre do prédio, protegido da ação dos depenadores que infestam toda a cidade de São Paulo.
Mas, naquela noite, resolvera deixar o seu heróico Volkswagen na rua, por uma mera questão de preguiça.
No caminho para casa, Feijó fora assaltado por uma desesperadora vontade de comer um filé ao alho e óleo no Parreirinha, um restaurante tradicional do bairro boêmio de São Paulo, ponto de encontro de todos aqueles que são surpreendidos pelo cantar do galo ainda na rua.
Assim, achou que não valia a pena esperar que a porta da garagem se abrisse. Ele demoraria menos de cinco minutos para trocar de roupas e descer novamente.
Cumprimentou o porteiro, distraído, enquanto abria a porta do elevador que o levaria ao nono andar, onde morava.
Porém, antes que apertasse o botão no painel, a porta do elevador se fechou e ele se viu descendo para o subsolo.
— Mas é muito azar... — pensou — Alguém chamou o elevador um instante antes de mim!
O elevador parou no segundo subsolo, o piso onde Feijó tinha uma vaga para guardar seu carro.
A porta se abriu e um homem entrou.
Um absoluto desconhecido, de fisionomia dura e impenetrável, usando um terno de cor neutra.
O homem apertou o botão do terceiro pavimento e, ao ver isso, Feijó franziu as sobrancelhas, intrigado.
Aquele prédio era um edifício de luxo, só havia um apartamento por andar e Feijó, como um dos moradores mais antigos, conhecia todos os seus vizinhos. Assim, ele sabia que no terceiro andar, a velha e antipática Dona Ana, não costumava receber visitas.
— Conhece a Dona Ana? — perguntou o professor, curioso.
O homem não respondeu, muito embora estivesse olhando intensamente para o professor.
Sempre fixando Feijó, ele fez um movimento rápido e, em sua mão direita surgiu uma faca cuja lâmina cortou o ar e foi se cravar com precisão cirúrgica, na garganta do biólogo, entre a fúrcula esternal e o pomo-de-Adão.
Feijó ainda quis gritar...
Porém, o máximo que conseguiu foi emitir um som gorgolejante, o sangue se misturando com o ar que lhe saía dos pulmões.
A faca lhe foi cravada mais uma vez, desta feita em seu peito, o aço passando-lhe pelas costelas e atingindo o coração.
Quando o elevador parou no terceiro piso, Feijó já era um cadáver...
O assassino deixou o elevador e, atravessando a porta de comunicação com a entrada de serviço daquele pavimento, entrou no outro elevador, que ali já se encontrava.
Voltou para a garagem e, menos de dois minutos mais tarde, estava saindo do prédio num automóvel que apanhou ali mesmo, com a maior facilidade, já que as chaves de todos os carros, por norma do edifício e para possibilitar manobras, eram sempre deixadas no contato.
Com toda a calma, seguiu pela Alameda Eduardo Prado, entrou na praça Marechal Deodoro e rumou para a Zona Oeste.



D O I S

Passava um pouco de sete horas da noite quando Tozzi entrou na sala de reuniões da Clavell & Smith Co., num dos mais imponentes edifícios da Avenida Paulista, o coração financeiro de São Paulo.
— Você demorou — disse Fagundes, diretor-presidente da empresa no Brasil — Já estávamos a ponto de cancelar a reunião.
— Foi o trânsito — justificou-se Tozzi — São Paulo está cada vez pior, em matéria de tráfego... Não consegui fazer o trajeto em menos de uma hora!
— Teve dificuldades com o nosso amigo? — perguntou Fagundes.
— De jeito nenhum. Ele foi muito cordato e acredito que tenha ficado satisfeito com a possibilidade de ter mais dinheiro em mãos para a finalização da pesquisa.
— Isso é muito bom — murmurou Fagundes — Nós estamos muito preocupados com a repercussão mundial dos trabalhos de jornalistas leigos no assunto e que podem muito bem fazer com que a opinião pública nos condene sistemática e impiedosamente, sem levar em consideração que nossos produtos não têm outra intenção que não a de facilitar a vida dos agricultores. E, é claro, facilitar a chegada do progresso sem que haja um aniquilamento da Natureza.
Tozzi balançou afirmativamente a cabeça e disse:
— O professor Feijó estará trabalhando conosco. Não teremos dificuldades com os jornalistas e ecologistas, partir do momento em que possamos publicar os resultados de suas pesquisas em revistas leigas antes mesmo que elas apareçam no meio científico. Com isso, poderemos combater os maus ecologistas, aqueles que só sabem condenar e não pensam um instante sequer que o maior objetivo da preservação do meio ambiente é justamente a preservação do ser humano sobre a Terra. Vamos poder provar que nossos produtos não causam mal algum à Natureza como um todo, agindo específica e unicamente, sobre algumas espécies de vegetais.
Fagundes sorriu, satisfeito e, olhando para a sua direita, onde estava sentado um homem enorme, gordo e suarento, indagou:
— O que acha, Rodrigues? Você, como um dos que mais vão consumir nossos produtos aqui no Brasil, o que acha desse acordo? Feijó é uma das maiores autoridades mundiais no assunto e acredito que o resultado de suas pesquisas acabará por proporcionar a oportunidade de fabricação de fitocidas ainda mais específicos.
Rodrigues tirou do bolso um lenço e, enxugando o suor do rosto, disse:
— Acho, apenas, que o produto de que necessito, precisa ser potente. A mim, não importa o dano que ele cause. O necessário é que destrua toda a vegetação na área em que for aplicado, deixando a madeira já seca e praticamente pronta para a carvoaria. Isso é o que eu quero! E foi para que conseguissem esse produto que eu interferi junto ao Ministério da Fazenda para que fosse aberta uma linha de crédito especial para vocês.
Semicerrando os olhos, ele falou:
— Não me interessa algo que me obrigue a dezenas de aplicações, de cada vez eliminando uma espécie vegetal. O que eu preciso é de um produto de ação de amplo espectro, que destrua o cerrado deixando somente a madeira. E apenas será melhor que esse produto não tenha efeito cumulativo no solo... Pode ser que seja interessante efetuar um plantio qualquer depois que tirarmos a lenha para a fabricação de carvão.
Erguendo os ombros com indiferença, juntou:
— Mas, se isso não for possível... Não haverá qualquer problema! O que nós queremos é o carvão. Qualquer plantação só será feita com a finalidade de levantar mais um pouco de dinheiro do governo...!
Fagundes grunhiu alguma coisa em assentimento e Rodrigues disse:
— Para ser sincero, não estou achando nenhuma graça nessa história de esperar a finalização das pesquisas desse professor. Até que tudo esteja pronto, estudado e devidamente autorizado para uso, muito tempo terá passado. Isso atrapalha os meus planos.
Com uma expressão raivosa, rosnou:
— E o fato de ter de contratar esse maldito Feijó, está atravessado em minha garganta! Ele foi o responsável pela proibição do uso do Fator Laranja!
Lançou um olhar cheio de ódio para Tozzi, e prosseguiu:
— Sim... Esse mesmo Feijó que vocês estão contratando. Esse cientista achou de dizer, numa entrevista, que tem meios de provar que certos fitocidas têm a característica de estabelecer mutações cromossômicas tanto em plantas quanto em animais. Em resumo, ele conseguiu fazer com que o governo proibisse o meu mais eficiente método de desmatamento de cerrado!
Fagundes, tentando usar de diplomacia, argumentou:
— Mas agora, Rodrigues, com Feijó trabalhando e pesquisando conosco, as coisas vão mudar de figura. Dentro de pouco tempo ele terá descoberto um produto capaz de satisfazer as suas necessidades de desmatamento sem que os ecologistas o possam condenar!
Tozzi olhou para Rodrigues. Não suportava aquele gordo e por várias vezes dissera para Fagundes dar um jeito de se desvencilhar dele. Porém, o argumento do diretor-presidente era sempre o mesmo:
— Precisamos de Rodrigues... É um homem poderoso e influente. E nós precisamos contar com influências políticas para a aprovação de créditos e até mesmo para a aprovação das nossas fórmulas!
Com o que Tozzi discordava. Para ele, que também era um cientista, as fórmulas desenvolvidas pelo Departamento de Pesquisas, eram irrepreensíveis e não necessitariam de padrinhos políticos, para serem aprovadas. De mais a mais, a partir do momento em que Feijó estivesse com eles, não haveria quem o pudesse contradizer. Afinal de contas a opinião de Feijó no campo dos fitocidas e agrotóxicos, era tida por todos os especialistas no assunto, como se fosse uma verdadeira lei...
Porém, Tozzi conhecia muito bem o professor Feijó.
Da mesma maneira que conhecia a si próprio...
Assim, decidido a deixar bem claro que ambos, como cientistas, não se dobrariam perante as exigências absurdas e despóticas de Rodrigues, Tozzi disse:
— Quando aconteceu a campanha contra nossos produtos que continham em suas fórmulas o Fator Laranja, eu até achei muito bom, Rodrigues. Nunca fui a favor desse tipo de produto e muito menos a favor de atividades como a sua. Desmatar, derrubar florestas naturais para produzir carvão é um imenso absurdo! E usar desfolhantes químicos para isso, é absurdo maior ainda!
Sem dar tempo a qualquer contestação, Tozzi acrescentou:
— E não me venha dizer que essas operações de desmatamento são preparativos para o reflorestamento, pois não há nada mais imbecil e ridículo do que desflorestar para depois reflorestar! O certo seria reflorestar o que já foi desmatado criminosamente... E não cometer mais crimes para depois dizer que se vai corrigi-los...!
Olhando fixamente para o gordo, finalizou:
— Acho que a partir de agora, nossa companhia não vai mais encontrar nenhuma dificuldade para a aprovação das fórmulas que fabricamos. Por isso, graças a Deus, acho que esta é a última vez que eu tenho que suportar a sua presença numa reunião em que, na minha opinião, você não tem nada o que fazer...
Rodrigues empalideceu e, em um salto, um verdadeiro prodígio para um homem de seu tamanho e peso, se pôs de pé enquanto Tozzi continuava:
— Com a produção de um fitocida que seja de fato e legalmente liberado pelas autoridades, nós poderemos prescindir de... sua ajuda... Poderemos agir sozinhos e sem a necessidade de nos prostituirmos para homens como você!
Fagundes estava lívido.
Olhou para Rodrigues que, sem dizer uma só palavra, já estava deixando a sala de reuniões.
Em seguida, olhou para Tozzi, cujo rosto era uma verdadeira máscara de raiva e determinação.
Antes que Fagundes pudesse dizer qualquer coisa, Tozzi falou:
— Aceito a minha demissão, Fagundes... Mas devo avisá-lo que levarei comigo todo o know-how da produção de fitocidas. E será muito engraçado ver como é que vão se arrumar sem mim!
Fagundes forçou um sorriso e, vendo que Rodrigues já fechava a porta, batendo-a com fúria, disse:
— Ninguém está pensando em demiti-lo, Tozzi. Apenas fiquei assustado... Todos nós sabemos que, para a nossa sobrevivência aqui no Brasil, precisamos de clientes como Rodrigues. Homens que, além de comprar o produto em grandes quantidades, agem junto ao governo para que ele seja liberado.
— Vi as experiências de Feijó, Fagundes — argumentou Tozzi — Sei quanto elas estão adiantadas e posso avalizar a sua seriedade. Por isso mesmo, sei que Feijó jamais terá qualquer dificuldade em conseguir a liberação de suas fórmulas. E nem mesmo o mais radical dos ecoxiítas seria capaz de erguer a voz contra o professor, uma vez que ele é, reconhecidamente, um cientista que luta pela preservação da Natureza. Ninguém acreditaria na possibilidade de sair da cabeça de Feijó o que quer que seja capaz de prejudicar o meio ambiente!
Fagundes balançou a cabeça em sinal de dúvida e murmurou:
— Pode ser que você esteja com a razão, Tozzi... Mas acho bom lembrar que pessoas como Rodrigues são muito perigosas. São homens que não medem as consequências de seus atos e que não vacilam em destruir tudo o que lhes apareça pela frente e que possa, de alguma maneira, atrapalhar seus planos...

— . —

Tozzi saiu do escritório da Companhia, já perto de onze horas da noite.
Ficara em sua sala fazendo alguns telefonemas e, por diversas vezes, tentou ligar para Feijó, sem conseguir falar com o professor.
Desistindo, decidira comer alguma coisa no centro da cidade.
Na tarde daquele dia, durante a conversa com Feijó, num dos poucos momentos de descontração e em que falaram de amenidades, o professor contara, quase em tom de confissão, que às vezes tinha vontade de comer um bom bife no Parreirinha e, embora Tozzi não fosse dos maiores adeptos dos restaurantes boêmios do centro da cidade, achou que poderia ter a sorte de encontrar o colega e, então...
Bem...
Ao redor de uma boa mesa, longe do ambiente de trabalho, eles poderiam conversar com mais calma sobre tudo o que estava acontecendo e, principalmente, a respeito de Rodrigues.
Tomou o elevador e apertou o botão do terceiro subsolo, onde deixava o seu automóvel.
Enquanto via os números luminosos indicativos dos andares, passando velozmente pelo visor do painel de controles, Tozzi pensou:
— Rodrigues terá de se colocar em seu devido lugar... Ele não é tão importante e poderoso quanto imagina! Não conseguirá fazer com que nós, Feijó e eu, curvemos a cabeça como cordeirinhos!
Sorrindo para si mesmo, quando o elevador parou no terceiro subsolo, murmurou:
— Nós vamos desenvolver um produto que ajude os agricultores, que diminua seus gastos com mão-de-obra e que não seja prejudicial para a saúde dos homens ou nocivo para o ecossistema em que ele estiver sendo utilizado!
Com passos rápidos e decididos, caminhou até seu automóvel, ouvindo ecoar, no estacionamento deserto, o som de seus passos.
Pela milésima vez, pensou como aquele lugar, àquela hora, era sombrio e assustador. Tinha até a sensação de estar vivendo um daqueles muitos filmes policiais norte-americanos em que os bandidos sempre escolhem um local assim para atacar.
Mas...
Tozzi sabia que ali ele poderia estar seguro e tranqüilo.
O prédio que abrigava os escritórios da Clavell & Smith contava com um excelente sistema de vigilância e de segurança interna. Os portões, sempre fechados, eram guardados por dois vigias permanentes, que controlavam criteriosa e cuidadosamente a entrada e saída tanto de automóveis quanto dos próprios usuários do edifício, todos identificados com crachás ou cartões magnéticos.
— Não há perigo algum — disse para si mesmo enquanto metia a mão no bolso do paletó para pegar as chaves do carro.
Estava a menos de dez metros de distância de seu automóvel quando olhou, num movimento automático e involuntário, para o início da rampa de acesso aos portões, onde os dois vigias costumavam ficar.
Assustou-se.
Os dois guardas ali se encontravam, de fato...
Só que...
Os dois estavam estendidos no chão, a cabeça de um sobre o abdome do outro, ambos ainda empunhando os revólveres, cada um deles com um orifício sangrento no meio da testa e estampando em suas faces, uma expressão de medo intenso, reflexo de todo o terror passado nos instantes finais...
— Meu Deus! — exclamou Tozzi — Mas o que...
Não conseguiu terminar a frase...
De trás de uma coluna, um homem surgiu, empunhando uma arma na mão direita, uma arma que Tozzi viu ser uma pistola automática com o cano aumentado por um silenciador.
O homem sorriu, apontou a arma para Tozzi e disse:
— Adeus, professor... Talvez possa continuar suas pesquisas no Inferno...
Do cano da arma brotou uma língua de fogo e Tozzi ainda escutou o som abafado do tiro...
Recebeu a bala em pleno peito, foi empurrado para trás pela violência do impacto do projétil calibre 9 mm e caiu no chão, sangrando abundantemente.
O atirador deu um passo para a frente e, tirando da manga do casaco uma faca, em um movimento rápido e extremamente preciso, cortou a garganta de Tozzi.
O bandido apanhou as chaves do carro do cientista, pegou no bolso de Tozzi o cartão magnético de identificação que permitia abrir os portões da garagem pelo lado de dentro, e deixou o edifício.
Àquela hora, o trânsito na Avenida Paulista já estava bem menos intenso e, dirigindo tranqüilamente, o assassino rumou para o lado de Vila Mariana.



P R I M E I R A P A R T E


U M

Após quinze anos, voltava a São Paulo.
Desde o primeiro momento em que pisei o solo paulistano, um misto de alegria e tristeza invadiu minha alma.
Alegria, por estar de volta à minha cidade, a terra onde nasci e me tornei gente.
Tristeza...
Por causa das recordações.
Quinze anos de ausência e, por mais esforço que fizesse, não conseguia deixar de lembrar o dia em que, apressado e abatido, resolvera partir.
Quinze anos!
Praticamente um quarto de existência!
E, no entanto, parecia-me ter sido simplesmente a véspera...
Como o tempo nos prega peças e como o nosso arquivo de memória o ajuda a nos enganar!
Eu tinha pouco mais de vinte e cinco anos de idade, não poderia jamais me queixar da vida, já publicara alguns livros e não me obrigava a grandes problemas ou sobressaltos materiais.
E, naquela manhã longínqua, quinze anos atrás, eu percebera que passaria a ter como companhia extremamente desagradável, nada mais que um remorso...
Um imenso remorso que me obrigava a olhar incontáveis vezes para o portão de vidro da sala de embarque do Aeroporto de Congonhas, na esperança desvairada de vê-la chegar, os cabelos muito louros, cor de ouro velho, ondulando ao ritmo de seus passos, os olhos verdes ainda molhados das lágrimas que eu havia provocado...
Ao sentar em meu lugar, no avião, ainda esperei que a aeromoça viesse me dizer que alguém desejava me falar com urgência, uma questão de vida ou morte.
Mas...
Isso não aconteceu.
Os motores do Boeing da Varig roncaram e o grande pássaro metálico decolou, deixando lá embaixo alguém, que certamente ainda estaria chorando...
E maldizendo o dia em que me conhecera.
Olhei para a pequena valise a meus pés.
Era tudo o que eu estava levando, tudo o que lembrara de arrepanhar, às pressas, cerca de três horas antes, após uma noite que, ambígua e paradoxalmente, eu queria lembrar para sempre e, ao mesmo tempo, queria varrer de minha memória.
— Vou viajar, Efigênia — falei para minha velha governanta — Não sei quando vou voltar... Aliás, nem sei se vou voltar... Telefonarei dando notícias dentro de alguns dias.
A boa portuguesa, sem entender o que estava acontecendo, desejou-me boa viagem e disse que ficaria a rezar aos santos para que protegessem o patrãozinho onde quer que ele estivesse.
Do hotel Tracadero, já no Rio de Janeiro, por diversas vezes cheguei a levantar o fone do gancho para pedir à telefonista que me ligasse com São Paulo, que me pusesse em contato com aquela que eu deixara a chorar...
Desisti todas as vezes.
Afinal, pedi que me trouxessem um litro de Ballantine’s e um balde de gelo.
— Água, também, doutor? — perguntou-me a moça do serviço de copa.
— Não — respondi — Vou tomar uísque puro. Acho que como remédio para o meu mal, a água só servirá para atrapalhar...
Dois dias depois, tendo consumido quase um galão de malte e uma libra de tabaco, tomei uma decisão.
Liguei para São Paulo, para um amigo advogado que sempre tomara conta de meus problemas jurídicos e financeiros, pedi-lhe que providenciasse a venda de meu apartamento e que cuidasse para que a velha e boa Efigênia fosse dispensada recebendo devidamente uma significativa indenização por todos os anos que trabalhara para mim.
— E veja bem, Jorge — insisti — Não diga para ninguém, mas para absolutamente ninguém, onde é que eu estou!
— Nem poderia dizer — retrucou ele, com uma risada — Você ainda não me falou...
Contei-lhe, então, que estava de partida para Vitória, no Espírito Santo e que minha decisão — irrevogável, por sinal — era a de estabelecer na capital capixaba a minha nova residência.
— Mas, por que Vitória? — quis saber meu advogado — Algum motivo do coração?
— Não, meu amigo — respondi — É justamente para que os motivos do coração não me empurrem para mais longe, é que escolhi Vitória...
Com um suspiro, expliquei:
— No Rio de Janeiro, sempre temos muitos conhecidos. Para o sul, não tenho a menor vontade de ir, não gosto do minuano e nem das enchentes do Itajaí... Salvador e as outras capitais lá de cima, são quentes e barulhentas demais. Você sabe que não gosto de lugares muito procurados pelos turistas, especialmente por turistas que passam as férias inteiras em ritmo de samba. Vitória, pelo menos, está perto do mar e da montanha, não há ninguém que me conheça e que eu tenha a obrigação de ir visitar.
— Quer virar um eremita — comentou Jorge.
— Talvez — admiti — O que quero, por enquanto, é sossego. Sossego e distância de São Paulo. Não quero me encontrar com velhos conhecidos, com pessoas que vão me trazer forçosamente à memória, coisas que eu quero esquecer...
Jorge não insistiu em mais explicações...
Bom advogado, discreto e eficiente como seus ancestrais japoneses, ele percebeu que, se eu estava querendo esquecer alguma coisa, não deveria perguntar mais nada.
Deveria, isso sim, deixar que eu buscasse o meu caminho.
Sem interferências.
— Você sabe que estarei sempre à sua disposição para o que precisar — limitou-se a dizer — Mesmo que seja apenas para um conselho...
— Sei disso, meu amigo — falei — E lhe sou muito grato.
— Pode dispor de mim — reafirmou Jorge — E fique sossegado, tudo será feito como está me pedindo.
Fez uma breve pausa e disse:
— Até outra vez, amigo... E kiotsukete kudasai...
— O quê? — perguntei.
— Tome cuidado — traduziu ele — Não se esqueça que só vivemos uma vez...
Desliguei o telefone e, alguns minutos mais tarde, pedi ao Serviço de Facilidades do hotel, que me providenciassem uma passagem de ida para Vitória, bem como uma reserva no Hotel Alice Vitória que, segundo o que eu ouvira dizer, era um dos melhores da cidade.
— Pois não, doutor Sérgio — disse a telefonista — Dentro de meia hora ligarei confirmando tudo, está bem?
Desliguei sem responder.
Ora!
Nada estava bem!
Como alguma coisa poderia estar bem se eu estava mudando de vida, mudando de cidade, abandonando um passado?!
Como poderia estar bem se eu me via obrigado a esquecer...
Esquecer justamente as coisas que me eram mais gratas à lembrança?!

— . —

Cheguei à minha suite no Alice Vitória já perto de dez horas da noite e, apesar de ser um pouco tarde, fiz uma ligação para São Paulo.
— Queria falar com o senhor Caruso, por favor...
Uma voz de criança gritou chamando o pai e eu sorri, lembrando-me da graciosa menininha, filha temporã de Caruso e que, com apenas dez anos de idade, me fizera comprar em sua loja, um caríssimo Dunhill...
Prometia, aquela Adriana...
— Alô? — fez a voz grave do comerciante.
— Caruso, aqui quem está falando é o Sérgio... Isso, o escritor...
Ele me perguntou alguma coisa que, imediatamente, me fez mal à alma mas, como não podia deixá-lo sem resposta, falei:
— Sim... Ele se casou... Não... Não fui ao casamento. Não pude... Estava viajando...
Enquanto dizia aquelas palavras, senti meu coração diminuir de tamanho, como se quisesse expulsar de dentro dele toda a minha alma indigna.
Com esforço, continuei:
— Preciso de um favor seu...
— Pode dizer, Sérgio — respondeu Caruso, solícito — O que estiver ao meu alcance...
— É o meu tabaco... — falei — O que tenho já está quase no fim e, se não me engano, ainda ficou um pouco em sua loja. Preciso dele com urgência e preciso que me mande despachar para Vitória, no Espírito Santo, para o Hotel Alice Vitória, as próximas remessas da minha mistura, quando chegarem de Londres.
Conversamos ainda alguns minutos sobre banalidades e, ao se despedir, ele falou:
— Amanhã mesmo enviarei o seu tabaco, Sérgio. Depois, a próxima remessa deverá chegar à minha loja dentro de seis meses...
Com uma certa preocupação na voz, ele perguntou:
— Você não estará de volta a São Paulo antes disso, será possível?
O que eu poderia dizer?
Que minha intenção era de nunca mais voltar a São Paulo, de ficar para todo o sempre lá pelo Espírito Santo ou em qualquer outro lugar que não fosse a Terra da Garoa?
Certamente, se eu falasse isso, Caruso haveria de querer explicações que me seriam penosas de dar e, além do mais, não havia nenhuma razão para que eu dissesse a quem quer que fosse os motivos de minha fuga.
Sem desejar mentir para mim mesmo, respondi:
— Darei notícias antes que meu tabaco termine, Caruso. Pode estar certo disso. Você sabe que eu não passo sem a minha mistura.
E era verdade.
Poderia acontecer o que fosse, mas eu não ficaria sem o meu tabaco, a minha mistura de fumos personalizada pela Alfred Dunhill's House, em Saint James Square, Londres.
Personalizada, de fato e de direito, produzida especialmente para mim, a partir de um extenso e complicado questionário que eu tivera de responder quando, obedecendo a um impulso mais de curiosidade do que por qualquer outro motivo, achei de encomendar um tabaco especial para o meu consumo.
O resultado foi surpreendente.
A mistura que veio ter às minhas mãos, como amostra, casava-se tão bem comigo, com a minha personalidade e o meu modo de ser que nunca mais consegui fumar outro tipo de tabaco.
— Disso não duvido — riu Caruso — Os tabacos especiais têm essa característica... Os homens são muito mais fiéis a eles do que às próprias esposas ou aos mais íntimos amigos!
Outra facada...
Mas que mau gosto falar em fidelidade naquele instante!
Desliguei o telefone sem nem mesmo me lembrar, no instante seguinte, se tinha ou não me despedido de Caruso.
— Bem — pensei — Essa obrigação está cumprida. Agora, a não ser com o Jorge e com meu editor, não tenho mais a menor necessidade de falar com quem quer que seja em São Paulo.

— . —

Escritor — decidira simplesmente arquivar o diploma de advogado para me dedicar apenas aos meus romances — era até melhor que eu estivesse vivendo numa cidade mais calma que a Megalópole Paulistana com seu movimento, seu ruído, já naquela época, bastante insuportáveis.
E — vantagem suplementar — estaria mais longe da violência urbana de São Paulo que, como no Rio de Janeiro, já dava mostras de se transformar em gravíssima doença social.
Absolutamente incurável.
Doença que parecia tão incurável quanto a ferida que me corroía a alma...
Porém, bem se diz que o tempo é o melhor remédio e, uma semana depois de ter chegado a Vitória, graças aos passeios pela região do porto, pelo Convento da Penha, pela Cidade Alta e, principalmente graças às longas caminhadas pela Praia do Canto e por Camburi, se não consegui curar a ferida, ao menos tive a impressão de lhe ter posto em cima um curativo que a anestesiara.
Resolvi permanecer morando no hotel, o que me facilitaria enormemente a vida, sem a necessidade de fazer compras, de contratar uma empregada e todas essas pequenas coisas que acabam por constituir a verdadeira vida doméstica.
No meio dessa semana, Jorge me telefonou dizendo que a venda do apartamento tinha sido efetivada e que dona Efigênia, chorando muito, havia se mudado para uma pensão.
Minhas coisas, meus livros, meus discos, minha vidinha, estavam guardados num depósito e eu deveria decidir o que fazer com tudo aquilo o mais depressa possível.
— Além de você ser obrigado a pagar um guarda-móveis — disse-me ele — há coisas que se estragam pelo não-uso. E seus livros vão mofar, mesmo encaixotados.
Prometi-lhe que tomaria uma decisão no máximo dentro de um mês e concluí:
— De qualquer maneira, acho que vou ter de arrumar uma casa ou um apartamento por aqui... Quando recomeçar a escrever, precisarei ter o meu lugar.
Depois desse telefonema, sentindo-me ainda mais desvinculado de São Paulo e de todo o passado que a Paulicéia Desvairada poderia representar para mim, passei o resto da semana dedicando o tempo a conhecer melhor minha nova cidade.
Assim, descobri restaurantes deliciosos em Camburi, em Vila Velha, no centro antigo de Vitória e na Praia do Canto. Tomei contato com paisagens belíssimas como a que se descortina da Ilha do Boi, bem na entrada do porto, e da Praia da Costa.
Fui assistir a uma peça no Teatro Carlos Gomes e...
Fui a três exposições de pintores capixabas.
Talvez tenha ido a essas exposições por mero masoquismo ou então, para testar a mim mesmo, para ver se conseguia ficar diante de uma tela sem que me lembrasse dela.
E lembrei...
Na terceira e última exposição, de uma artista já idosa com temática sobre peixes e fundo do mar, eu acabei me lembrando dela com muita nitidez.
Quase a vi, linda, adorável, sedutora e desejável, entre os repórteres, explicando sua técnica, mostrando seu talento, esbanjando valor...
Fugi de lá como o diabo foge da cruz.
Deixei a velha pintora talvez frustrada, pois,ao saber que eu estava em seu vernissage, ela manifestara vontade de conhecer o escritor Sérgio...
E talvez tenha até achado que fui muito mal-educado por ir embora sem nem mesmo cumprimentá-la.
Mas...
O Sérgio que possivelmente ela teria gostado de conhecer, alegre e sempre cheio de bom humor, não estava ali...
Tinha ficado em São Paulo e o homem taciturno e triste em que eu me transformara, não lhe poderia dizer nada de aproveitável, não conseguiria, mesmo que hipocritamente, elogiar-lhe a obra.
Deixei a exposição e fui caminhar pelas ruas do centro, olhando algumas vitrinas e parando num ou noutro bar para um copo de uísque.
Puro, sem nem ao menos um cubo de gelo, na vã tentativa de afogar mais rapidamente aquela lembrança...

— . —

Eu tinha acabado de entregar mais um romance para o meu editor e ele, com um sorriso maroto nos lábios, disse:
— A capa deste seu livro será feita por uma verdadeira artista, Sérgio!
E, naquele seu jeito paternal, acrescentou:
— Vou apresentá-la a você, esta noite. Ela estará abrindo uma exposição e eu faço questão que vá comigo.
Sorri, também...
Conhecia havia muito tempo aquele homem e sabia que, ao falar assim, ele tinha pelo menos mais umas quatro ou cinco intenções paralelas, escondidas e bem disfarçadas atrás de suas palavras.
No mínimo, ele estava querendo que eu o ajudasse a fixar a nova ilustradora à editora, já que não era nada fácil encontrar quem fizesse boas capas e cobrasse preços que permitissem algum lucro.
Assim, eu falei:
— Pois bem... Farei o sacrifício. Diga o que eu devo fazer e o que eu não posso dizer para essa ilustradora.
Ele soltou uma gostosa gargalhada e murmurou:
— Não falarei nada... Você saberá muito melhor do que eu o que deverá fazer.
À noite, conforme o que combináramos, passei em sua casa para, em meu automóvel, irmos ao vernissage da tal pintora, numa galeria de arte da Rua Augusta.
— Você verá que maravilha — falou-me.
— Não sei como é que poderei ver... — argumentei — Sou quase nulo em matéria de arte e se essa artista tiver uma tendência qualquer para o abstrato, por exemplo, serei absolutamente incapaz de fazer um julgamento.
— Pode ser que você não entenda nada de arte pictórica, Sérgio — disse-me ele — Mas jamais duvidei de seu gosto e de suas opiniões sobre escultura... E o que vamos ver hoje é muito melhor do que a melhor de todas as esculturas de Fídias!
Olhei para ele intrigado, mas como mudasse de assunto e começasse a dissertar sobre as dificuldades que o ramo editorial andava enfrentando, naquela velha lengalenga de editor que não quer dar o adiantamento que o escritor está pedindo, não insisti e, estacionando o carro duas esquinas abaixo do cruzamento com a Alameda Santos, falei:
— Bem, meu caro... Chegamos... E estou curioso para ver as obras dessa escultora!
— Escultora? — perguntou-me ele, franzindo as sobrancelhas — Mas quem é que disse que ela é uma escultora?
— Você, ora bolas! — exclamei, indignado — Ou será possível que os problemas de dinheiro estejam tão graves que conseguem impedi-lo de raciocinar direito e de lembrar das coisas que diz?!
Ele riu e, caminhando ao meu lado, falou:
— Você entendeu mal, Sérgio... Eu não disse que ela é uma escultora... Eu disse que ela é uma escultura... Uma belíssima escultura, por sinal!
Entramos na galeria e em poucos instantes eu pude ver que meu editor estava cheio de razão quando me dissera que ela era uma verdadeira artista.
Cristina pintava bem, seus quadros, em linhas simples e despretensiosas, eram belos, mostravam uma personalidade firme e objetiva, exprimindo com perfeição o que ela tinha para dizer.
Eram, em sua maioria, paisagens urbanas, modernas, quase futurísticas, representando prédios ousados e grandes viadutos.
Havia em seus quadros uma nota constante e que eu não precisei de mais do que cinco minutos para perceber.
Talvez os críticos e os ditos entendidos em arte não concordassem comigo, mas...
Eu tinha certeza, sabia que não poderia estar enganado.
Cristina representava, em meio aos seus prédios, entre suas linhas arrojadas e seus viadutos quase inter-galácticos, um sol muito vermelho em alguns quadros.
Em outros, havia apenas um ponto de intensa luz e em outros ainda, uma sombra de cores harmoniosas...
— Isto é um pedaço de sua alma — disse para meu editor — E é justamente aquele pedaço que exige a libertação da angústia e da ansiedade causadas pela vida nas grandes metrópoles.
Ele olhou espantado para mim.
— Não imaginava que você pudesse entender dessas coisas, Sérgio... — murmurou.
— E não entendo, mesmo — admiti — Mas aqui, isso está tão nítido... Qualquer pessoa com um pouco mais de sensibilidade seria capaz de interpretar os quadros de Cristina.
Olhando para uma outra tela onde havia um desenho imponente de um edifício cercado por outros menores, com um imenso viaduto em primeiro plano, falei:
— Veja esta pintura. O sol vermelho está aí e a cidade parece sem vida, não é mesmo? Isso faz supor que este seja o sol da manhã, quando a megalópole ainda está adormecida... Não acha que isso pode significar uma manifestação do subconsciente da pintora, de um desejo de renascer? De um reinício? Veja como o desenho está limpo, nítido... Talvez possa ser interpretado como a pureza de princípios e de sonhos de Cristina...
Mostrei as linhas firmes e claras, diretas e nítidas dos edifícios que ela pintara.
— Observe isto — murmurei — Os prédios são prédios, realmente... As linhas do desenho são claras e explícitas, não há nada amalucado que nos faça perguntar o que é isso, não há nada antinatural como os relógios derretidos e amolecidos de Dali. Muito pelo contrário, podemos ver e ter a certeza de que são prédios, prédios comuns, de apartamentos, de escritórios... Nada além de um fragmento da megalópole!
Vendo o espanto de meu editor, sorri e continuei:
— Eu interpretaria isso como uma prova de objetividade da pintora. Diria que ela tem uma meta a alcançar e traçou um caminho bem claro, bem concreto para seguir.
Olhei com superioridade para meu editor e ia abrindo a boca para acrescentar mais alguma coisa a respeito da maneira segura como ela assinava suas obras, quando uma voz melodiosa e cristalina disse, atrás de mim:
— Acho que nenhum crítico acertou tão espetacularmente... Faltou apenas você falar de minha vida sentimental...
Voltei-me vivamente e, então, a vi...
Era, de fato, uma escultura de fazer inveja a qualquer obra de qualquer grande mestre...
Era uma mulher que provava, simplesmente, que o Supremo Escultor é com razão chamado de Onipotente...
Ele pode conseguir a Perfeição...
Loura, os cabelos cor de ouro velho escorrendo para cima dos ombros como uma cascata ao amanhecer, vivos e com suaves ondulações que lhe davam um aspecto estudadamente revolto e descuidado, emoldurando um rosto que poria qualquer idealização da Beleza Feminina muito aquém da realidade que ela provava existir, dona de um corpo de linhas suaves, de curvas sedutoras e que irradiavam uma sensualidade intensa, quase animal...
Cristina me fez emudecer...
Foi com extrema dificuldade que eu consegui balbuciar:
— De fato... Uma criação tão bela não poderia ter vindo de criadora diferente... O Belo produz o Belo e acho que essa, no fundo, é a regra básica da Estética...
Cristina sorriu.
Estendendo-me a mão, depois de cumprimentar meu editor, ela falou:
— Acho que vou gostar muito de fazer as suas capas, Sérgio... Será muito bom poder interpretar, num quadro, o romance escrito por alguém que soube, por sua vez, me interpretar tão bem e tão favoravelmente!
Já mais refeito, mais dono de mim mesmo, eu disse:
— Só espero conseguir produzir romances dignos de suas capas...
Nesse momento, um outro autor, bem mais velho que eu e que também escrevia para minha editora, interrompeu nossa conversa para elogiar os quadros de Cristina e, parecendo muito íntimo da moça, arrastou-a consigo para o outro lado da exposição.
Confesso que fiquei um tanto quanto enciumado.
Meu editor, percebendo o que acontecia comigo, riu e falou:
— Ora, Sérgio! Não precisa ter medo... O Fernando está simplesmente tentando convencer Cristina a lhe fazer as capas...
Pegando da bandeja de um garçom dois copos de uísque, entregou-me um deles e completou:
— Mas isso não vai acontecer. Esta tarde assinei com ela um contrato de exclusividade para as capas de seus romances. Creio que o seu trabalho se casa maravilhosamente bem com o tipo de pintura que ela faz.
Sorriu, maroto, e acrescentou:
— Até parece que vocês foram feitos um para o outro...
Eu ia protestar, ia dizer que ele não tinha o direito de falar assim e de me fazer supor coisas que estava longe de querer imaginar.
Mas, ele não me deu tempo para isso.
Olhando para onde a moça estava conversando com Fernando, os cabelos já bem grisalhos do escritor se agitando enquanto ele falava sem parar e gesticulava espalhafatosamente, meu editor disse:
— Para a obra de Fernando, não vai uma pintura de capa... No máximo um desenho engraçado compatível com o pândego que ele escreve...
Vi que, segundos depois, Cristina se desvencilhava do outro autor e, em passos rápidos e graciosos, se aproximava de mim.
Sozinho, pois meu editor tinha se afastado para conversar com um seu conhecido, pude criar coragem e dizer:
— Ouça, Cristina... Já que você vai ser a ilustradora oficial de meus livros, gostaria de poder conhecê-la melhor...
— Pois era justamente isso que eu estava querendo sugerir — falou ela.
E, com um sorriso infantil no rosto, indagou:
— Não quer almoçar comigo amanhã? Se você não se incomodar de comer em meio a telas e tintas...
Antes que eu pudesse pular de alegria aceitando o convite, Cristina acrescentou:
— Já sei que você está acostumado a passar muito bem gastronomicamente falando... Sua empregada é fabulosa, segundo o que se fala por aí. Mas eu gostaria que saísse um pouco da rotina e viesse à minha casa.
Deu-me o endereço, finalizando:
— E, para que você veja que eu não tenho medo de concorrência, vou fazer uma bacalhoada amanhã... E para portuguesa nenhuma botar defeito!
Seus olhos, muito verdes, muito brilhantes, fixaram-me por um momento...
Pudesse esse momento durar toda uma eternidade...!
Havia alguma coisa naquela moça que me despertava uma curiosidade intensa, um desejo incomensurável de realmente conhecê-la melhor.
Talvez existisse nela algum mistério que minha alma de escritor ansiasse por desvendar.
Ou, simplesmente, ela era uma mulher linda, desejável, que o homem Sérgio, bom animal caçador e predador, estivesse ansioso por capturar...



D O I S


Não há no mundo, nada que estrague mais a saúde de um homem do que a comida de restaurantes.
E, se somarmos ao fato de que dificilmente deixaremos de encontrar, mesmo nos melhores restaurantes, um óleo mais velho ou uma maionese mais passada, o forte tempero rico em coentro da comida capixaba, as gorduras saturadas e insaturadas das lingüiças de Domingos Martins e Alfredo Chaves e a soberba quantidade de álcool ingerida com a desculpa de tentar afogar as mágoas, pode-se imaginar com facilidade como é que eu comecei a me sentir depois de um mês de vida nova.
— O seu estômago está irritado — disse-me um médico com quem conversei a respeito das frequentes dores que me assaltavam a região epigástrica — Por enquanto ainda não há úlcera, mas a continuar com esse tipo de alimentação...
Saí de seu consultório com um problema a mais para resolver.
Precisava encontrar um lugar onde pudesse tomar refeições verdadeiramente caseiras e leves, para impedir que meu estômago derretesse como se tivesse sido mergulhado em ácido.
Procurei como um desesperado um restaurante onde estivesse escrita à sua porta, aquela frase tradicional: Comida Caseira.
E que fosse, já pela aparência, confiável.
Impossível...
Os que vi, ou eram tão sordidamente sujos que me desencorajavam por completo ou então, a tal comida caseira era feita de tal modo, vale dizer, utilizando-se ingredientes tão ordinários, que seria um autêntico suicídio ingeri-la.
Desanimado, acabei indo bater à porta de uma amiga recente, uma simpática senhora que eu conhecera no mercado, vendendo pinhas.
— Então o doutor está cansado das moquecas? — admirou-se ela quando lhe contei o meu problema.
Expliquei-lhe que não era esse o caso.
Muito pelo contrário, eu adorava o gosto da moqueca capixaba, achava divinas as comidas que vinham das roças, nas montanhas...
Porém, meu estômago pedira rendição...
E incondicional!
Bastava passar ao lado de um bar onde se estivesse fritando alguma coisa para que ele se revoltasse e começasse a doer.
— Pois venha comer aqui em casa, doutor Sérgio — prontificou-se ela — Poderei cozinhar separado para o senhor e não acredito que a minha comida, feita sempre com tanto cuidado e carinho, possa fazer qualquer mal ao seu estômago.
Satisfeito, aceitei o convite e, como amostra do que seriam minhas próximas refeições, a boa senhora me serviu um prato com arroz e galinha ao molho pardo...
Tudo isso, é claro, bem acompanhado por uma farofa divina, por pedaços de uma gorda polenta e uma lingüicinha de fazer pecar por gula o mais radical frade carmelita.
Estava delicioso...
Tão delicioso que, meia hora depois, eu me encontrava num pronto-socorro, com dores e queimações de fazer chorar.
— Não adianta — disse para mim mesmo enquanto comia a sopa insípida que me foi servida no hospital, logo mais à noite — Meu estômago está viciado com a comidinha portuguesa, com o bom azeite Galo ou, no mínimo, Dom Diniz...
De repente, uma saudade brutal da boa Efigênia se abateu sobre mim.
— Como estará a minha velha portuguesa? — perguntei-me.
E, preocupado, pensei:
— Ela não tinha parentes aqui no Brasil... Era sozinha...
A medicação que me foi administrada começara a fazer se efeito e lembrar-me da comida Efigênia ajudou muito a me abrir o apetite.
De mais a mais, para alguém que normalmente pesa oitenta e cinco quilos e que está acostumado a traçar um bife de quatrocentos gramas com extrema facilidade, aquela sopinha tinha sido absolutamente insuficiente.
— Estou com fome — falei para a enfermeira quando ela apareceu — Quero mais comida.
— O senhor já tomou a sua sopa — disse-me ela, muito profissional.
— Mas continuo com fome...
— Dieta é dieta, doutor Sérgio — replicou a moça, severa — Aqui no hospital o senhor terá de se contentar com a sopa e nada mais. Depois que sair daqui, em sua casa, poderá comer o que quiser.
Sorriu, maldosa, e completou:
— E voltará correndo para cá, cheio de dores.
Passei uma noite de cão.
A fome é uma sensação terrível, especialmente para aqueles que não estão habituados a ela.
Rolei de um lado para o outro na cama, sem conseguir conciliar o sono, levantei-me, andei pelos corredores, cheguei até mesmo a planejar um assalto à copa do andar.
Na manhã seguinte, depois de tomar um copo de leite gelado que mais parecia uma água esbranquiçada e um ridículo pedaço de pão, pedi para ver meu médico.
— Doutor, assim não é possível... Vou morrer de fome!
Com um sorriso, ele me disse:
— Tenha um pouco de paciência, Sérgio. Mais dois dias e estará praticamente curado dessa gastrite.
E, alegando muita pressa — tenho muitos doentes para ver — ele se despediu e ali me deixou, jogado sobre o leito, o estômago a clamar ruidosamente por algum alimento um pouco mais honesto.
— Dois dias! — exclamei — Pois sim!
Pedi alta logo após o almoço.
Não suportei ver a galinha cozida que me foi servida...
Coitada!
Branca, anêmica, sem o menor sinal de molho, sem a sombra de uma pitadinha de sal...
— O senhor terá de se responsabilizar por esse ato insensato de pedir alta — disse-me a enfermeira.
— Pois eu me responsabilizo por qualquer coisa — retruquei — E se a senhora acha que eu vou ser obrigado a voltar, pode até deixar a minha vaga reservada. Mas, pelo amor de Deus, diga para a cozinheira aprender a fazer alguma coisa melhor! Isto não é comida de cristão!
— E não é mesmo — falou a enfermeira, muito séria — Mas é comida de doente. E, para nós, o senhor é apenas isto: um doente.

— . —

De volta ao hotel, expliquei para o gerente, um rapaz muito simpático e amigo, a minha situação.
— Porque o senhor não compra ou aluga uma casa, um apartamento? — perguntou-me ele.
E, baixando a voz, como se me contasse um segredo, acrescentou:
— Seria melhor, tanto para o senhor, quanto para nós... Vivemos com problemas de vagas e um hóspede fixo é menos lucrativo...
Admirei-me da sinceridade do moço, lembrei-me de minhas pobres coisas amontoadas num depósito frio e impessoal lá em São Paulo...
Lembrei-me do arroz de Braga de Efigênia...
— Mas precisaria encontrar um imóvel para alugar — ponderei — E, pelo visto, as coisas não andam muito fáceis por aqui, no que diz respeito ao ramo imobiliário...
— Por uma coincidência — falou ele, revelando o verdadeiro motivo de sua sinceridade — tenho uma tia que está vendendo uma casinha muito interessante na Ilha do Boi... Acho que ela poderia fazer um bom negócio com o senhor.
À noite, liguei para o Jorge, dizendo:
— Preciso de mais um favor seu...
— Você sabe que estou à sua disposição, meu amigo — respondeu ele — Pode dizer... Se estiver ao meu alcance...
— Dê um jeito de fazer a Efigênia entrar em contato com você e despache-a para cá o mais depressa que puder. Mande vir, também todas as minhas coisas. Comprei uma casa aqui e acho que uma casa sem as minhas coisas e sem a minha velha portuguesa, não é um lar...
Uma risada ecoou do lado paulista da linha telefônica.
— De que está rindo, desgraçado? — perguntei.
— Você vive tentando tampar o sol com a peneira, Sérgio — respondeu Jorge, ainda rindo.
— Não sei o que está querendo dizer com isso — protestei, muito embora já soubesse o que ele iria me responder.
— Não é propriamente da Efigênia que você precisa, meu amigo — disse ele, com voz pausada, separando as sílabas, como se fizesse questão absoluta que eu entendesse perfeitamente suas palavras — Você está é precisando de uma esposa...
Muito pouco cortesmente eu lhe disse um palavrão, desses bem cabeludos, antes de desligar o telefone.
Espichei-me sobre a cama, cruzei os braços atrás da cabeça e deixei que minha mente voasse um pouco para a Ilha do Boi, onde dentro de poucos dias, eu estaria morando.
Como se diz em linguagem jurídica, residente e domiciliado.
Lembrei-me, de súbito, das palavras de Jorge, dizendo-me que eu precisava era de casar...
— Ora — falei para mim mesmo — Mas isto é um absurdo! Jamais conseguiria pensar em casamento! Não fui feito para esse tipo de coisa!
Casamento!
Por minha mente, numa dolorosa fantasia, passou a sua imagem vestida de branco, o véu esvoaçando, os cabelos louros cobertos por uma grinalda de flores...
Ela estaria linda...
E ele, muito sério, em seu fraque alugado — quando é que um homem como ele haveria de ter tempo de mandar fazer um fraque?! — olharia com orgulho para a noiva, olharia com superioridade para os amigos que ali estivessem aplaudindo a cerimônia...
E eu...
Eu não estaria ali.
Aliás, na realidade, eu não estive.
O casamento acontecera havia mais de mês e meio.
— Não poderia ter aplaudido... — murmurei — E jamais poderia ter dado os parabéns para ele...
Adormeci pensando que Efigênia teria gostado de fazer o bolo do casamento, teria adorado fazer uma enorme travessa de fios de ovos...

— . —

No dia seguinte, ao almoço, olhava tristonho para o prato que estava à minha frente onde, como lombrigas esbranquiçadas e mal alimentadas, meia dúzia de fios de macarrão nadavam no meio de um simulacro de canja, que o cozinheiro, a pedido especial de meu médico, estabelecera como dieta...
Que saudades daquelas canjas gordas e suculentas...
Que saudades daquelas macarronadas ao forno...
Fui arrancado de minhas meditações gastromasoquistas pela voz do garçom que me dizia:
— Telefone para o senhor, doutor Sérgio...
E, olhando penalizado, para o meu prato, murmurou:
— Coitado... Deve estar muito doente, mesmo... Ser obrigado a comer isto...!
A voz de Efigênia entrou-me pelo ouvido e foi direto ao meu coração.
— Doutor Sérgio, meu patrãozinho amado! Já estou a caminho, já estou a fazer as malas!
Talvez, se fosse minha mãe, não tivesse tanto carinho por mim, a boa velha portuguesa...
Meus olhos se encheram de lágrimas ao ouvi-la contar que estivera todo aquele tempo esperando o meu chamado e que não me perdoava por eu tê-la deixado de lado da maneira como fizera.
— És um ingrato, patrãozinho! Um ingrato dos maiores!
E eu podia ouvir que ela soluçava, como toda boa filha da Terrinha...
Animado com o telefonema e sabendo que minha Santa Efigênia chegaria já no dia seguinte, empurrei com desprezo o prato de falsa canja e comandei:
— Traga-me um bife, Carlos... Um bom bife sangrante, com a crosta queimada, mas que continue a mugir quando eu lhe enfiar o garfo!
E, pensando na intensa atividade que me esperava nos dias que se seguiriam, comi meu bife, tomei — por medida de precaução, apenas — um copo de leite gelado e, como sobremesa, um pedaço de mamão, pois sempre ouvira minha Efigênia dizer que o mamão é um bom digestivo e que, sempre que se come muita carne, é aconselhável terminar a refeição com um grande pedaço dessa fruta.
Parece que, mais uma vez, minha portuguesa estava com a razão.
Apesar de tudo quanto comi, não me senti mal, não tive qualquer dor e, muito pelo contrário, senti-me bem disposto e, o que vinha sendo cada vez mais raro em minha vida, com um bom humor igual ao dos tempos antigos...
Logo depois do almoço, comecei a me dedicar à nova casa.
Era uma espécie de bangalô amplo e confortável, uma mistura arquitetônica de colonial espanhol com o estilo das velhas fazendas mineiras, com o telhado um pouco mais alto do que o normal e com o ângulo da cumeeira mais fechado. As janelas com jardineiras eram alegres e os gerânios pendentes davam um colorido todo especial à fachada.
Da sacada do andar superior, a paisagem que se descortinava aos meus olhos era esplêndida: ao longe, o horizonte muito azul e, mais perto, a entrada do porto e um pedaço de praia.
Não...
Eu não poderia querer mais.
No piso superior, a casa possuía três dormitórios, sendo um deles um verdadeiro apartamento, com banheiro privativo, closet e ante-sala.
Era nesse quarto que havia a sacada, grande o bastante para que eu pudesse armar uma rede e colocar uma mesinha onde meu note-book, mais uma vez, sofreria minhas carícias lusitanas.
Os outros dois quartos, tendo entre eles um banheiro, seriam ocupados por minhas estantes com livros. Um deles conteria a grande escrivaninha de mogno que fora de meu avô e o outro, apenas uma mesa com cadeiras, pois seria o quarto onde eu poderia espalhar o material de pesquisa que utilizava para meus livros, seria o quarto onde a desordem reinaria onipotente e onipresente.
Efigênia dormiria no térreo, num apartamento amplo e confortável, também com seu banheiro privativo e uma pequena sala para a televisão.
Já imaginava, sorrindo, a colocação meticulosa dos milhares de bricabraques que sempre caracterizaram o quarto da velha portuguesa...
No piso inferior, que se atingia por uma escada com degraus de granito, havia uma ampla sala de estar cheia de nichos e de reentrâncias pelas paredes.
— Será fácil decorar — murmurei — E aqui cabe quase tudo o que eu tenho em matéria de bibelôs e de quinquilharias...
Na sala de jantar, separada do living por uma porta de correr, ficaria muito bem o conjunto que eu comprara em Ouro Preto já fazia alguns anos e, finalmente, na cozinha, havia espaço de sobra para todo o equipamento que eu tinha.
Fora, no fundo de um terreno generoso, havia uma outra cozinha, onde um fogão a lenha, desses de fazenda, feitos de alvenaria, reinava, senhor absoluto.
Ao lado, havia uma casinha completa, certamente construída para abrigar algum caseiro, quando aquela ilha ainda era apenas um ponto desligado do continente que se tinha de atingir por mar.
— Sou capaz de apostar que a Efigênia vai inventar uma horta e um galinheiro aqui — murmurei — E aí sim, é que ela vai ter trabalho...
O marceneiro, que eu havia chamado para fazer alguns reparos nos armários embutidos, aproximou-se pigarreando, para chamar minha atenção.
— Está tudo pronto, doutor — disse ele.
Acendendo um cigarro, perguntou:
— Quando é que sua família vai chegar?
— Não tenho família — respondi — Vou morar aqui sozinho, apenas com uma empregada velha...
Pareceu-me ver, na expressão do bom homem, um certo desapontamento.
Era fácil perceber que ele não conseguia aceitar uma casa tão grande para apenas uma pessoa, no máximo duas, contando-se com a empregada.
Ele ficou em silêncio por alguns instantes e, depois, erguendo os ombros, falou:
— Bem... Mas isso não vai durar muito tempo... Aqui em Vitória o senhor vai encontrar uma moça bonita para lhe fazer companhia...
Sorri, sem jeito, e me afastei.
Não...
Eu jamais conseguiria explicar para ele que a minha grande companheira já me havia passado pela vida...
E que eu a desprezara, deixara-a partir.
Partir com outro...
Definitivamente...
Irremediavelmente...

— . —

Minha velha portuguesa chegou no dia seguinte, de avião.
Fui buscá-la no Aeroporto de Goiabeiras e ela, toda esbaforida, reclamou:
— Ai, patrãozinho, que viagem! Eu bem que queria vir de ônibus, mas o doutor Jorge disse-me que era preciso ter pressa... Que o patrãozinho não podia esperar... Mas nunca mais! Nesse negócio, não viajo outra vez!
E, bem lusitanamente, completou:
— Da próxima vez, quando o patrãozinho precisar de mim com urgência, avise-me com pelo menos quinze dias de antecedência!
Ri de sua pureza e ingenuidade, perguntando:
— Mas por quê? O que é que foi tão ruim viajar pelo céu, pertinho de Deus?
— Primeiro, que é perto demais de Deus para o meu gosto — respondeu dona Efigênia — E, segundo, esta história de viajar amarrada...
Franzi as sobrancelhas, intrigado e, esforçando-me para não rir, ouvi-a contar:
— Logo que cheguei ao meu banco, neste avião, veio uma moça para me amarrar a ele. Depois... Pensas que ela me veio soltar as amarras?! Pois não veio! Quase me urinei toda! Não havia meio de sair de lá com aquela fivela presa!
Sorriu, abraçou-me e disse:
— Mas não importa! Já passou... Agora, o que interessa é que estou novamente ao lado do meu patrãozinho amado...
Olhou-me, cheia de pena e murmurou:
— Mas como está magro, o meu patrãozinho... Vai ter de comer muito arroz de Braga, muita açorda para recuperar os quilinhos que perdeu!
E, com os olhos úmidos, os lábios tremendo, no limiar do choro, perguntou:
— Diga-me lá, patrãozinho... Ficaste com saudade de minha comidinha, não é verdade?

— . —

Parece que é o suficiente ter pressa para que tudo comece a ir devagar.
Assim foi com o transporte de minha mudança de São Paulo para Vitória.
Tive de esperar quase uma semana para que o Jorge, finalmente, me ligasse, dizendo:
— O caminhão saiu ontem à noite. Deverá chegar aí amanhã pela manhã.
Três dias mais tarde, ele chegou.
Depois que o motorista e os dois ajudantes se refrescaram num demoradíssimo banho de mar, começou a novela do transporte das coisas do caminhão para dentro de casa.
Durante os primeiros quinze minutos, tentei fiscalizar o trabalho, mas já com a gastrite ameaçando voltar, e desta vez por uma causa eminentemente psíquica, desisti, deixando tudo aos cuidados de Efigênia.
Na tentativa de me acalmar e sem a menor vontade de continuar vendo a falta de modos com que aqueles homens tratavam as minhas coisas, fui caminhar um pouco pela praia.
O dia começava a morrer e a aragem mais fresca, anunciando a noite, encrespava as ondas, na Praia do Canto.
Uma lua enorme, cheia e avermelhada, levantou-se lá para os lados de Camburi, trazendo com a sua luz pálida, um indescritível toque romântico àquele pedaço de mundo.
— Creio que vou conseguir escrever aquele romance que trago enroscado na garganta — murmurei, tirando os sapatos para aproveitar o contato com a areia — Pelo menos, paz e tranqüilidade não me vão faltar...
Olhei para a Ilha do Boi, as lâmpadas das casas começando a se acender e disse, para mim mesmo:
— Poderíamos estar aqui juntos... Eu e ela... Que idiotice... Por quê? Por que foi acontecer tudo isso?
Muito mais tarde, já uma boa parte dos móveis no lugar e especialmente a cozinha em ordem, Efigênia apareceu na sala em que eu me encontrava, trazendo uma xícara de chá.
— Tome, patrãozinho... — disse ela — É chá de Boldo do Chile... Bom para o fígado e para os intestinos... Tome, vá!
Sentando-se numa poltrona perto de mim, para descansar um pouco as pernas de já quase sessenta anos de idade, ela falou:
— Esqueci-me de dizer... Quem esteve procurando pelo patrãozinho no dia mesmo de sua partida, foi aquele seu amigo, o professor Feijó...
Não teci nenhum comentário.
Apenas com muito esforço consegui dominar a expressão de desespero que eu sentia começar a se formar em meu rosto ao recordar que bons motivos tinha ele para me procurar...
Sem nada perceber, Efigênia perguntou:
— Não era ele que se casava um ou dois dias depois que o patrãozinho foi embora?
— Sim. Era ele mesmo — respondi, seco, desejando ardentemente encerrar o assunto.
— Que engraçado — fez a velha, recolhendo a xícara vazia — Os dois sempre andavam juntos... Eram como o sangue e o coração. De repente, um se casa e o outro não vai ao casamento... E, no dia anterior, vai viajar...
Meneando a cabeça de um lado para o outro e murmurando qualquer coisa a respeito de não conseguir entender os jovens de hoje em dia, a portuguesa voltou para a sua cozinha enquanto eu me deixava ficar ali, prostrado, lutando já debilmente para não mais me lembrar de nada que se relacionasse com São Paulo.

— . —

Por mais que se seja organizado, eficiente e expedito numa arrumação, o caos que acarreta uma mudança não é fácil de administrar e a reorganização e retomada daquilo que chamamos de rotina doméstica, demora sempre um bom tempo.
No meu caso, apesar de ter a eficiência de Efigênia a meu favor, só consegui me convencer que a mudança havia terminado quando, ao final do quinto dia de tropeções, encontrões e desencontros pela casa, entrei em meu escritório e vi, arrumados em sua estante especial, os meus cachimbos.
— Finalmente! — exclamei em voz alta apanhando, num gesto automático, um deles para uma boa cachimbada.
— Arrumei tudo aí em cima — gritou-me a velha — Espero que esteja ao gosto do patrãozinho!
Sentei-me à escrivaninha e, pachorrentamente, enchi o fornilho do cachimbo.
Depois, acendendo-o, soprei a fumaça azulada para o teto.
Foi nesse momento que eu tomei consciência de que estava realmente em casa.
Não importava em que cidade, em que Estado ou mesmo em que país.
Estava em minha casa, rodeado de minhas coisas, retomando o ritmo de minha vida.
Não estava mais fugindo, não era mais um foragido morando em hotéis, comendo em restaurantes, vivendo quase que sem eira e nem beira...
Regressara, finalmente, ao lar e urgia retomar minhas atividades.
Olhando ao meu redor e vendo que tudo estava absolutamente em ordem, já não havia mais desculpa para a preguiça.
Era preciso recomeçar a trabalhar.
Liguei o note-book e, exercitando os dedos, mexendo-os vigorosamente antes de começar a martelar o teclado, falei:
— Sou eu, novamente... Adeus ao passado, adeus aos velhos sentimentos e vamos começar tudo outra vez! Voltar à velha rotina, tentar sentir com outras pessoas o que já senti em outros tempos, com ela... A vida precisa continuar e é um absurdo deixar que sentimentos de culpa ou remorsos inúteis me bloqueiem!

TRÊS

O aroma do tabaco, o burburinho do ambiente, as pessoas apressadas no Aeroporto de Cumbica, fizeram com que, de repente, quinze anos depois, eu lembrasse de minha partida...
Mas, desta feita, eu não estava partindo.
Estava, isso sim, chegando.
E um quarto de existência depois de ter ido embora, apressado e triste.
A moça simpática da agência Hertz, locadora de automóveis, olhou para minha mão esquerda, viu que eu não estava usando aliança e perguntou, enquanto preenchia a ficha de cadastro:
— Estado civil?
— Solteiro — respondi — E convicto.
Ela sorriu e, entregando-me as chaves do carro que eu acabara de alugar, disse:
— Isso porque até agora ainda não surgiu uma boa pescadora em suas águas...
Correspondi ao sorriso e ela informou:
— O senhor estará no Caesar Park Hotel. Temos uma sucursal lá. Se tiver algum problema com o carro, é só solicitar o nosso representante em sua suite...
Com um pestanejar cheio de sedução, acrescentou:
— Farei o possível para estar nessa sucursal a partir de amanhã... E estarei à sua disposição para o que precisar...
Não pude deixar de pensar que aquela moça seria uma excelente pescadora, mas que, nem por isso, haveria de conseguir quebrar a rija casca de meu celibato...
A caminho do hotel fiquei impressionado com a formidável quantidade de carros circulando pelas ruas e constatei, consternado, que não houvera grandes modificações nas vias de grande circulação. Se o número de veículos havia decuplicado durante aqueles quinze anos, tornava-se mais do que evidente o motivo pelo qual o trânsito estava tão insuportável. Se a quantidade de carros só faz aumentar, enquanto a quantidade de ruas permanece a mesma, não se pode esperar outra coisa que não um imenso e complicado congestionamento.
Levei hora e meia entre o aeroporto e a Rua Augusta, onde ficava o meu hotel e, quando consegui entregar o automóvel ao manobrista do Caesar Park, estava mais cansado do que se tivesse viajado seis horas seguidas numa estrada.
Três motivos, na verdade, traziam-me de volta a São Paulo.
O primeiro era buscar uma conhecida de Efigênia, patrícia de Vila Pouca d'Aguiar como ela e minha avó, que iria trabalhar para mim em Vitória.
Minha governanta começava a se achar velha demais para continuar com a lide pesada da casa e, depois de uma série de brigas com todas as empregadas que, a muito custo, eu tinha conseguido contratar, acabou sugerindo que eu viesse apanhar a comadre Luzia.
— Ela é moça ainda, patrãozinho — disse-me Efigênia — Não tem sessenta anos... E o patrãozinho há de gostar de seu serviço.
Escondendo uma lágrima, completou, a voz embargada pela emotividade peninsular:
— Assim, quando eu me for, o patrãozinho estará bem servido...
O segundo motivo de minha viagem era estritamente profissional.
Eu estava começando a escrever um romance que tinha seu embasamento num formidável escândalo financeiro e era necessário trocar algumas idéias com pessoas que estivessem mais a par do assunto.
E o terceiro motivo era, no fundo, a manifestação da chamada síndrome do pombo-correio...
É aquela vontade que, de repente, bate no coração de uma pessoa que está longe de sua terra-natal, uma vontade terrível de rever o canto em que nasceu, de reencontrar pessoas, rever lugares já vistos e reacender sentimentos já esquecidos...
Na verdade, talvez fosse essa a razão mais séria de minha volta a São Paulo...
Por isso mesmo, achei que deveria começar a vivenciar meu regresso à megalópole paulistana, andando pelas mesmas ruas e calçadas que, quinze anos atrás, eu havia trilhado sem nem sequer imaginar que um dia haveria de deixá-las.
Deixá-las por vontade própria e sem a menor intenção de voltar.
Assim, na manhã seguinte à minha chegada, cachimbo pendurado no canto da boca, capote sobre os ombros para enfrentar o frio paulistano, caminhei a pé pelas calçadas da rua Augusta, olhando vitrinas, entrando e saindo de lojas e livrarias, enfim, reintegrando minha alma à de São Paulo.

— . —

Na alameda Lorena, entrei na Tabacaria Caruso, surpreso ao ver a loja ali, pois quando deixara São Paulo, ela ainda era na Líbero Badaró, perto da Praça Patriarca.
Mas, eu não deveria me espantar...
As coisas mudam, uma megalópole é um exemplo típico de dinamismo...
E, de mais a mais, estava já fazendo bastante tempo que eu perdera contato com o Caruso, para ser mais exato, desde o dia em que ele me dissera ser muito mais simples adquirir meu tabaco diretamente do importador, no Rio de Janeiro, representante da Alfred Dunhill.
Demorei-me apreciando os cachimbos da coleção Stanwell e vi que a bonita moça sentada atrás de uma escrivaninha com tampo de cristal, conferindo os livros da loja, não era outra senão a pequena Adriana de quinze anos atrás. Ela estaria com seus vinte e poucos anos, exuberante em sua juventude, sensacional como uma executiva...
Por um momento, senti vontade de ir falar com ela, talvez ainda se lembrasse de mim...
No mínimo, Adriana poderia me dar notícias de seu pai.
Voltei-me para olhar o balcão de tabacos enquanto Adriana atendia um senhor, possivelmente um vendedor.
Seria mais educado esperar que ela estivesse livre para então procurar conversar com a moça.
Foi nesse instante que o vi.
Estava debruçado sobre o balcão, olhando através do vidro as latas de fumo.
Reconheci-o imediatamente, apesar de só poder vê-lo de perfil.
Estava mais velho, mais vincado, as têmporas — como as minhas — começando a branquear...
Talvez tivesse os ombros mais caídos, o tronco um pouco mais curvado...
Afinal de contas, quinze anos representam um peso que se sente...
Pareceu-me que ele estava usando os mesmos óculos de aro de tartaruga de antigamente, as lentes grossas e esverdeadas.
Sua maneira de vestir também não mudara muito: continuava a não acompanhar a moda, usando as mesmas cores neutras que sempre o caracterizaram.
Não havia a menor dúvida.
Era ele mesmo, década e meia depois...
Meu primeiro impulso foi de correr ao seu encontro, abraçá-lo, pedir notícias.
Cheguei mesmo a esboçar um movimento em sua direção, mas...
Contive-me.
Mais do que o receio de não ser reconhecido ou até mesmo de não ser bem recebido — e Deus sabia quanta razão ele poderia ter de não querer me ver — foi o remorso, o maldito remorso, que me impediu de lhe dirigir a palavra ou, que fosse, um olhar mais direto.
Pensei em fugir dali...
Porém, não havia a menor possibilidade de sair da loja sem que ele me visse, seu avantajado corpo bloqueando o caminho.
Tentei ficar pequenino, escondido talvez apenas dentro de mim mesmo, encolhido a um canto, olhando fixamente e pela centésima vez para um mesmo cachimbo...
E se ele também me visse?
Será que seria capaz de me reconhecer?
Essas duas perguntas assaltavam-me o espírito enquanto eu chegava à conclusão de que não me restava outra alternativa a não ser esperar que ele fosse embora já que não parecia disposto a me deixar pelo menos um pouco de caminho livre até a porta da loja, de maneira a eu poder sair sem ser obrigado a esbarrar nele e lhe pedir desculpas.
Assim, fiquei numa posição tal que, se ele se voltasse para o meu lado, veria apenas as minhas costas.
Pedia a Deus para que ele fosse embora e ao Diabo para que ele viesse até onde eu estava, que me tocasse o ombro e me cumprimentasse...
A essa altura, em minha mente já estava perfeitamente delineado o intenso desejo de ouvir sua voz, de lhe falar, de perguntar como ia indo, o que tinha sido feito de sua vida...
Quinze anos!
As imagens daqueles tempos, como um velho filme já desbotado, foram ressurgindo em minha memória...

— . —

Éramos dois clientes assíduos, além de amigos, do Caruso...
Pelo menos uma vez a cada quinze dias, lá íamos os dois, nem que fosse apenas para tomar um café com o velho amigo.
De um modo ou de outro, Caruso, bom comerciante que era, sempre arranjava um jeito de nos vender um novo cachimbo, uma tabaqueira, um isqueiro especial ou, no mínimo, algumas escovas de limpeza para piteiras.
Meu amigo sempre comprava uma enorme variedade de tabacos.
— Você troca de tabaco com mais frequência do que troca de camisa — dizia eu.
— É que não tive a sua sorte — respondia ele — Não acertei uma mistura como você.
Falava essas palavras sem conseguir esconder um certo despeito, uma certa inveja.
E eu, orgulhoso de minha mistura personalizada e secreta, olhava para ele com superioridade.
Na antevéspera de seu casamento, pediu-me que o acompanhasse à tabacaria.
Queria se despedir de Caruso e aproveitar para comprar mais alguns cachimbos.
— Vida nova, cachimbos novos — disse-me, sorrindo.
Além disso, ele argumentou que poderia ter chegado alguma marca nova de tabaco e essa, exatamente essa, quem sabe, seria a sua mistura definitiva...
Claro, precisava se abastecer e se precaver, pois dedicado unicamente à Ciência, era o típico distraído e, na viagem de núpcias, não seria difícil perder seus cachimbos e o pacote de tabaco.
Por isso, precisava levar um bom estoque.
— Você me conhece — falou, erguendo os ombros numa tentativa de se justificar — Só não perco a cabeça por que ela está grudada no pescoço.
Como de hábito, foi o próprio Caruso a nos receber.
Com a solicitude e delicadeza de sempre, teve a paciência de nos mostrar todas as novidades em seu estoque de cachimbos e de tabacos.
— Você precisa levar, na viagem, tabacos de aroma suave — aconselhei.
— Vai viajar? — perguntou Caruso, interessado, olhando para meu amigo.
— Ele se casa depois de amanhã — expliquei.
— É verdade! — exclamou o velho comerciante, batendo com a mão espalmada na testa — E eu, que tinha esquecido!
Balançou a cabeça, desanimado e murmurou:
— E olhem que recebi o convite... É a idade... Começo a esquecer todas as coisas e, com isso, chego até a magoar os amigos...!
Mostrando uma latinha de tabaco para meu amigo, falou:
— Acho bom você levar várias latas deste aqui...
Sorriu, maroto, e completou:
— É fabricado especialmente para essas ocasiões...
Meu amigo pegou a lata, sopesou-a e leu-lhe o rótulo:
— After Love...
— Para fumar depois do amor — falei, rindo.
Ele corou um pouco, tímido que era, murmurando:
— Ora... O que não falta inventar...!
E, corando mais ainda, pediu para Caruso embrulhar três latas daquele tabaco.
Fazendo novas piadinhas a respeito da quantidade de fumo que ele estava levando, acendi meu cachimbo.
— Você... Sempre fiel à velha mistura, não é mesmo, Sérgio? — comentou o comerciante com um sorriso.
— Sem dúvida — respondi — Não a troco por nada.
— Faz-me lembrar que já está na hora de renovar o pedido para a próxima remessa — disse ele — Vou fazer isso agora mesmo. Dentro de alguns dias ela estará aqui.
Nesse momento, um outro cliente entrou na loja e Caruso pediu-nos licença por um momento para poder atendê-lo.
— Esperem só um pouquinho — falou ele — Tomem um café enquanto isso.
Um dos funcionários da loja levou-nos até a sala do café, destinada aos clientes que Caruso, carinhosamente, chamava de prata da casa.
Meu amigo, segurando na mão direita o cafezinho e na esquerda o pacote de After Love, disse:
— Espero que Cristina goste desse tabaco. Ela sempre acha alguma coisa para criticar nos fumos que uso.
Cristina!
Porque ele teve que pronunciar o seu nome?
Será que ele não notara, até aquele momento, que eu nunca falava em sua noiva, nem sequer quisera me encontrar com ela, fugindo sempre das ocasiões em que isso poderia se tornar algo inevitável?
Fui arrancado de meus pensamentos pela voz de Caruso que, entrando na sala naquele momento, ouvira as palavras de meu amigo.
— Tenho a impressão de que a dona Cristina está de implicância consigo — disse-lhe o comerciante — Até mesmo da mistura personalizada que encomendamos na Alfred Dunhill especialmente para você, ela não gostou! E olhe que eu não vi, até hoje, a Dunhill errar uma única vez!
— É como eu digo — murmurou meu amigo, com expressão desconcertada — Não sou o Sérgio... Lembro-me muito bem que Cristina sempre elogiou o aroma de seu tabaco!
E, com um suspiro, acrescentou:
— Vou acabar desistindo de meus cachimbos. Cada vez que eu acendo um deles, Cristina se transforma. Parece até outra pessoa, fica nervosa, tossindo e reclamando do cheiro.
Virou-se de súbito para mim e, com um sorriso cheio de esperança nos lábios, pediu:
— Escute... Você não quer me dar um pouco de sua mistura? Assim, tenho certeza que Cristina não poderá reclamar... Ou, se o fizer, terei certeza de que a implicância é mesmo comigo!
Sacudi negativamente a cabeça.
— Não — respondi — Minha mistura é exclusiva. Só eu a uso. De mais a mais não acho justo que você a queira para testar Cristina...
— Ela não reclamava quando você fumava ao seu lado. Muito pelo contrário, parecia se deliciar com o cheiro — justificou-se ele.
— Não — repeti, até um pouco ríspido — Peça o que quiser, mas... Minha mistura, não!
Caruso nos acompanhou até a porta, despediu-se com um abraço de meu amigo e garantiu que estaria em seu casamento, chovesse ou fizesse sol.
— Depois de amanhã! — exclamou este, entusiasmado — Conto com a sua presença!
Faltavam menos de quarenta e oito horas para a cerimônia de seu casamento e ele, andando ao meu lado pelo Viaduto do Chá, estava estranhamente silencioso.
— O que é que você tem? — perguntei.
E, antes que ele tivesse tempo de responder, acrescentei:
— Você deveria estar feliz... Afinal, vai se casar dentro de dois dias!
Ele não respondeu de imediato e, depois de caminhar mais uma dezena e meia de passos, murmurou:
— Acho que falei o que não devia... Percebi que ficou magoado.
— Mas não estou magoado! — protestei.
— Você ficou esquisito, lá na tabacaria... — insistiu — Tive a impressão que ficou com raiva de mim.
Estacou, segurou-me pelo braço e, com um sorriso triste, falou:
— Não parece feliz com o fato de eu estar me casando...
Mal sabia ele o tamanho da verdade que acabara de dizer.
Em meu coração havia um dilema, um terrível conflito...
Eu omitira a verdade sobre Cristina, deixara de lhe dizer umas tantas coisas que talvez mudassem a sua vida.
E isso não era papel de amigo.
Por outro lado, não podia ter a certeza de que ela mesma não lhe tivesse contado e, nesse caso...
Tocar num assunto de que já tivesse conhecimento, poderia no mínimo ressuscitar recordações dolorosas, seria o mesmo que mexer numa ferida que estivesse cicatrizando.
Eu não queria fazê-lo sofrer...
Além de tudo, era tarde demais para qualquer coisa.
— Olhe! — exclamou ele, a fisionomia contraída pela angústia — Você está aborrecido, outra vez!
Sem me deixar abrir a boca, suplicou:
— Diga-me o que é que está havendo, pelo amor de Deus!
Com um sorriso amarelo, a alma se debatendo em dúvidas dentro de meu coração, balbuciei:
— Mas não há nada, meu amigo... Nada, mesmo!
E, buscando desesperadamente mais alguma coisa para dizer que pudesse contentá-lo, ajuntei:
— Talvez eu esteja triste por não ter conseguido, como você o fez, encontrar uma companheira de vida... Com você casado, vou ficar terrivelmente sozinho...
No início da Barão de Itapetininga, fiz sinal para um táxi e convidei:
— Venha... Vamos até minha casa. Vamos tomar um gole e conversar um pouco.
Vi que ele respirava aliviado ao sentar ao meu lado, no banco traseiro do carro.
— Isso mesmo! — exclamou, num sopro — Como nos velhos tempos! Vamos conversar uma garrafa!
Já em meu apartamento, sentados diante de um bom e honesto uísque, à medida que o nível da bebida na garrafa ia baixando, os assuntos de que tratávamos foram se tornando mais íntimos.
— Já dormiu com Cristina? — perguntei, sem olhar para ele.
— Imagine! — fez ele em tom de protesto, mostrando-se ofendido — Uma moça tão pura... Tão inocente!
— Não se ofenda — pedi — Hoje em dia, essa história de virgindade é muito relativa...
— Não para mim! — replicou ele, interrompendo-me — Se eu pude me manter casto até hoje, acho que o mínimo que poderia exigir da mulher que vai ser minha esposa, é que ela também seja virgem!
Estremeci...
As coisas estavam ficando cada vez mais difíceis e eu não estava conseguindo enxergar nenhuma luz no fim do túnel em que me sentia metido.
Sorrindo candidamente, ele acrescentou:
— Aliás... Não sei como é que eu vou fazer... Ela, inexperiente e eu... Totalmente ignorante nesses assuntos, apenas com conhecimentos teóricos...
Enchi mais uma vez os copos, sentindo o sangue latejar em minhas têmporas, sentindo de repente, uma raiva surda e quase incontrolável daquela mulher que, tão torpemente, estava enganando o meu amigo.
A figura de Cristina sempre tivera para mim uma aura de suavidade e candura...
Mas, de súbito, passou a ser envolvida por uma sombra demoníaca, por um halo de maquiavelismo sujo e diabólico.
Olhando para ele por cima do copo de uísque, via apenas um homem que estava prestes a mergulhar numa aventura louca, num erro crasso e irremediável.
Não estava mais preocupado em analisar o seu modo de pensar sobre virgindade e pureza no relacionamento homem e mulher...
Preocupava-me apenas com ele, com o amigo que desde a infância convivera comigo.
Assustava-me ao pensar que ele jamais teria estrutura para suportar uma traição assim.
Uma dupla traição, na realidade.
E...
Seria apenas Cristina que o estaria iludindo?
Não seria eu um cúmplice nesse crime?!
Sem perceber por onde andavam meus pensamentos, ele disse:
— Outro dia, falamos em você...
Voltei à Terra de chofre, sentindo o coração bater mais depressa.
Não podia passar por minha cabeça que Cristina aceitasse falar sobre mim e, ainda mais, com ele.
— Cristina acha que você, Sérgio — continuou meu amigo, sem se dar conta de quanto eu estava perturbado — deve ser mais experiente nessas coisas. Aliás, ela acha que você tem tudo para ser mais experiente do que a maioria dos nossos amigos... Por isso, e por ter sido sempre o meu amigo mais chegado...
Sorriu, sem jeito e, depois de refletir um pouco, de escolher bem as palavras que usaria, completou:
— Deveria me aconselhar... Deveria dizer como é que eu terei de me comportar quando chegar a hora.
Tive vontade de abrir um buraco no chão e sumir por ele até as profundezas do Inferno.
O que estaria pretendendo Cristina?
Qual seria o objetivo que ela queria alcançar?
Talvez ela estivesse com medo que o meu pobre amigo não soubesse nada vezes nada sobre essas coisas... Talvez ela quisesse que eu o ensinasse a lhe arrancar gemidos e sensações...
Gemidos e sensações que ela tivera comigo e que não estava conseguindo esquecer.
Tanto quanto eu, que não conseguia tirar da lembrança, aqueles dias.
Dominando o ódio e a surpresa, tentando levar aquilo tudo para o campo da pândega, murmurei:
— Ora, meu amigo! Você não é mais um rapazinho imberbe! Não é possível que você...
Ele me interrompeu, em tom de desespero:
— Mas você sabe muito bem que eu nunca estive com mulher nenhuma, Sérgio! Você me conhece e sabe que eu jamais mentiria sobre esse assunto!
Torcendo as mãos, nervoso e encabulado, falou:
— De mais a mais... Para quem é que eu posso perguntar sobre essas coisas? Não tenho pai, não tenho irmãos... Minha mãe, você a conhece e sabe que de nada valeria num assunto desses.
Olhou súplice para mim e finalizou:
— Só tenho você, Sérgio. O irmão que meus pais não me deram...
Respirei fundo, enchi mais uma vez os copos e comecei a engrolar qualquer coisa, uma seqüência de frases sem pé nem cabeça, incapaz que estava de poder raciocinar direito.
Sabia, apenas que eu não poderia, não conseguiria, lhe dizer que ele jamais precisaria de aulas sobre sexologia, pois casando-se com Cristina, estaria se unindo a uma verdadeira catedrática em assuntos de amor...
Tinha pena dele.
Na mesma proporção, odiava Cristina e a mim mesmo.
Segundo minha maneira de pensar, não tinha nenhuma importância o fato de ela ter tido um ou dez amantes antes de se casar.
Mas...
Ela ter escondido...
E o fato de o amante ter sido eu...
Isso fazia com que tudo mudasse de aspecto.
O uísque acabara e eu, automaticamente, levantei da poltrona para apanhar outra garrafa no armário.
Já ia servindo nova dose para nós dois, quando ele me impediu, dizendo:
— Não, não... Viemos conversar uma garrafa, e ela já acabou. Preciso voltar para casa, Cristina pode me procurar, pode estar precisando de alguma coisa, você sabe como o tempo fica curto às vésperas do casamento!
Eu ia dizer que não me era dado saber dessas coisas, já que nunca me casara e, diga-se de passagem, pelo que estava vendo, se até então o casamento sempre me parecera um evento muito longínquo, uma possibilidade extremamente remota, agora mesmo é que ele se me afigurava como impossível, como impraticável.
Uma autêntica loucura...!
Acompanhei-o até o elevador e, ao voltar, ainda ouvi o telefone tocando.
Apressei-me, corri...
Contudo, não cheguei a tempo de atendê-lo: quando ergui o fone do gancho, quem chamara já havia desistido, ouvi apenas o sinal de linha livre.
Sentei-me no sofá, peguei o copo...
Devolvi-o para cima da mesa logo em seguida, dizendo para mim mesmo:
— Chega... Por hoje, basta! Não vou beber mais!
E, com determinação, acrescentei:
— Tampouco vou me aborrecer mais!
O telefone tocou outra vez e, depois de alguns segundos de hesitação, resolvi atender.
— Alô — disse do outro lado da linha, a voz de Cristina, melodiosa e cristalina como sempre fora, fazendo vibrar todos os nervos de meu corpo.
Ela soubera que seu noivo saíra comigo, sabia que tínhamos ido à tabacaria e, como ele não aparecera e nem dera sinal de vida desde o meio da tarde, achou que poderia estar ali, em meu apartamento.
— Há alguns problemas com relação à decoração da igreja no dia do casamento — falou ela — Precisava muito falar com ele, mas... Como não está aí...
— Não, Cristina — interrompi — Ele já saiu. Há menos de cinco minutos e acho que você o encontrará em casa.
Foi muito difícil dizer aquelas palavras...
Tive de me esforçar ao máximo para não lhe falar, de imediato, uma porção de coisas que me estavam entaladas na garganta e que chegavam até a me dificultar a respiração.
Cristina ficou em silêncio por alguns instantes e, com voz pausada, como se tivesse ensaiado mil vezes o que deveria dizer, murmurou:
— É claro que você irá ao casamento, Sérgio... E à recepção... Gostaria muito de revê-lo.
Na verdade...
Era uma frase comum, de sentido comum, sem qualquer significado oculto, sem nada de especial.
Porém, dita naquele momento, ela soou ao meu ouvido como a mais descarada das provocações.
Não pude aguentar mais.
Disse para Cristina tudo quanto pensava, chamei-a de ordinária, de mentirosa, de mercenária e de mais uma porção de outras coisas verdadeiramente obscenas.
Lembrei-a de quanto nós dois, tempos atrás, tínhamos discutido a respeito da sinceridade num relacionamento.
— Você... — murmurei, a voz embargada pela raiva incontida — Dizer-se virgem! Mas só se for na orelha esquerda! Não tem o menor cabimento!
— Você não está pensando em mim, Sérgio — reclamou ela, a voz trêmula, na iminência do choro — Não está levando em consideração o meu lado!
— Pode ser, Cristina — repliquei — Mas você há de admitir que a sua atitude não está sendo correta. Aliás, é uma atitude que não merece, de maneira nenhuma, perdão!
— Não me interessa o seu perdão! — quase gritou ela, desligando o telefone com violência.
Ainda com os nervos à flor da pele, deixei-me cair sobre o sofá e enchi, generosamente, meu copo de uísque.
Agora sim, precisava de maneira desesperada daquela dose...
Sentia uma leve e desagradável dor de cabeça e meus pensamentos, desconexos, misturavam, em rápidas sucessões, as imagens dos dias felizes que eu tivera com Cristina e as catastróficas previsões do que seria o futuro de meu pobre amigo.
Em apenas um ponto, conseguia fixar minhas idéias: não iria àquele casamento, de jeito nenhum!
Fui arrancado desse torpor pelo toque da campainha, leve, breve, fugidio...
— Cristina — exclamei, estupefato, ao abrir a porta — Mas o que diabos está fazendo aqui?!
Vi que seus olhos estavam vermelhos, sua respiração ainda entrecortada pelos soluços de um choro convulso.
— Preciso falar com você! — disse ela, em tom de desespero — Você precisa me entender! Jamais ficarei em paz, imaginando que você pensa mal de mim!
Tomei-a pelo braço e a fiz entrar, de repente não mais a vendo como uma pessoa má e falsa, como a víbora que desenhara em meus pensamentos poucos minutos atrás, mas sim apenas como a Cristina, a mesma minha Cristina, doce, indefesa e frágil...
Levei-a até o sofá, ofereci-lhe um copo.
Sentindo o mundo inteiro girar vertiginosamente dentro de minha cabeça, sentei-me ao seu lado e, numa tentativa de me acalmar, acendi o cachimbo.
— Ah, esse cheiro! Como adoro esse cheiro! — exclamou Cristina, já soluçando.
Entre sacudir de ombros, soluços e lágrimas escorrendo, contou-me que, ao se perceber abandonada por mim, entrara em pânico e que, com a intenção de tentar restabelecer contato comigo, fora procurar meu amigo. Pensava usá-lo como intermediário, imaginava que ele talvez pudesse me influenciar e fazer-me voltar...
Porém, faltara-lhe coragem para concretizar o pedido naquela e nas muitas outras vezes que lá voltara, sempre jurando para si mesma que falaria de mim, que lhe pediria que fosse ao meu encontro.
Percebeu, de repente, que ele se apaixonara...
Daí, a substituição fora algo praticamente natural.
— Você continuou ausente — disse-me Cristina — Mesmo depois, quando soube que ele e eu estávamos para ficar noivos. Você não se manifestou... Muito pelo contrário, até parecia que estava muito feliz com o fato.
— Não é verdade — protestei em minha defesa — Simplesmente, achei que era algo tão absurdo, tão sem futuro, que nem sequer me preocupei.
Sorri, sem jeito, e acrescentei:
— Para ser sincero... Até achei graça.
Sem dar ouvidos ao meu aparte, ela prosseguiu:
— Você não me procurou... Para você tanto fazia se eu estivesse feliz ou não.
Ergueu os olhos para mim e pediu:
— Agora... Pelo amor de Deus... Não me julgue mal! Deixe-me tentar encontrar ao menos uma pequena parcela de paz e de felicidade!
Voltou a soluçar e disse:
— Você, especialmente você, não tem o direito de me impedir. Eu queria me casar com você. É a você que eu dediquei todo o meu amor, toda a minha vida. Mas você me desprezou... Me repudiou. Para você, na realidade, eu não passo de um livro já lido, talvez somente, de uma simples página de seu passado!
Com as lágrimas fazendo brilhar ainda mais seus olhos muito verdes, falou:
— E eu o amo, Sérgio! Oh, como eu o amo!
Escondeu o rosto entre as mãos e, nos espasmos do pranto, murmurou:
— Mas, agora é tarde... Muito tarde!
Sem pensar, sem raciocinar, arrebatado, eu a abracei.
Beijei seus cabelos, suas faces, seus olhos molhados, seus lábios trêmulos e sensuais que me diziam:
— Nunca deixei de amá-lo, Sérgio! Nunca!
Durante a noite, ela pediu várias vezes, a voz rouca e quente:
— Leve-me embora... Vamos para qualquer lugar, mas... Leve-me com você!
Não me recordo do momento em que ela se foi, não me lembro o que nos dissemos à despedida.
Sei, somente, que ela ainda chorava e que eu me sentia o último dos canalhas...
Logo pela manhã, escrevi uma longa carta para o meu amigo.
Contei-lhe tudo, pedi-lhe que entendesse o que acontecera, implorei para que pensasse bem antes de concretizar aquela união.
Disse-lhe que Cristina não era culpada, que tinha sido seduzida por mim, que no frigir dos ovos o único que deveria ser condenado, seria eu.
Ela, assustada, teria apenas cometido o erro de omitir, teria pecado em não lhe contar todo o ocorrido.
Eu era o culpado...
Eu, o falso amigo...
O mau irmão.
Mandei que um mensageiro de confiança entregasse a carta em suas mãos e...
Parti.
Parti para uma nova vida, ver novas gentes, tentar esquecer.
Talvez, tentar apenas sobreviver.
Isso, quinze anos atrás...
Q U A T R O
A passagem para a porta da loja estava livre naquele momento, ele se afastara para ver um isqueiro.
Se eu quisesse poderia facilmente ganhar a rua e desaparecer.
Porém, se conscientemente eu desejava fugir para o mais longe possível dali, inconscientemente, queria ficar.
E é sempre o subconsciente que dirige os atos de um homem.
Permaneci onde estava, os olhos fitos em suas costas, adivinhando os movimentos de suas mãos ao examinar o isqueiro.
— Pena que não seja piezoelétrico — falou ele.
— A melhor marca — disse a vendedora — Não quebra. Não gasta.
— Preferia que não tivesse de trocar pedras... Ou baterias... — insistiu ele — Seria mais moderno.
A mesma voz!
Os quinze anos que se passaram não trouxeram qualquer modificação à sua voz!
Ele olhou o isqueiro, acionou-o por duas ou três vezes, esperou que a vendedora o recarregasse com gás e, então, disse:
— Acho que vou levar este isqueiro... A menos que a senhorita tenha aí um outro objeto que possa ser um bom presente.
— Isto é justamente o que não nos falta — sorriu a moça.
E começou a lhe mostrar uma infinidade inesgotável de pequenas mercadorias, tirando-as uma a uma das gavetas do móvel que estava às suas costas.
— Continua o mesmo indeciso que sempre foi — pensei, com uma risada íntima.
Não desmentindo minha constatação, lá estava ele, segurando o isqueiro numa das mãos e, na outra, uma caneta metálica, dessas modernas, que só servem mesmo para se dar de presente, aquele tipo de caneta que, quando se ganha, diz-se Oh, que beleza! e, dois dias depois, ela vai parar no fundo de uma gaveta, esquecida e sem qualquer utilidade. Continuamos fiéis à velha Parker 51 ou, no caso dos mais práticos, à canetinha esferográfica de plástico.
— Não sei qual vale mais a pena — murmurou ele, como se estivesse num dilema terrível.
A vendedora tentou ajudar.
— Para quem é o presente? — indagou.
— É para um amigo... Padrinho do moleque...
Moleque?
Então... Ele tinha filhos! Pelo menos um filho!
Aliás, o que era muito natural, eu não tinha o menor direito de me espantar...
Casa-se, os filhos são uma consequência lógica e biológica.
Passou, rápido, por minha cabeça que, em alguns casos, eles mais podem ser considerados como acidentes biológicos...
E ele estava casado.
Podia ver muito bem a aliança em seu dedo anular da mão esquerda.
E era mais do que óbvio que ainda estaria casado com ela, conhecendo-o como eu o conhecia.
Fiquei imaginando o moleque a que ele se referia.
Lourinho, o rosto coberto de sardas, exatamente como era meu amigo quando ainda estávamos no curso primário.
Ouvi-o dizer que ia ficar com a caneta.
Como se fosse um alívio para mim mesmo, vê-lo tomar uma decisão e mandar empacotar o presente, respirei fundo e, distraidamente, apanhei meu cachimbo no bolso do paletó, e o acendi.
A porta aberta da loja deixava entrar uma leve aragem vinda da rua, que levou a fumaça da primeira baforada em sua direção.
Vi que ele se agitava, farejando o ar como um cão de caça.
— Esse cheiro! — exclamou — Conheço esse cheiro!
Voltou-se vivamente para o meu lado e quase gritou:
— Sérgio!
— Feijó!
Abraçou-me forte, fazendo estalar minhas costelas.
Havia tal entusiasmo em seus gestos que eu cheguei a me sentir embaraçado, todos os olhares convergindo para nós.
— Há quanto tempo!
— É verdade... Já lá vão quinze anos!
— Quinze anos! Como estamos velhos!
Quase se esqueceu do presente que mandara embrulhar e nem ao menos me perguntou se estava ali na loja para comprar alguma coisa, tão apressado se mostrou em levar-me para fora dali, para um café onde pudéssemos sentar e conversar.
Não parava de falar, querendo saber de minha vida, por onde andara, o que fizera...
— Casou-se? — perguntou-me.
— Não. Continuo solteiro, como sempre.
Pareceu-me ver um sorriso fugaz em seu rosto, pareceu-me, nesse instante, que seus olhos brilharam um pouco mais, por trás dos óculos de grossas lentes esverdeadas.
— Tenho lido seus livros — falou — E tenho gostado.
Em seguida, emendando uma frase à outra, sem nem ao menos me dar tempo de falar, contou que ficara muito triste por não ter conseguido me encontrar, nas duas vezes que estivera em Vitória.
— Você me conhece — murmurou — Não sou de escrever cartas e nem de telefonar... Por isso, fiquei aguardando uma notícia sua.
Olhou intensamente para mim e completou:
— Mas não sei que bicho o mordeu... Você simplesmente sumiu.
Senti o perigo se aproximando.
O assunto começava a beirar explicações que eu não tinha a menor intenção de dar.
Tentando mudar de conversa e ao mesmo tempo, procurando inconscientemente matar a minha curiosidade, perguntei:
— E a família? Como vai Cristina?
— Tudo bem! — exclamou — Cristina está maravilhosa, mais bonita do que nunca.
Fez uma breve pausa e disse:
— Teve um filho...
Tomou um gole de café, e continuou:
— Já está com quatorze anos...
— Quer dizer que já tem um moleque de quatorze anos? — perguntei, mais para dizer alguma, para não deixar que ele percebesse, em minha fisionomia, que o invejava profundamente.
Um filho de quatorze anos!
E com Cristina!
Certamente seria a maior realização, a maior de todas as felicidades...
Como ele permanecesse calado, indaguei:
— E quantos mais? Tem alguma menina?
— Não há mais — respondeu ele, com uma indisfarçável sombra de tristeza a lhe empanar o rosto.
Ficamos calados, um silêncio opressivo pairou sobre a mesa por alguns segundos.
Feijó suspirou, olhou para mim erguendo a cabeça e disse:
— É um rapagão... Um mocinho forte, os cabelos bem pretos, como os seus... Tem até seu nome: Sérgio.
Sorriu e arrematou:
— E veja só... Tem uma maldita tendência para a literatura!
Senti um aperto no peito.
De repente, uma terrível suspeita passou por minha mente e imaginei que Feijó estivesse brincando comigo...
Era impossível...
Literalmente impossível que...
Sacudi a cabeça tentando afastar de mim esses pensamentos, tentando dizer para mim mesmo que estava louco, que estava enganado, que tudo não passava de uma terrível coincidência.
Um filho de quatorze anos!
— Moreno como você — insistia ele, ao mesmo tempo em que tirava da carteira uma fotografia de um bebê gorducho e simpático...
— De fato... — riu ele — A fotografia não é das mais recentes...
Nem olhei direito para o retrato.
Minha alma se debatia em dúvidas, em angústias...
Moreno...
Ele e Cristina louros...
Quatorze anos...
Absolutamente louros...
Feijó acendeu um cigarro, guardou a fotografia.
— Mas, como?! — fiz, contente por ter uma desculpa para mudar de assunto — Não fuma mais cachimbo?
— Cristina não conseguiu se acostumar com os meus tabacos — respondeu — Em consideração a ela, que vivia reclamando, deixei de lado os velhos cachimbos.
Sem me dar tempo para pensar em coisa alguma, acrescentou:
— Amanhã, você jantará lá em casa. Cristina ficará muito mais feliz do que você poderia imaginar... É uma pena que Sérgio não esteja. Estuda na França...
Sorriu, dizendo:
— Em contrapartida, é uma sorte que ela esteja no Brasil. Fica a maior parte do tempo com ele, em Clermont-Ferrand. Agora, por exemplo, ela está aqui. Veio para resolver alguns negócios, assuntos relativos a seus quadros. E já deve voltar para a velha Gália na semana que vem.
Tendência para a literatura...
— Continuo em meu antigo apartamento, na Eduardo Prado — disse Feijó.
— Quem escolheu o nome do moleque? — perguntei, sem nem mesmo me dar conta de estar trilhando um caminho perigoso.
— Foi ela... E eu concordei, é claro.
Sérgio...
E fora Cristina quem escolhera o nome...
— Vou avisar Cristina que você estará conosco amanhã à noite — falou Feijó, pondo-se de pé.
Tentei me esquivar, fugir do compromisso, mas...
Não houve jeito.
Ele continuava o mesmo teimoso de antigamente.
— Só lamento que o moleque esteja na França.
Despediu-se de mim, deixando-me ainda atordoado com a seqüência vertiginosa dos acontecimentos.
Seria possível que ele não tivesse recebido a carta?
Feijó não tocara no assunto...
— Estão casados há quinze anos... — pensei — E o menino tem quatorze...
Saí para a rua sem rumo e sem destino.
— Um filho moreno, de quatorze anos...
Cheguei já bem tarde ao hotel, ainda pensativo.
Aquelas palavras pareciam martelar meu cérebro, impedindo-me de desviar a mente para qualquer outra coisa.
Subi para meu apartamento, tirei do armário minhas duas malas ainda intactas, telefonei para o aeroporto...
Em seguida, num lampejo de lucidez, telefonei para o endereço que Efigênia me dera, falei para a tal de Luzia estar no aeroporto de Cumbica na manhã seguinte, às sete horas.
— Não se atrase — disse — O avião não pode esperar.
Deixando o telefone pendurado em minha mão depois que a portuguesa desligara, murmurei:
— Tenho de pensar... Preciso raciocinar... Isso não pode ser real, estou vivendo um pesadelo!
Porém...
As evidências eram tão claras...
Será que havia, realmente, alguma necessidade de pensar?

— . —
No dia seguinte, à hora do almoço, eu estava em minha casa, na Ilha do Boi, olhando o mar muito verde e lembrando os olhos de Cristina.
Efigênia serviu-me uma bacalhoada digna de um rei e, enquanto a comia, podia ver através da janela, um cargueiro entrando no porto.
— Está boa, a bacalhoada? — perguntou-me ela.
— Claro — respondi — Suas bacalhoadas são as melhores do mundo! E espero que você ensine a Luzia a cozinhar tão bem assim...
— Pois foi ela mesma quem cozinhou — murmurou a boa velha — Está certo que eu lhe dei uma pequena mãozinha... Mas foi ela quem fez quase tudo.
Sorri.
Sabia que a portuguesa estava mentindo...
Luzia não fizera mais do que acender o forno, e olhe lá!
Olhando fixamente para mim, Efigênia disse:
— Não entendi por que o patrãozinho voltou tão cedo... Disse-me que passaria pelo menos quinze dias em São Paulo...
— Não havia mais o que fazer por lá — consegui balbuciar — Seria perder tempo.
A velha portuguesa passou carinhosamente a mão por meus cabelos e falou:
— Foi o coração, patrãozinho... Eu o conheço desde menino, Sérgio... E sei que o que o empurrou de volta para cá foi a mesma coisa que o trouxe de lá, há quinze anos atrás...
Obrigou-me a por no prato mais uma porção de bacalhau e completou:
— Vamos... Coma... Sei o quanto gosta de bacalhau. Deixe de lado os pensamentos tristes, Sérgio! E aproveite a comida, pois nunca se sabe o que é que pode ocorrer amanhã!
Não tive como contradizê-la...
De fato, se eu pudesse adivinhar o futuro, jamais teria aceitado aquele convite de Cristina para comer uma bacalhoada em sua casa.

— . —

O apartamento de Cristina, em Santa Cecília, era grande e muito bem decorado.
Em cada detalhe, no jeito de prender as cortinas, nos bibelôs e adornos, estava presente o gosto da artista e, acima de qualquer outra coisa, o espírito meigo e doce da moça.
Porém, nas pequenas antigüidades que Cristina espalhara pela casa, havia uma nota de nostalgia, de saudosismo e, talvez até de uma tristeza pura, esse tipo de tristeza que acaba se transformando num fantasma querido, um fantasma que, no fundo, não desejamos que vá embora.
— Moro aqui sozinha — explicou-me — Sou órfã. Vivia antes no Pacaembu, com duas tias solteironas e que se preocupavam unicamente em tutelar a herança que recebi quando da morte de meus pais. Consegui sair de lá quando completei dezoito anos e, desde então, ao menos tenho paz de espírito para poder trabalhar.
Fazendo-me acompanhá-la à cozinha, falou:
— Podemos continuar a conversar enquanto finalizo o almoço.
Sorrindo, acrescentou:
— Você disse que queria me conhecer melhor... E o caminho mais prático é saber um pouco de minha história.
Olhou para mim, os olhos muito verdes brilhando, e murmurou:
— Acho que ela é muito triste... Mas, para um escritor como você, deve ter alguma coisa de aproveitável.
— Pude ver que há uma certa tendência saudosista em sua decoração, Cristina — falei — E seus quadros, às vezes, têm um tom triste...
Sorri e juntei, apressado:
— Posso não entender nada de arte. Mas garanto que tenho sensibilidade suficiente para lhe sentir um pedaço da alma através desses pequenos detalhes!
Cristina sorriu e, enquanto ajeitava a salada, contou-me que era filha única, que antes de completar treze anos de idade, seu pai, um militar de alta patente, tinha sido transferido para uma unidade de fronteira, como castigo por ter se desentendido com o Ministério. Na ocasião, sua mãe, filha de uma família tradicional de São Paulo, dissera que um militar estava sempre sujeito a transferências, mas o mesmo não era obrigatório que se desse com a sua família. Assim, ela não quis acompanhar o marido, certa e ciente que, de um momento para o outro, a situação em que ele se encontrava teria um fim, e o marido voltaria para a civilização.
Ela estava certa.
A desavença com o Ministério terminou quando o ministro caiu e o pai de Cristina foi chamado de volta para São Paulo.
Feliz com o acontecimento, sua esposa fez questão de ir pessoalmente buscá-lo e, na volta, os dois morreram na queda do avião que os transportava.
Cristina se viu sozinha, dona de uma considerável fortuna que, por má orientação de seu pai, estava vinculada à tutela de suas duas irmãs mais velhas, mofadas e solteironas, ambiciosas e sovinas.
— Detesto-as — falou Cristina, com raiva — Preocupam-se só com o dinheiro, só se incomodam com elas mesmas e em amealhar a renda do meu dinheiro que, até meu casamento, deverá entrar para a conta bancária dessas duas megeras, dessas duas hárpias!
Com uma risada, concluiu:
— Assim, enquanto solteira, estarei nas mãos dessas duas...
Acabou de preparar a salada e, com a ajuda de dois panos grossos, tirou do forno uma bacalhoada que em absolutamente nada ficava a dever para as que a minha santa Efigênia sabia fazer.
Na realidade, até a achei mais saborosa, mais cheia de complementos...
— Está excelente! — exclamei, olhando para a travessa em que fora servida, uma travessa de cerâmica refratária, adequada para esse tipo de prato — Não perde de jeito nenhum para as que a minha velha portuguesa faz! Até mesmo a travessa em que ela foi servida é idêntica à lá de casa!
Cristina sorriu e, num relance, pareceu-me que ela ficara um pouco mais corada.
Serviu sorvete como sobremesa e um café delicioso, forte, com o sabor ligeiramente achocolatado.
— Como você consegue fazer um café tão gostoso? — perguntei.
— É muito simples — respondeu ela — Basta pôr uma colher de chá de chocolate amargo no coador. Para os fumantes de cachimbo, é o sabor ideal.
Acendi meu cachimbo e, ao soprar para o alto a primeira baforada, Cristina falou:
— Como cheira bem esse seu tabaco... Adoro esse aroma!
Depois do almoço, vimos seus quadros, seus desenhos, os esboços da primeira capa que ela deveria fazer para mim e diversos outros trabalhos, que ela chamava de menos sérios, pequenos quadros que ela vendia para pagar a gasolina do automóvel.
Deixei-a, simplesmente encantado.
Já a tarde ia pelo meio e eu estava atrasado para um encontro que marcara com o Feijó que me impusera uma visita à Feira de Biologia, no Instituto Butantã.
— Ver cobras não é o meu forte — disse para Cristina, ao me despedir — Preferiria mil vezes ficar aqui. Ficar com você...
Com um raio de esperança a iluminar a minha alma, indaguei:
— Não quer ir comigo?
— Sinto muito, Sérgio — respondeu-me ela — Também tenho um compromisso... Preciso estar lá às quatro horas.
Não pude evitar uma ponta de ciúmes.
Com quem ela teria um encontro?
Porém, ciente de não ter nenhum direito de sentir ciúmes de Cristina, despedi-me dela e parti rumo à Cidade Universitária.
Vi cobras de todos os tipos, escorpiões de todos os tamanhos e aranhas as mais assustadoras.
Tudo isso, entremeado por explicações complexas e um tanto quanto asquerosas de Feijó a respeito de soros e poções, de filtros e soluções, feitiçarias que, bem executadas, seriam capazes de curar os seres humanos fazendo uso do veneno desses nojentos animais.
Quando, finalmente, consegui me livrar daquele caldeirão de bruxas e voltar para casa, já passava de cinco horas da tarde e, pondo o carro na garagem, vislumbrei um vulto que se esgueirava pela porta de entrada.
Foi uma visão rápida, apenas uma ponta de saia, um pedaço de perna maravilhosamente bem torneada.
Mas...
Pareceu-me reconhecê-la.
Tive a sensação preocupante de que vira Cristina saindo de meu prédio.
Descendo para a garagem, murmurei
— Ora! E se for? Afinal de contas, não tenho o menor direito... E talvez ela fique embaraçada se eu lhe correr atrás.
Subindo para meu apartamento, senti no elevador um perfume que não me era nem um pouco desconhecido.
Sorri, fechei os olhos, aspirando fundo e lentamente, procurando aproveitar ao máximo aquele cheiro, o cheiro dela...
Entrei no apartamento e, de repente, estaquei.
Ali também havia o mesmo perfume.
Era Alliage, de Estée Lauder...
O mesmo perfume que Cristina estava usando quando almoçamos juntos, em sua casa.
E, então, como se uma luz de súbito iluminasse a minha mente, compreendi tudo.
Corri para a cozinha, inquiri Efigênia.
— Cristina? — fez ela — Não a conheço... Não esteve aqui ninguém!
Olhei para minha boa portuguesa que, de maneira muito suspeita, tinha ambas as mãos às costas, como se estivesse querendo esconder alguma coisa.
— Não adianta mentir, minha velha! — falei — Tenho bom olfato, sabia? Reconheci o perfume de Cristina, sei que ela esteve aqui!
E, com um sorriso maldoso, acrescentei:
— Aliás, desconfio que sei, também o que é que aquela diabinha veio fazer!
Num gesto rápido, abracei a minha portuguesa e tirei de suas mãos a travessa em que fora servida a bacalhoada.
A boa mulher riu.
— Não se pode esconder nada ao patrãozinho! — exclamou — E um homem que reconhece a mulher pelo cheiro... Isto já está a me parecer alguma coisa!
— Foi você! — ri eu, por minha vez — Foi você quem fez a bacalhoada! Bem que achei boa demais para ter saído do forno de alguém tão inexperiente quanto Cristina!
— Ora! — protestou Efigênia — Como pode dizer que ela é inexperiente?
— Eu a vi preparando a salada — respondi — E quem mal sabe cortar alfaces e escorrê-las, não pode saber fazer uma boa bacalhoada, não é verdade?
Efigênia não teve o que dizer e, servindo-me um café, explicou:
— A menina Cristina telefonou-me ontem à noite. Disse-me quem era e perguntou-me de que é que o patrãozinho mais gostava. Daí eu me ofereci para fazer a bacalhoada aqui em casa e ela veio buscá-la hoje pela manhã.
E, com uma risada, completou:
— Na verdade, eu insisti para fazer essa bacalhoada... Não estava querendo me arriscar! Não estou disposta a que uma sirigaita qualquer que tenha uma boa mão para o bacalhau, venha me desbancar!


C I N C O
As duas semanas que se seguiram à minha atabalhoada volta de São Paulo, foram das mais difíceis de minha vida.
É bem verdade que havia muito com que me preocupar, havia coisas demais para encher minha cabeça e o meu tempo.
Em primeiro lugar, aquela história do filho de Cristina.
Era mais do que evidente que o moleque era meu.
E era mais do que claro que ele tinha sido concebido naquela noite, na antevéspera do casamento de Feijó e Cristina, quando ela estivera em meu apartamento com a intenção de se justificar, de fazer-me compreender o que a levara àquele comportamento.
Quinze anos se passaram, desde então...
Eu já podia, não apenas entender e aceitar a atitude de Cristina, como podia também não me perdoar a covardia.
Fugira da arena e, não contente, escrevera aquela carta para o Feijó, simplesmente expondo uma faceta secreta da vida de sua mulher.
Mas...
Feijó não dissera uma só palavra a respeito da carta, não mencionara nada, não manifestara o menor problema em relação ao seu casamento.
Ao mesmo tempo, deixara claro que era feliz com Cristina e, o que era mais curioso, que ela teria ficado contente em me ver.
Depois...
Ele brincara comigo.
Falara a respeito do filho de Cristina.
Sim...
Falara sobre o filho de Cristina!
Em nenhum instante ele dissera que o moleque era dele!
Bem ao contrário, deixara muitas indiretas para que eu pudesse pensar que Sérgio — já por ser Sérgio — era fruto daquela noite de amor desvairado.
Fui arrancado de meus pensamentos pela voz de Efigênia que me dizia, com um tom de consternação:
— O patrãozinho não está bem... Mal está comendo... Uma comidinha como esta, que fiz com tanto carinho e que está tão boa... É uma pena! Um verdadeiro pecado! E parece tão distante! Parece que sua alma ainda está lá por São Paulo!
Suspirei.
— Talvez tenha razão, minha velha — falei — Mas isto passa... Dentro de dois ou três dias estarei novo em folha.
— Pois eu acho bom! — exclamou ela — Andei arrumando o escritório do patrãozinho e vi que há uma porção de trabalho a ser feito! E um homem precisa trabalhar, pois não? Se não trabalhar jamais há de encontrar uma mulher que o queira!
Sorri para ela e retruquei:
— Não estou procurando uma mulher que me queira, minha santa. A única que me apareceu pela frente, eu a desprezei.
A portuguesa ficou calada por um momento e, obrigando-me a aceitar mais um pouco de vinho, disse:
— Cristina não é a única mulher que existe no mundo, Sérgio... Há outras! E um homem como você não pode ficar sozinho o resto da vida! Precisa de alguém que o ajude, que o empurre para cima!
Muito lusitanamente, enxugou uma lágrima e completou, os lábios trêmulos, a voz embargada pela emoção:
— Eu já não sirvo mais, Sérgio... Estou velha... Cansada.
Respirou fundo e disse:
— O patrãozinho sabe muito bem que só estou aqui por que o quero como a um filho... Como ao filho que Deus me negou!
Conhecendo a minha portuguesa, eu sabia que era chegado o momento de mudar de assunto, de fazer com que ela risse e esquecesse o teor da conversa, pois se não o fizesse, em poucos minutos a minha santa Efigênia estaria enumerando uma enorme lista de sobrinhas e parentes em Portugal, todas belas moçoilas que seriam perfeitas para o seu doutor Sérgio...
— Não teve filhos por que não quis — falei — Como queria ter filhos se jamais se casou?!
Um sorriso substituiu imediatamente a expressão chorosa da velha, quando ela me perguntou:
— E quem é que disse que é preciso casar para se ter filhos? Desde quando é preciso casar para amar?
Eu ia responder inquirindo-a sobre os seus conceitos religiosos, sobre tudo quanto ela me ensinara quando, ainda pequeno, lhe fazia perguntas um bocado indiscretas sobre a origem da vida...
Mas, não tive tempo.
Justamente quando ia tomando fôlego para bombardeá-la com perguntas, o telefone tocou.
— Alô, Sérgio? — perguntou do lado de lá uma voz muito minha conhecida.
A mesma voz...
Melodiosa e cristalina como sempre fora...

— . —

Foi no sábado seguinte ao da bacalhoada em seu apartamento.
O telefone sobre a mesinha ao lado de minha escrivaninha tocou e, excitado, reconheci imediatamente a voz de Cristina.
— O que é que você faz num sábado de chuva como hoje? — perguntou-me ela.
Uma hora mais tarde, eu fui apanhá-la para ouvirmos um pouco de jazz na Rua da Consolação.
— E sua namorada? — indagou Cristina, metendo o braço na curva de meu cotovelo enquanto caminhávamos pela calçada, sob o mesmo guarda-chuva, a caminho da casa noturna Opus 2004, um dos melhores pontos de jazz da cidade.
— Não tenho namorada alguma — respondi — Acho que não fui feito para essas coisas.
Foi uma noite adorável.
Quando a levei de volta para casa, quando lhe dei dois beijos de despedida, castos e puros, em ambas as faces, senti vibrar em meu corpo cada uma das fibras não muito castas e muito menos puras que eu poderia ter.
No sábado seguinte, aniversário de um amigo, apresentei-a à minha roda.
— Uma amiga — dizia — Uma grande amiga... A ilustradora de meus livros.
Feijó, como seria de se esperar, estava nessa festa e, anunciando que no dia seguinte partiria para a Alemanha numa viagem de estudos, contradizendo a sua fama de tímido e recatado, sugeriu:
— Gostaria de levar a Cristina como minha assistente...
Ela sorriu e replicou:
— Infelizmente, não posso aceitar. Já estou comprometida com as capas para o Sérgio e, além disso, vai haver um congresso de escritores em Guarujá e eu estarei ao seu lado, fazendo o papel de secretária.
A risada foi geral.
Todos ali, no mínimo metidos a intelectuais, sabiam que não iria haver nenhum congresso de escritores, muito menos em Guarujá e, espertos, perceberam que Cristina tinha falado aquilo unicamente com a intenção de me provocar.
Ora...
Nunca fui mulherengo, muito embora, alguns meus amigos nipo-brasileiros, como o Sanenari e o Watanabe, insistissem em dizer que eu era o protótipo do sukebe, ou seja, um indivíduo que só vê rabos-de-saias pela frente.
Não...
Não sou um sukebe mas...
Uma oportunidade dessas não era para se desperdiçar e, com um sorriso que não escondia minhas enésimas intenções, repliquei:
— Creio que você fará bem o papel da melhor secretária do mundo. Mas, ainda terá que aprender a fazer bacalhoadas...
Naquela noite, ao se despedir de mim, ela não aceitou meu beijo.
Voltei para casa frustrado, arrependido por tê-la magoado com aquela frase idiota.
No dia seguinte, à primeira hora, passei numa floricultura e mandei entregar em sua casa duas dúzias de rosas vermelhas anexando ao buquê, uma carta em que eu lhe pedia perdão e implorava que me telefonasse, mostrando assim que havia posto uma pedra em cima do incidente.
Quando voltei para casa, no fim da tarde, encontrei Efigênia com um buquê de cravos vermelhos.
— A menina Cristina veio entregá-los — falou a portuguesa — E deixou uma carta sobre a sua escrivaninha.
Com o coração batendo fora do compasso normal, abri o envelope.
Era a carta que eu lhe enviara, rasgada em mil pedacinhos.
Junto, havia um bilhete que dizia:
NÃO HÁ O QUE PERDOAR.
O CRAVO BRIGOU COM A ROSA
E, ENTRE MORTOS E FERIDOS,
TODOS FORAM SALVOS.

Esqueci por completo as cem laudas que ainda precisava revisar naquela noite e, com a alma leve, corri para a casa de Cristina.
Mais tarde, no restaurante Sylvio's, na Avenida Angélica, eu lhe disse:
— Cristina, sou um homem um tanto quanto esquisito. Não me queira mal por eu ser assim. Durante todos estes anos, achei que amar é algo irreal, é o primeiro passo para a hipocrisia. Bem sei que, no fundo, é exatamente isso que eu digo sempre, em meus romances. Talvez tenha até acontecido uma espécie de vício profissional, mas enfim...
Sorri, sem jeito, e completei:
— Neste último romance que estou escrevendo, o que acontece entre os dois protagonistas é um típico caso de amor verdadeiro.
Segurei suas mãos e murmurei, sentindo o sangue subir-me ao rosto, o coração batendo muito rápido:
— É o amor que eu sinto por você, Cristina. E que, lamentavelmente, não estou sabendo manifestar...
Senti, nas mãos que eu segurava, que ela também estava trêmula e nervosa.
Quando parei de falar, vi que seus olhos estavam úmidos e curvei-me sobre a mesa para lhe dar um beijo.
Instintivamente, ela entreabriu os lábios para receber os meus e por um momento, um momento que teria de ser eterno, nós nos sentimos alma dentro da alma, um corpo só...
Havia algo em Cristina que me transtornava, que fazia minha cabeça girar e que me punha fora do natural.
Ainda não eram onze e meia da noite e Efigênia ainda deveria estar acordada em seu quarto, quando entrei com Cristina em meu apartamento, para a nossa primeira noite de amor.
— Eu o amo — falou ela mais tarde, ainda trêmula, o corpo nu colado ao meu — Eu o amo muito...
Beijou-me, impedindo-me de dizer qualquer coisa e acrescentou:
— Senti que precisava ser sua desde o primeiro momento em que o vi...
— Só minha, Cristina? — perguntei, fitando-a com intensidade — De nenhum outro?
— Não haverá nenhum outro — respondeu-me.
Senti que ela estava dizendo a verdade.
E sentia-me um autêntico canalha, pois tinha a certeza de não poder dizer o mesmo para ela uma vez que minha personalidade volúvel em relação às mulheres — donde talvez Sanenari e Watanabe tivessem tirado o qualificativo de sukebe — minha maneira de encarar o relacionamento entre o homem e a mulher, acabariam falando mais alto e, então...
Não seria somente ela.
Mas...
Eu estava enganado.
Nossos encontros começaram a se tornar cada vez mais frequentes, nosso amor progredia e a sua materialização, na cama ou onde quer que acontecesse, era a cada dia mais deliciosa, mais empolgante.
Depois de dois meses, percebi cheio de surpresa, que nenhuma outra mulher havia chamado minha atenção, que eu não sentira nem mesmo o mais remoto desejo de me encontrar com velhas amigas que, em horas mortas e vazias da noite, costumavam ser meu conforto momentâneo para a solidão.
— O patrãozinho está se deixando cair por essa tal de Cristina — disse-me Efigênia certa manhã, segurando um sutiã que ficara esquecido, talvez até propositadamente, em meu quarto — e isso vai acabar mal...
Foi nesse dia que senti, pela primeira vez, que meus alicerces de celibatário começavam a ceder.
À hora do almoço, meu editor ligou exultante, dizendo que finalmente tinha conseguido marcar um meu encontro com um certo historiador em Campinas, o único no Brasil que poderia me fornecer os dados de que estava precisando para elaborar a parte final de meu romance.
— Você terá de ir, Sérgio. Ele só pode dispor de uma hora por dia para você e concedeu-lhe quatro visitas. Serão apenas quatro dias e acho bom não esquecer que é um privilégio dos maiores poder falar com esse homem!
Ora...
A viagem para Campinas, as despesas pagas, o fato de poder conhecer aquele grande historiador... Isso sempre seria muito agradável para mim.
Mas, naquele momento de minha vida, com Cristina no circuito...
Suspirei.
— Está certo — admiti, a contragosto — Eu irei.
— Você vai se esquecer de mim — gemeu Cristina, chorosa, quando lhe comuniquei o afastamento.
Olhei para ela..
Afinal...
Não havia a menor necessidade de nos separarmos.
— Não vou esquecer coisa nenhuma, querida... Mesmo porque, você irá comigo.
Um sorriso iluminou o rosto de Cristina e ela disse:
— Estava pensando em lhe pedir isso... Mas fiquei com medo... De repente, você poderia estar indo viajar justamente para se afastar de mim, para se encontrar com a outra...
— Não seja tola — falei — Você sabe muito bem que não há outra.
E, com surpreendente decisão, acrescentei:
— Não há e nem poderá haver outra, Cristina!
Estávamos em casa e, no momento em que eu lhe disse essa frase, o telefone tocou.
— Sérgio? — perguntou a voz de meu editor.
— E quem você queria que fosse? Dostoievski?
Ele riu e falou:
— Já reservei uma suite para você no Campinas Palace Hotel. E já avisei que você irá acompanhado.
— ...!
— Diga para a Cristina levar o material de desenho. Ela está com pelo menos duas capas em atraso e preciso mandar os livros com urgência para a gráfica...

— . —

Olhei para o telefone, maravilhado.
Tornei a encostá-lo no ouvido, e ela repetiu:
— Sérgio? Está me escutando?
Era Cristina!
A mesma voz, depois de quinze anos!
Instintivamente, o coração passando adiante de meu cérebro, os sentimentos sobrepujando qualquer raciocínio, exclamei:
— Cristina! Que delícia ouvir sua voz! Há quinze anos não tenho desejado outra coisa!
Houve um silêncio do outro lado da linha e receoso, imaginando até que estivesse tendo um sonho, perguntei:
— Cristina...? Está aí, Cristina?
— Sim — disse ela — Mas não parece que você tenha sentido tanta falta de me escutar, Sérgio... Recusou o convite de Feijó... E não nos encontrou!
Não tive como responder, e ela prosseguiu, a voz um pouco trêmula, insegura:
— Mas não estou ligando por causa disso. Na verdade, tenho péssimas notícias para você...
Meu coração falhou por duas vezes e ela disse:
— Feijó morreu... Foi assassinado cruelmente no elevador do prédio. Segundo a polícia, foi um assalto. Deixou algumas coisas para você e eu gostaria de entregá-las pessoalmente.
Tentei dizer algo, tentei manifestar alguma coisa, mas o choque tinha sido tão grande que não consegui articular uma só palavra.
Num suspiro, Cristina disse:
— Estarei em Vitória hoje, perto de cinco horas da tarde. Não sei o seu endereço, tenho apenas o telefone. Se puder estar no aeroporto, seria um favor.
— Estarei, Cristina — gaguejei — É claro que estarei...
Ela desligou o telefone e eu, lentamente, escorreguei até o chão, sentando-me no piso frio de mármore...
— Feijó, assassinado... — murmurei — Mas isso não é possível... Não é possível, meu Deus do Céu!



S E G U N D A P A R T E
U M
Vi Cristina avançar pelo saguão do aeroporto e não pude deixar de sentir um terrível desejo, um desejo incontrolável de correr para ela, de abraçá-la, de beijá-la.
Segurei-a em meus braços, apertei-a contra mim tentando falar alguma coisa, a voz se negando a sair de minha garganta, os soluços já começando a me trair.
Dominei-me a custo e, afastando-me um pouco de Cristina, balbuciei:
— Você está ainda mais bela, Cristina... Todos esses anos só fizeram bem a você!
— Não para o meu espírito — murmurou — E, principalmente nestes últimos dias...
Fui apanhar suas malas e, a caminho do estacionamento, ela disse:
— Pensei que você tivesse tomado conhecimento... Foi dez dias depois que você não apareceu para o jantar...
Triste, sorriu e acrescentou:
— Eu tinha feito uma bacalhoada... Teria sido um bom teste, pois desta vez, não havia a Efigênia para me socorrer.
— Não fiquei sabendo de nada, Cristina... É uma tragédia! Algo em que ainda não consegui acreditar! Feijó, assassinado!
Balancei a cabeça, desconcertado e acrescentei:
— Pensa-se sempre, que esse tipo de coisa só pode acontecer para os outros, para aqueles que, de uma maneira ou de outra, costumam conviver com a violência ou, no mínimo, com a possibilidade de violência!
Cristina suspirou e eu repeti:
— Não consigo acreditar... Não consigo admitir que isso realmente tenha acontecido!
— Pois convença-se, Sérgio — falou Cristina, entrando em meu automóvel — Ele está morto. E eu estou, oficialmente, viúva.
Já tinha deixado o parque de estacionamento quando aquela frase conseguiu entrar em minha cabeça e ser compreendida por meu cérebro.
— Oficialmente? — perguntei — O que está querendo dizer com isso?
Cristina olhou para mim com intensidade e murmurou:
— Depois eu comentarei... É um assunto que só deverá ser abordado depois que nós estivermos calmos e em sua casa.
Com uma indisfarçável ansiedade, acrescentou:
— Naquele dia em que você deveria ir jantar conosco, Feijó comentou que você continuava solteiro...
— E continuo — falei.
Cristina ficou em silêncio por alguns segundos e, hesitante, indagou:
— Mas... Não há ninguém?
Antes que eu pudesse responder, explicou:
— Quero dizer... Não há ninguém em sua vida? Não houve?
Com um sorriso encabulado, continuou:
— Afinal de contas... Um homem como você... Quinze anos...
Balancei negativamente a cabeça e respondi:
— Não houve ninguém, Cristina. Ninguém que tivesse valido a pena, ninguém que tivesse sido capaz de...
Ela me interrompeu, apressada, mudando de assunto:
— Há pouco você me disse que a violência é esperada para as pessoas que convivem com ela. Se isso for verdade... Acho que a morte de Feijó também serve para confirmar a sua teoria.
— Feijó estava metido com maus elementos? — perguntei, sem conseguir esconder a surpresa — Isso, por exemplo, é bem difícil de acreditar!
Olhando para ela intrigado, completei:
— Se bem me lembro, Feijó tinha poucos amigos e não era nem um pouquinho sociável. Daí a ele ter estabelecido relações com pessoas de personalidade duvidosa...
Depois de refletir um pouco, Cristina disse:
— Ele deixou um envelope. Um envelope que foi entregue ao seu advogado, o Jorge. Aliás, foi o próprio Jorge que me deu o seu telefone, Sérgio.
— Estranho o Jorge não me ter ligado — ponderei, um pouco desconfiado.
— Pedi-lhe que não o fizesse — falou Cristina — Eu estava com medo de que você, ao saber que eu o procuraria, desaparecesse outra vez. Preferi a surpresa e, pelo visto, funcionou.
Respirei fundo.
Era bem feito, para mim.
Nada era mais justo do que a desconfiança de Cristina.
Eu dera motivos, todos os motivos!
Estávamos chegando à entrada da Ilha do Boi e ela, com um sorriso, comentou:
— Você escolheu um belo lugar para se esconder!
— Para me esconder de mim mesmo, Cristina — corrigi — Para fugir de meus remorsos e de meus fantasmas.
Ela pousou a mão esquerda sobre minha coxa, da mesma maneira que fazia tantos anos atrás, quando saíamos de carro.
— Acho que fiz bem em vir, Sérgio... Muita coisa será falada, muita coisa será explicada... E talvez alguns desses fantasmas possam, enfim, desaparecer.
Enquanto eu estacionava diante do portão da garagem, ela juntou:
— Durante estes quinze anos, eu aprendi a conviver com um fardo muito pesado. Talvez ainda mais pesado do que o seu. Assim, tenho esperanças que, agora que o Feijó não existe mais, nós dois possamos nos ajudar mutuamente.
Entrando à minha frente pelo portão, murmurou:
— Mesmo que seja apenas voltando a fazer as capas de seus livros!

— . —

Enquanto esperávamos o jantar na varanda de casa, olhando o mar e o fim do dia, acendi o meu cachimbo.
Logo à primeira baforada, Cristina falou:
— Ah, esse cheiro... Como eu adoro esse cheiro!
Olhando para mim, disse:
— Você não faz idéia de como eu tive saudades desse aroma, do seu aroma!
— Você não esqueceu... — murmurei — E eu também tive saudades de ouvi-la dizer isso...
— Há tanto o que falar, Sérgio... O difícil está em começar!
Sorriu, levantou-se e, debruçando-se na balaustrada da varanda, falou:
— Esperei tanto por este momento! Ensaiei mais de mil vezes o que iria dizer para você. E agora, que o tenho ao meu alcance... Não consigo falar nada, parece que perdi completamente a coragem!
Permaneci em silêncio e Cristina, num sopro, disse:
— Tenho de resolver os assuntos que me trouxeram aqui o mais depressa possível. Preciso voltar para a França.
— Vai ver seu filho? — perguntei.
— Nosso filho — corrigiu ela — Imagino que a esta altura dos acontecimentos você já tenha certeza... E foi essa a principal razão de não ter aparecido para aquele jantar.
— Feijó falou quase que claramente — balbuciei — Não entendi...
Ela ficou calada quase um minuto, olhando um navio que entrava no porto, uma verdadeira cidade flutuante, cheio de luzes.
— Pobre Feijó... — murmurou — Ele não merecia morrer dessa maneira!
Efigênia veio chamar para o jantar e, já à mesa, Cristina perguntou:
— Ficou nervoso quando soube que tinha um filho?
— Surpreso — respondi — E estava aqui pensando em como fazer para conhecê-lo pessoalmente, em como fazer para vê-lo sem que isso pudesse trazer qualquer transtorno ou constrangimento para vocês.
Cristina riu e eu perguntei:
— Sabe da carta?
— Carta? — fez ela, com expressão de curiosidade — Que carta?
— Uma carta que o Feijó recebeu pouco antes do casamento.
Ela franziu as sobrancelhas, pensou um pouco e depois respondeu:
— Não... Não sei de nada... Que importância ela tem, em tudo isso?
Entrei em pânico.
Se Feijó nada dissera a respeito dessa carta, a maldita carta que eu escrevera quinze anos atrás, certamente tivera seus motivos. E, se eu falasse sobre isso para Cristina, poderia estar estragando, de um instante para o outro, tudo o que estava acontecendo de belo naquele dia.
Fui salvo pela minha Santa Efigênia que, naquele momento, trouxe para a mesa o belíssimo frango assado que tinha feito.
Aproveitando a oportunidade de, mais uma vez, mudar o assunto, perguntei:
— O que é que aconteceu desde o seu casamento? Quando encontrei o Feijó, lá em São Paulo, ele me pareceu um pouco triste... Não me deu a impressão de estar cem por cento feliz, muito pelo contrário, pareceu-me que se esforçava ao máximo para representar o papel do homem plenamente realizado.
— Em primeiro lugar — respondeu Cristina, prontamente — acho que ele estava preocupado com alguns negócios e assuntos que o estavam deixando muito tenso. Em segundo lugar...
Baixando os olhos para o frango que eu pusera em seu prato, ela falou:
— Acho que ele não poderia mesmo estar feliz.
Tomou fôlego e explicou:
— Achamos estranho... Melhor dizendo, Feijó achou estranho e eu fingi concordar com ele, você não ter ido ao nosso casamento. Porém, como não havia tempo e nem por quê procurá-lo, saímos para a viagem de núpcias na hora prevista. Eu já me havia preparado psicologicamente para contar a verdade para o Feijó já que, forçosamente, ele iria descobrir que eu não era mais virgem. Porém, no momento crucial, as coisas aconteceram...
Voltou o rosto para mim, os lindos olhos verdes muito brilhantes, e contou:
— Ele era impotente. Absolutamente impotente. Não conseguiu fazer nada, só conseguiu ficar muito nervoso e frustrado. Procurei consolá-lo, dizendo-lhe que não ficasse assim, pois era até esperado que na primeira noite, devido ao cansaço e ao nervosismo, as coisas não funcionassem muito bem. Mas ele, então, me confessou que jamais conseguiria. Disse que desconfiava havia muito tempo ser assim, uma vez que jamais se excitara com mulher alguma e nem mesmo sozinho. Contou-me que ainda tinha uma esperança de poder se tornar normal se estivesse casado. Achava que, por causa de seus princípios morais, só viesse a sentir alguma atração física pela mulher que fosse sua esposa legítima. Mas... Nem assim.
Aceitou um pouco de vinho e prosseguiu:
— Feijó desistiu da lua-de-mel e voltamos para São Paulo. Assim que chegamos em casa, ele falou que eu tinha total liberdade para providenciar a anulação do casamento, pois ele não a contestaria.
Cristina sorriu, cheia de tristeza e murmurou:
— Sinceramente, cheguei a pensar nisso. Mas eu não teria condições de provar que ele não conseguira me deflorar e, naquela época, eu pensava que, para anular o casamento, teria que haver provas da não realização da conjunção carnal, como dizem os advogados. Por mera covardia, preferi ficar quieta, assim como preferi, talvez até para não piorar a situação do pobre Feijó, não lhe contar nada a nosso respeito.
Pegou mais um pedaço de frango e falou:
— Feijó passou a dormir no quarto vizinho ao escritório. Já nessa noite e na manhã seguinte, ele se trancou para ler e responder a correspondência que, segundo ele, estava atrasada havia mais de dez dias.
Servi-lhe mais um pouco de batatas fritas e Cristina continuou:
— Foi um mês depois que a situação começou a ficar terrível. Foi quando percebi que estava grávida. Era mais do que evidente que o filho era seu, pois com o Feijó nada acontecera e, é claro, eu não estivera com nenhum outro homem desde que conheci um certo Sérgio, escritor...
Sorriu e disse:
— Eu fiquei apavorada, mas ao mesmo tempo, não cabia em mim de tanta felicidade. Queria seu filho e não abortaria por nada no mundo! Seria preciso abandonar tudo? Eu abandonaria! Decidi que falaria com o Feijó e enfrentaria o problema. Assim, fiz minhas malas, arrumei todas as minhas coisas e fiquei esperando que ele chegasse da Universidade.
Havia um brilho úmido em seus olhos quando ela disse:
— Ele voltou tarde, naquele dia. Viu minhas bagagens prontas e simplesmente falou que não havia a menor necessidade de eu ir embora. Ele sairia, se assim eu quisesse. Contei-lhe, então que isso não tinha cabimento, que eu não era digna de toda aquela consideração, pois estava grávida...
Cristina respirou fundo e prosseguiu:
— Achei que ele teria uma reação violenta e estava até mesmo preparada para isso. No fundo, creio que ele tinha todo o direito de ficar furioso, de gritar comigo, até mesmo de me bater. Mas isso não aconteceu. Ele sorriu e murmurou: Só espero que seja de Sérgio. Confirmei, começando a sentir novamente confiança e esperança no futuro. Ele, então, disse: Cristina, você não é minha esposa. Nunca foi e nunca será. Eu sempre soube que seu corpo e sua alma eram de Sérgio. Não se incomode. Você não irá embora coisa nenhuma e terá seu filho aqui, com todo o apoio que eu puder lhe dar. Nunca perca a esperança de reencontrar o Sérgio, pois quando isso acontecer, ele há de ouvir umas boas verdades de mim!
Cristina sorriu e falou:
— É claro que eu aceitei. Se já vivíamos bem, embora separadamente, não iria haver qualquer diferença. Na verdade, o que aconteceu, foi que nós passamos a nos entender muito melhor. Havia uma relação de amizade fraterna entre nós dois que se aprofundou ainda mais. Não éramos marido e mulher, éramos, isso sim, dois bons amigos, ele sempre muito compreensivo e eu muito frágil, necessitando sempre de seu braço para me amparar e de seu ombro para me consolar quando a desesperança começava a me assaltar.
Fixando-me com intensidade, ela completou:
— Feijó era dono de uma alma do tamanho do mundo. Creio que, mesmo que eu venha a viver duzentos anos, jamais terei tempo suficiente para agradecer-lhe, estando ele nesta ou em outra vida, tudo o que fez por mim e por Serginho!
Com meiguice, falou:
— Quando Serginho nasceu, ele se propôs a assumir a paternidade, se eu o quisesse. Mas eu não deixei. Tinha a esperança de que um dia, você haveria de aparecer e, assim, consegui registrar meu filho como se não tivesse pai e eu... como se fosse uma mãe solteira. No fundo, duas verdades extremamente dolorosas.
Senti que o sangue subia às minhas faces e, sem jeito, balbuciei:
— Quanto à paternidade, Cristina... É algo mais do que óbvio. Vou assumi-la o quanto antes... Já quanto ao fato de você ser solteira... Ou viúva...
Ela ergueu os olhos do prato e murmurou:
— Diga, Sérgio...! Pelo amor de Deus, diga a frase que eu esperei quase vinte anos para ouvir...!
Sorri para ela e concluí:
— Eu quero me casar com você, Cristina. De qualquer maneira! Demorei todo esse tempo para entender que não haveria jamais uma possibilidade de vida sem a sua presença ao meu lado. E, agora que o sei, e que a oportunidade existe... Não vou desperdiçá-la. Isso, de jeito nenhum!
Segurando suas mãos por sobre a mesa, acrescentei:
— Evidentemente... Se você me perdoar e aceitar ser a minha esposa... E se for possível esquecermos que ambos perdemos tantos anos de felicidade que poderíamos ter aproveitado.
— Eu não teria vindo até aqui se não tivesse a esperança de poder ficar para sempre, Sérgio — murmurou Cristina, levantando-se e vindo sentar sobre meus joelhos, da mesma maneira que ela fazia tantos anos atrás.

— . —

Depois do jantar, novamente na varanda, Cristina disse:
— Gostaria que você visse o que o Feijó deixou para você.
Apanhando um grosso envelope pardo, ela falou:
— Não o abri. E Jorge, que foi quem primeiro recebeu este pacote, também não quis ver o que há aí dentro. Achamos que seria indiscrição e indelicadeza de nossa parte.
Cheio de curiosidade, abri o envelope.
Havia uma porção de documentos em seu interior e duas cartas.
Apanhei a que estava por cima e ela dizia:
Caro Sérgio,
Sei muito bem que, se alguma coisa me acontecer nos próximos dias ou semanas, o Jorge encontrará uma maneira de localizá-lo. Anexo aqui, uma procuração para você poder retirar de meu cofre, no Banco de Boston, uma pasta contendo valores e documentos. Deverão, naturalmente, ficar para Cristina e é o mínimo que eu poderia fazer por ela. Sei que você cuidará para que essa minha intenção se realize.
Anexo, também a este pacote, uma carta antiga, uma carta que você escreveu para mim e que só chegou às minhas mãos depois que eu voltei de minha malfadada lua-de-mel.
Creio que você, quando estiver lendo estas linhas, já terá escutado de Cristina, a história toda, a verdade sobre o nosso relacionamento.
Veja bem que não o culpo de nada. Muito pelo contrário, desejo de todo o coração que tenha uma vida feliz ao lado de Cristina e de seu filho. Talvez você esteja achando engraçado eu escrever tudo isso como se fosse uma carta de despedida. Mas a verdade é que nos últimos dias, tenho tido a impressão de que minha vida está por um fio e, como não tenho a menor condição de evitar que uma desgraça venha a me atingir, achei que pelo menos seria minha obrigação deixar Cristina perfeitamente garantida e amparada e, o que é mais importante, em suas mãos.
Aliás, que jamais deveriam tê-la deixado escapar...
Meus trabalhos no campo da Biologia e algumas experiências que tenho realizado com produtos químicos utilizados em fitocidas para a agricultura e desmatamento seletivo, provocaram uma reação bastante agressiva por parte de alguns homens que, exatamente por serem os maiores usuários desses produtos, não têm nenhum interesse em vê-los proibidos. Recebi várias ameaças por telefone e ontem, quando estava indo para a Universidade, meu carro foi fechado por um caminhão sem nenhum motivo. Tive sorte e consegui escapar sem que o acidente tivesse acontecido, mas... Essa sorte pode não se repetir.
É claro que posso estar apenas impressionado e nada do que estou escrevendo tenha fundamento.
De qualquer maneira, já tinha tomado a decisão de obrigar o Jorge a me dizer onde encontrá-lo e levar-lhe Cristina.
Não tem mais cabimento ela ficar se sacrificando, perdendo a vida e a juventude, unicamente para não correr o risco de ouvir uma negativa de sua boca. Sei que diante de mim, você não teria coragem de repudiá-la, mesmo porque eu sei muito bem quanto os dois se amam.
Seja feliz. Seja feliz com Cristina e seu filho.

Feijó

Apanhei a outra carta, aquela que eu escrevera quinze anos atrás e que estava toda vincada, mostrando que tinha sido amassada com raiva e depois, desamassada cuidadosamente antes de ser guardada.
Rasguei-a em mil pedacinhos e, disfarçando o melhor que podia as lágrimas, debrucei-me no parapeito da varanda e deixei que o vento capixaba espalhasse os fragmentos de papel.
Cristina, discreta, aproximou-se de onde eu estava e, vendo o papel picado que esvoaçava como borboletas ao luar, murmurou:
— Talvez esse seja o último elo com o passado, Sérgio. Para nós dois, há uma vida nova pela frente...
Balancei a cabeça afirmativamente e, tomando-a em meus braços, falei:
— Para nós três, querida. Há o nosso filho, lá na França.
Beijamo-nos.
Um beijo cheio de volúpia, de desejo, desejo reprimido por quinze longos anos, volúpia carregada de arrependimentos e de remorsos...
No porto, um navio apitou, um rebocador respondeu com dois silvos longos e plangentes.
— Temos algo muito importante para fazer, querida — disse.
— Imagino o que seja — murmurou ela, a voz quente, cheia daquela sedução que sempre soubera usar tão bem — Depois de quinze anos...
Ri, beijei-a com ardor e falei:
— Isso também, meu amor... Mas estou me referindo a outra coisa.
Cristina franziu as sobrancelhas e eu expliquei:
— Temos de descobrir o assassino de Feijó. Não engulo isso que você me contou a respeito do que a polícia anda dizendo, que foi um simples assalto. Depois de ler a carta que ele me escreveu...
Com determinação, acrescentei:
— Vamos descobrir quem o matou e por quê. Mesmo que a polícia e a política não queiram, nós vamos esclarecer essa história! Não tem importância não haver pistas, por enquanto. Nós as encontraremos!
Cristina sorriu, voltou a me beijar e, colando muito o corpo ao meu, fazendo-me sentir cada uma de suas curvas, fazendo-me perceber que ela fremia em meus braços, disse:
— Concordo, Sérgio... É o mínimo que podemos fazer por ele, por sua memória, em agradecimento a tudo quanto ele se sacrificou por mim e por Serginho...
Puxando-me pela mão para dentro de casa, ela falou:
— Mas antes... Antes há algo que há quinze anos vem sendo uma verdadeira obsessão para mim... E que, se não fizer agora, acho que serei capaz de morrer!
D O I S
O dia já ia alto quando acordamos, ainda abraçados, o sol entrando pelas janelas abertas de meu quarto, o cheiro da maresia muito acentuado.
Cristina olhou para mim e murmurou:
— Já não tinha mais esperanças de viver este momento... Já estava conformada com a vida de freira...
Pousando delicadamente os lábios sobre os meus, ela falou:
— Há algo que eu não contei ontem... Não quis deixá-lo preocupado e, por isso, preferi deixar para hoje.
Franzi as sobrancelhas, ergui-me sobre os cotovelos e, fitando Cristina, disse:
— Pois fez mal. Agora, não só me deixa ainda mais preocupado, como também com ciúmes...
Ela riu e explicou:
— Não se trata de nada que possa despertar os seus ciúmes, querido. Quanto a isso, pode ficar sossegado. Já lhe disse que estava vivendo como uma freira e acho bom que acredite, pois jamais terei como provar isso!
Ficando subitamente séria, ela continuou:
— Desde a morte de Feijó, eu não tenho ficado em casa. Na verdade, fiquei no apartamento apenas três dias e, depois, mudei-me às escondidas para meu antigo estúdio.
Abaixando a voz, como se receasse que alguém mais, além de mim, a pudesse escutar, completou:
— Fiquei com medo, Sérgio. Com muito medo!
— Medo de assombrações? — brinquei, embora estivesse nervoso e preocupado.
— Não — respondeu Cristina — Medo de bandidos. De bandidos de verdade, provavelmente os mesmos que mataram o pobre Feijó e que, não satisfeitos, pareciam estar tramando algo contra mim!
Fazendo-me um sinal para que não a interrompesse, falou:
— Recebi dois telefonemas. No primeiro, alguém me perguntava sobre o último trabalho de Feijó, onde é que ele costumava deixá-lo. No segundo, um homem me ofereceu nada menos que um milhão de dólares pela pasta com todos os papéis referentes aos seus estudos sobre desfolhantes e fitocidas. E, quando eu disse a esse senhor que não poderia entregar coisa alguma, pois em primeiro lugar, não tinha a menor idéia de onde é que esses papéis poderiam se encontrar, ele ficou muito bravo e falou que seria muito bom para a minha saúde eu tratar de achá-los.
Sorriu, nervosa, e disse:
— Foi depois desse telefonema que eu me mudei para o estúdio. Imaginei que ninguém soubesse de sua existência e assim, lá eu estaria mais segura. Pouco depois, o Jorge me procurou falando a respeito desse envelope que eu lhe trouxe. Eu queria vir imediatamente para cá, mas ele me desaconselhou, achando que era melhor falar com a Polícia primeiro. Achou que deveria falar com as autoridades a respeito desses dois telefonemas e, no mínimo, mostrar que eu nada tenho a ver com qualquer plano que tenha redundado na morte de Feijó.
— E o que disse a Polícia? — perguntei.
— Nada... Ninguém falou absolutamente nada e, três dias antes de vir para cá, ainda não se tinha tomado a menor providência no sentido de se iniciar uma investigação mais cuidadosa sobre seu assassinato.
Fiquei calado por alguns momentos e, levantando-me, falei:
— Bem... Acho que devemos começar imediatamente, Cristina. E pode acreditar que eu não vou me deixar intimidar por pouca coisa!
Entrando no banheiro, acrescentei:
— Creio que o primeiro passo será fazer uma viagem a São Paulo...
Meti a cara pelo vão da porta e disse:
— Sozinho...
— Sozinho?! — protestou ela — Por acaso está me excluindo de seu programa?!
— Sim — respondi — Já telefonaram para você, você mesma já disse que teve medo a ponto de deixar o apartamento da Eduardo Prado para voltar ao seu estúdio. Não há por que passar por mais ansiedades e angústias. Você ficará aqui, em perfeita segurança e eu irei para São Paulo iniciar as investigações e pesquisas.
— Mas — objetou Cristina — Se há, realmente algum perigo, não faz o menor sentido eu não estar ao seu lado!
— Errado — falei — O que não faz sentido é você estar ao meu lado! Isso me obrigará a me preocupar com a sua segurança e poderá ser mais perigoso para mim do que se eu estiver completamente só.
Vendo a expressão desanimada que ela fazia, acrescentei:
— Admita que será muito mais fácil tomar conta apenas de mim mesmo do que de mim e de você! E ao mesmo tempo!
Abrindo as torneiras do chuveiro, finalizei:
— Não tenha medo, Cristina... Não vou abandoná-la. Pode ter certeza que eu jamais cometeria o mesmo erro duas vezes!

— . —

Passamos a manhã estudando todos os papéis que Feijó deixara no envelope para mim.
Havia ali várias ações de companhias prósperas, certificados de polpudos depósitos bancários já em nome de Cristina, escrituras de terrenos que ele adquirira, também em nome de Cristina e Serginho.
Enfim, era um patrimônio respeitável, suficiente para deixá-la bem de vida e despreocupada, como se ela, por ela mesma, já não fosse bastante rica.
— Pelo visto — brinquei — Feijó não tinha a menor confiança em mim. Talvez ele achasse que eu iria fugir novamente e deixá-la a ver navios. Assim, tratou de fazer as coisas de uma maneira que você ficasse absolutamente tranqüila do ponto de vista material...
Muito séria, Cristina murmurou:
— Acho que ele tinha as suas razões, não é mesmo, Sérgio?
Sem dúvida nenhuma...
Não tive o que responder ou replicar e, procurando disfarçar o melhor possível o mal estar causado pelo comentário de Cristina, passei para a outra parte do conteúdo do envelope.
Era um calhamaço de papéis em formulário contínuo de computador e dois disquetes.
— Acho que é justamente isso que causou a morte de Feijó — comentei — Isto está me parecendo ser nada mais e nada menos que o resultado de suas pesquisas ou, no mínimo, uma grande parte do trabalho já realizado.
Folheei rapidamente aquilo tudo — verdadeiro grego arcaico para mim — e, voltando-me para Cristina, indaguei:
— Você não se lembra de algum comentário de Feijó a respeito de ele estar com medo ou pelo menos angustiado com alguma coisa?
Cristina ergueu os ombros como quem pede desculpas e respondeu:
— Até acho que ele comentou alguma coisa. Mas não consigo me lembrar, não consigo ter certeza!
Olhou para mim com expressão de súplica e disse:
— Compreenda, Sérgio... Nós éramos bastante amigos, conversávamos muito. Mas eu jamais pude me interessar por seu trabalho, tão longe que ele era do que eu sempre gostei. Você deve se lembrar como eu detestava Biologia. Gosto de bichos de um modo geral. De cachorros, de animais domésticos... Até mesmo de feras! Mas nem quero saber como é que eles são feitos por dentro, como é que funcionam e outras coisas do gênero. Por isso, quando Feijó começava a dissertar sobre esses assuntos, eu sempre acabava por conseguir um jeito de mudar de conversa.
Com um suspiro, acrescentou, recriminando-se:
— Hoje, percebo que estava errada. Deveria ter prestado atenção às suas palavras.
— Bem... — murmurei, desculpando-a — Você não poderia adivinhar que isso tudo iria acontecer, não é mesmo?
— Mas, se eu tivesse sido um pouco mais atenciosa, certamente teria alguma lembrança. Por certo recordaria algum dado importante! — insistiu.
Balançando a cabeça, desconcertada, disse:
— Não consigo me conformar com a versão da Polícia. Para mim, isso não foi um assalto. E, agora, com essa carta...
Pegou de minhas mãos o cachimbo, encheu-o habilmente com tabaco, mostrando que não se esquecera da técnica, e falou:
— Não encontraram nada de valor nos bolso de Feijó. Mas, acontece que ele jamais levava dinheiro consigo! Sabia o quanto era distraído, já perdera pelo menos uma dúzia de carteiras. Por isso, não levava dinheiro. Tinha um talão de cheques em casa, outro no carro e mais um na Universidade.
Sorriu, satisfeita com o gesto de aprovação que eu fazia pelo cachimbo perfeitamente abastecido, e continuou:
— Como não acharam um só centavo em seus bolsos, a conclusão de que tinha sido assaltado, foi automática.
— Foi um assassinato — afirmei — E um assassinato horroroso, provavelmente encomendado por alguém que estaria sendo prejudicado pelo bom andamento dos trabalhos de Feijó.
O cachimbo pendurado no canto da boca, continuei a vasculhar os papéis relativos à pesquisa do biólogo.
Foi por um mero acaso que meus olhos, em meio a diversas frases que para mim não faziam qualquer sentido, bateram naquele nome.
— Quem é esse tal de Tozzi? — perguntei — Já ouviu esse nome antes?
Cristina franziu as sobrancelhas e disse:
— Sim... Já ouvi. Se não me engano, ele estava entrando em contato com o Feijó para alguma coisa. Algo como troca de informações científicas. Acho que é um homem muito importante dentro de uma grande companhia produtora de fitocidas.
Com um sorriso, explicou:
— Uma companhia que produz substâncias capazes de matar plantas.
Sem me dar o trabalho de dizer para Cristina que minha ignorância não era tão grande a ponto de não saber o que seria uma substância fitocida, recomecei a estudar aquele pedaço de papel onde o nome de Tozzi aparecia.
Havia alguns telefones anotados, algumas frases e rabiscos que parecia terem sido feitos durante uma conversa qualquer.
E havia, o que talvez fosse muito importante, o nome e o endereço de uma empresa em São Paulo.
— Já ouviu falar da Clavell & Smith Co.? — perguntei.
— Sim — respondeu Cristina — Feijó mencionou essa empresa várias vezes. Se não me engano, é onde esse tal de Tozzi trabalha.
Fixando seus olhos muito verdes nos meus, Cristina acrescentou:
— Tenho a impressão de que Feijó, algumas vezes, falou sobre os produtos fabricados por essa empresa. Havia qualquer coisa relativa ao Fator Laranja... Algo de que Feijó tinha muita raiva e, ao mesmo tempo, muito medo!
Sorri.
Apanhando o telefone, falei:
— Bem... Não posso dizer que isso seja uma pista sólida. Mas, ao que parece, é a única que temos por enquanto. E, mesmo que seja apenas um fio de cabelo, é nossa obrigação investigar.
Já chamando o número da Clavell & Smith Co., finalizei:
— Pelo menos, não vou ficar com a sensação desagradável de nem ao menos ter tentado...

— . —

— Lamento, senhor — disse a voz simpática da telefonista — Mas não será possível falar com o doutor Tozzi.
— Nesse caso — falei — pode dar a ele o meu telefone e pedir-lhe que entre em contato comigo com a máxima urgência possível?
— Isso também não será possível, senhor — tornou a telefonista.
Franzi as sobrancelhas intrigado e já ia tomando fôlego para exigir uma satisfação, quando a moça explicou:
— O doutor Tozzi faleceu, senhor. Ele foi assassinado.
Senti meu coração bater mais uma vez fora de compasso.
— Assassinado?! — fiz — Mas... Como?!
— Houve um assalto aqui em nosso edifício — contou a telefonista — Na garagem. Mataram-no certamente quando tentava impedir que lhe roubassem o automóvel.
Emudeci.
As idéias começavam a se baralhar em minha mente e ouvi, como se estivesse no fundo de um poço, a telefonista dizer:
— O senhor pode me dar seu nome e telefone? Se houver alguma coisa em que a nossa Companhia possa ajudar...
Por muito pouco não falei.
Lembrei-me a tempo que, se Tozzi tinha sido assassinado, poderia perfeitamente haver uma conexão entre a sua morte com a de Feijó.
Assim, dizendo que não tinha qualquer importância, que eu era apenas um velho conhecido de Tozzi e que estava chocado com a notícia que acabara de receber, desliguei.
Olhando atônito para Cristina, comentei:
— Isto não está me cheirando bem... Há algo de muito podre por aqui!
Dando alguns passos por meu escritório, acrescentei:
— Acho que Feijó estava metido em alguma coisa muito mais séria do que nós dois podemos imaginar!
Cristina ficou em silêncio e, depois de alguns segundos, murmurou:
— Acho que, por todos os motivos, fiz muito bem em vir para cá...
E, com expressão preocupada, sussurrou:
— Só espero não ter sido seguida...
Era uma possibilidade a se considerar.
Uma terrível e assustadora possibilidade.
Se alguém estava matando pessoas por causa do trabalho de Feijó e se já tinham até mesmo ameaçado Cristina e lhe oferecido dinheiro, seria mais do que natural que a perseguissem até mesmo com a intenção de eliminá-la depois que ela tivesse cedido e entregado os papéis que estavam querendo.
Afinal de contas, era de se imaginar que ela tivesse pelo menos uma idéia de onde é que se encontravam as coisas referentes ao trabalho do marido.
— Notou alguma coisa de diferente? — perguntei, aflito — Alguém suspeito no avião? Ou no aeroporto, seja em São Paulo ou aqui em Vitória?
Cristina sacudiu negativamente a cabeça e respondeu:
— Não. Mas você sabe como é que eu sou. Não costumo prestar atenção às pessoas na rua ou em qualquer outro lugar. Na verdade, posso até ter sido seguida de perto e não ter percebido nada!
Respirei fundo.
Aquilo tudo fazia com que eu fosse obrigado a pensar, obrigavam-me a reavaliar a segurança de que Cristina poderia desfrutar ali, em minha casa.
Era certo que a residência era bem protegida, mas...
É certo também, que quando um bandido quer entrar em algum lugar não há barreiras que o segurem.
— Estou começando a achar que não vou deixá-la aqui — murmurei.
Os olhos de Cristina brilharam e, com um sorriso, ela falou:
— Você não calcula o bem que me faz ouvi-lo dizer isso, querido! Meu lugar é ao seu lado, só vou me sentir segura dependurada em seu braço!
Beijando-me, acrescentou:
— Não vou lhe dar qualquer trabalho. E pode acreditar que você não vai se arrepender por me levar!
O calor que emanava de seu corpo, muito colado ao meu, dizia claramente que disso, eu não precisava duvidar...

— . —

Minhas preocupações quanto à segurança não estavam limitadas à Cristina.
Eu tinha de pensar em Efigênia e em Luzia, obviamente além de mim mesmo.
Se por um acaso, Cristina fora seguida até Vitória, era de imaginar que seus perseguidores soubessem onde ela se encontrava e não seria nem um pouco difícil que quisessem atacar a minha casa.
Se Cristina e eu não estivéssemos ali, sem dúvida nenhuma, minhas duas portuguesas é que sofreriam a violência.
Por isso, era preciso que eu as enviasse para longe dali o mais depressa possível, para algum lugar que, naquele instante, fosse mais seguro do que a minha casa.
Foi a própria Efigênia que, à hora do almoço, ingenuamente, me deu a solução para o problema.
— O patrãozinho não vai se incomodar de me dar folga neste final de semana, pois não? — perguntou-me ela.
E, cheia de malícia, juntou:
— Sei muito bem que ele vai preferir estar a sós com a menina Cristina... Afinal, depois de tantos anos...
Voltou-se para Cristina e explicou, com candura:
— É que eu quero ir a Aparecida do Norte. Tenho de pagar uma promessa. Prometi à Santa Padroeira que assistiria a uma Missa em sua Basílica, se o meu Sérgio encontrasse a felicidade. E parece que fui atendida em meu pedido! Assim, é preciso pagar a promessa!
Parecendo encabulada, ela completou:
— Não serão precisos mais do que dois dias. Parto na sexta-feira à noite e estarei de volta na segunda-feira de manhã.
— Nada disso, minha velha! — exclamei — Você vai tirar quinze dias de férias! Aproveite para visitar os amigos, os parentes... E leve a Luzia consigo, está bem?
Efigênia olhou para mim, olhou para Cristina e sorriu.
— Está bem... Compreendo muito bem. Mas tenham juízo! Não se esqueçam que tudo quanto é demais não é bom... Até mesmo isso!
Meti-lhe um dinheiro na mão e, logo depois do almoço, Cristina e eu, aproveitando que teríamos de passar no Banco — eu queria deixar em absoluta segurança os documentos que me tinham sido entregues — fomos levar as duas velhas à estação rodoviária, já que minha Santa Efigênia se recusava terminantemente a subir num avião, o que encurtaria o tempo de viagem de maneira significativa, se ela fosse para São Paulo e de lá, de ônibus, rumasse para Aparecida do Norte.
— Já lhe disse que nunca mais subo num negócio desses! — falou ela, determinada, quando lhe fiz a sugestão — Quero estar a sentir o bom chão sob meus pés!
No caminho até a rodoviária, Efigênia ia recomendando:
— Não se esqueçam da vida, crianças... Não deixem de regar as plantas e verifiquem bem as portas e janelas antes de dormir!
Falando quase ao ouvido de Cristina, disse:
— O patrãozinho gosta do arroz mais temperado. Eu sempre o faço com azeite, alho e um pouquinho de orégano para dar gosto. Pouquinho, viste? Não ponha demais senão o sabor se estraga. E o grão-de-bico... É preciso cozinhá-lo com bastante paio, toucinho e lingüiças boas, bem defumadas!
Já na plataforma de embarque, depois de nos beijar em despedida, ainda falou:
— E o café há de ser forte! Forte e sem açúcar, sabias?
Cristina riu e, vendo-as embarcar no ônibus para Aparecida do Norte, murmurou:
— Pensei que não ia ter sogra... Mas, pelo que estou vendo, Efigênia é muito mais sua mãe do que aquela que o pôs no mundo!
— Disso, não tenha dúvida, querida — concordei — Você nem calcula como sofri quando vim para cá sozinho, quinze anos atrás! Sem minhas malas e sem a parte mais importante de minha bagagem...
Com um sinal de cabeça, indiquei o ônibus que partia, dizendo:
— Minha Santa Efigênia... Sem ela, parecia-me que faltava um pedaço de minha alma. E, como o outro pedaço era você, tive certeza, de repente, que eu não existia mais, que era apenas uma carcaça de pouca validade... Uma sensação terrível!
Caminhando de volta para o automóvel, completei:
— Talvez seja essa a verdadeira solidão... Sentir-se desprovido de alma... É horrível!
Deixamos o estacionamento e, tomando o caminho da Avenida Beira-Mar, acelerei um pouco para acompanhar a corrente de tráfego, os motoristas capixabas sempre com um incrível complexo de cariocas, querendo correr mais do que a Lei e as condições precárias da pavimentação permitem.
Olhando para trás, pelo retrovisor, notei pela terceira vez, o mesmo Santana grafite, a cerca de cinquenta metros de distância de meu pára-choques traseiro.
— Acho que estamos sendo seguidos — murmurei — Mas não estou entendendo... Eles já tiveram mais de mil oportunidades de nos alcançar. Inclusive de nos apanhar enquanto estávamos na rodoviária... Não sei por que estão apenas se limitando a nos seguir!
Cristina fez um movimento com a intenção de olhar para trás, mas eu, pousando a mão sobre sua coxa esquerda, falei:
— Não, Cris! Não olhe ainda. Vamos confirmar se estão, realmente, nos seguindo...
TRÊS
Ao passar diante da entrada principal do Porto de Vitória, eu só tinha duas opções de trajeto: ou continuava pela Avenida Beira-Mar, mais livre e com maiores possibilidades de desenvolver velocidade, ou então, ia pelo centro, obrigando-me ao risco de um congestionamento qualquer.
Não vacilei.
Aproveitando uma brecha entre dois automóveis, acelerei fundo e avancei ao longo da orla marítima, fazendo roncar, solicitado ao máximo, o motor de meu Omega.
Olhei pelo retrovisor e vi que o Santana também acelerava.
Não era preciso mais para ter certeza que ele estava nos seguindo.
Ultrapassei mais dois carros, olhei novamente pelo retrovisor e, exatamente como esperava, o Santana fez o mesmo.
Mal conseguindo disfarçar a preocupação e o temor, falei:
— Estão mesmo em nosso encalço, Cristina... É melhor você passar o cinto de segurança.
Já a essa altura, eu estava a mais de cem quilômetros por hora, costurando por entre ônibus e automóveis, ouvindo os gritos assustados de Cristina em cada manobra mais perigosa que era obrigado a executar.
— Deus do Céu! — exclamou ela — O que vamos fazer?!
Era uma pergunta para a qual eu não tinha resposta.
Em primeiro lugar, situações como aquela, eu só tinha vivido em meus romances, e há de se levar em conta que existe uma diferença muito grande entre criar uma situação e vivenciá-la...
Seguindo pela Avenida Beira-Mar, eu sabia que não poderia desviar para lado nenhum, pois à minha direita, estava o mar e à esquerda, a ilha central da avenida, separando uma pista da outra.
Claro...
Eu poderia cometer uma infração e virar à esquerda na primeira oportunidade, mas isso de nada serviria pois o bairro que fica do lado de lá da outra pista, Jucutuquara, é formado por um labirinto intrincado de ruelas, onde seria absolutamente impossível aproveitar da velocidade que meu carro poderia desenvolver.
Só me restava, portanto, seguir em frente e rezar para que uma viatura da Polícia me parasse ou, o que seria ainda melhor, interceptasse o Santana que estava me perseguindo.
Mas...
A Polícia é sempre assim...
Quando não queremos que apareça, ela se faz presente e, quando desejamos que esteja por perto, aí mesmo é que ela desaparece.
Não vi um só guarda, um só carro policial, até chegarmos à bifurcação para a Terceira Ponte, a via de acesso mais rápida e eficiente para a cidade de Vila Velha.
Ali, hesitei por um instante.
Se entrasse na ponte, seria obrigado a parar no pedágio e isso possibilitaria o Santana me alcançar.
Ora...
A julgar pela vontade com que o motorista daquele automóvel estava nos perseguindo, era de supor que não mediria as consequências do que viesse a fazer.
Logo, era muito fácil que, bem à entrada da ponte, no pedágio, daquele carro descessem alguns homens armados de metralhadoras, dispostos a nos enviar para o outro mundo e, com uma rajada de balas fizesse não apenas a nossa desgraça, mas também a de outras pessoas já que facilmente os funcionários do próprio pedágio e os ocupantes de outros automóveis poderiam ser atingidos por balas perdidas.
Por outro lado, ali na cabeceira da ponte, quase sempre havia uma porção de policiais.
Seria a minha oportunidade.
Poderia tentar passar direto pela cabina e isso, com certeza, desencadearia uma verdadeira revolução, com guardas saindo às pressas atrás de mim, as sirenes ligadas, talvez até mesmo dando tiros, como costuma acontecer neste país, em que a Polícia atira primeiro para depois ver quem é que foi atingido.
Esse pensamento, essa possibilidade, me fez desistir da idéia de passar pela ponte.
Assim, acelerando mais um pouco, segui em frente e, ao invés de rumar para a cabeceira da Terceira Ponte, toquei para a Praia do Canto, em direção a Camburi.
Passei pela entrada para a Ilha do Boi, onde ficava minha casa e, ciente de que de nada adiantaria procurar abrigo ali, continuei, sempre acelerando ao máximo, na esperança de que algum policial me visse e resolvesse dar o alarma para que me detivessem um pouco mais adiante.
Porém...
Mais uma vez, não havia policial algum.
Passei a pequena ponte de acesso a Camburi, após ter furado nada menos que três sinais vermelhos e ter provocado freadas violentas de outros automóveis.
Na entrada para o Jardim da Penha e Aeroporto, vacilei outra vez.
O sinal estava verde para os veículos que quisessem entrar à esquerda.
Poderia tentar...
Olhei pelo retrovisor e vi que a distância que me separava do Santana era de aproximadamente duzentos metros.
Talvez conseguisse...
Sorri, ao ver que o sinal se fechava e que os automóveis que vinham da região da CST, a Companhia Siderúrgica de Tubarão, começavam a se movimentar.
Era isso mesmo o que eu estava querendo.
Diminuí um pouco a velocidade e, sempre olhando pelo retrovisor, calculei a distância e a velocidade dos automóveis que vinham em sentido contrário.
Vi um caminhão que vinha pela outra pista, correndo um bocado.
Era um pesado caminhão carregado de sucata de ferro que, na realidade, nada tinha para fazer ali e que não deveria estar trafegando por aquela avenida.
Bendisse-o...
Dei uma ligeira cutucada no pedal do freio e, pelo espelho, pude ver que o Santana se aproximava em alta velocidade, o homem que estava ao lado do motorista já com meio corpo pendurado para fora, empunhando uma arma longa.
Um fuzil de assalto do tipo AR-15...
Com um golpe de direção, atravessei bem na frente do caminhão, obrigando o motorista a frear violentamente, os pneus soltando fumaça ao serem arrastados em cima do asfalto.
O Santana, com seu piloto tendo os olhos grudados em minha traseira, também fez a curva.
Só que...
Ele só viu o caminhão muito tarde...
Ouvi a pancada, apesar de já estar longe.
Imediatamente, reduzi a velocidade e, na primeira rua à direita, fiz o contorno de maneira a poder voltar para a avenida um quarteirão antes daquele cruzamento.
Estacionei e saltei, puxando Cristina pela mão.
Ali na esquina, os escombros do Santana ainda pareciam fremir com a violência do impacto.
No chão, ensangüentados, havia dois homens mortos.
Um pouco mais afastado, entre um amontoado de ferros, jazia o fuzil AR-15.
Embora horrorizada, Cristina olhou para os dois cadáveres e apertou com mais força a minha mão.
— Eu já os vi — disse ela ao meu ouvido — Esses dois homens estiveram procurando por Feijó, no apartamento, cerca de uma semana antes de ele ser assassinado!
— Tem certeza? — perguntei
— Claro! — exclamou ela — Eles vieram várias vezes no mesmo dia... Pude vê-los muito bem e, como suas fisionomias eram um bocado suspeitas e assustadoras, eu as fixei! Jamais poderia esquecê-las!

— . —

Aquela informação de Cristina, era gravíssima.
Era a prova irrefutável de que Feijó realmente mexera em algum ninho de vespas muito bravas e que ele tinha sido assassinado por encomenda e não por causa de um assalto comum.
No caminho de volta para casa, pensei por várias vezes em ir procurar a Polícia, relatar o que acontecera e pedir proteção.
Mas...
Eu já conhecia de velho o esquema policial de nossa terra.
Se eu fosse a uma delegacia, em primeiro lugar, precisaria ter base em minhas suspeitas, e base sólida, para que o delegado acreditasse no que eu iria contar. Em segundo lugar, quando eu lhes dissesse que aquele carro estava me perseguindo, fariam tantas perguntas que eu acabaria perdido no meio delas e não seria nem um pouco difícil colocarem-me numa cela, incomunicável, até que, século e meio depois, as coisas ficassem esclarecidas.
No mínimo, eu teria de dar trabalho ao Jorge, fazendo-o se deslocar de São Paulo para Vitória unicamente para me tirar das grades.
Assim, o melhor a fazer, era deixar a capital capixaba o quanto antes e ir para São Paulo.
Cristina e eu...
Uma vez lá, diluídos na multidão da megalópole, poderíamos tentar juntar mais alguns dados, mais algumas pedras do quebra-cabeças e, quem sabe, teríamos condições de pedir ajuda de alguém da Polícia, que acreditasse em minhas suposições e suspeitas, e que se decidisse a nos dar uma mão além de nos proteger.
No mínimo, em São Paulo, teríamos mais chance de fazer publicar nos jornais, uma matéria protestando contra o pouco interesse da Polícia em desvendar corretamente aquele crime. Com certeza, um protesto desse porte, pelo menos conseguiria mobilizar a opinião pública e fazer a população pensar mais um pouco sobre a impunidade que grassa neste nosso belo e abandonado país...
— Preciso dar um telefonema — falei — Precisamos sair de Vitória o mais depressa possível e da maneira mais segura que pudermos.
Ainda muito nervosa, Cristina indagou:
— E de que maneira você pretende conseguir isso com um telefonema?
Sorri, procurando infundir-lhe um pouco de confiança.
— Pode acreditar que vou conseguir, querida. Um telefonema para a pessoa certa e nós poderemos estar em segurança no Rio de Janeiro, dentro de pouco mais de duas horas, duas horas e meia.
Sempre vigiando pelo retrovisor e olhando cuidadosamente para os lados para me certificar de que não havia mais ninguém me seguindo, rumei para a Praia do Canto e tomei o aterro para a Ilha do Boi.
Preocupada, Cristina perguntou:
— Será que não há ninguém esperando por nós em casa? Talvez tenham deixado mais homens vigiando nossos passos e os locais onde poderíamos estar...
Era uma possibilidade e ela já me tinha passado pela cabeça.
Por isso, não parei imediatamente em frente à minha residência, preferindo dar mais duas voltas completas na ilha antes de ter a certeza e a segurança de que não havia ninguém suspeito por ali.
Minha rua estava deserta, minha casa estava em paz e bem trancada.
Não havia perigo algum.

— . —

Poderia ter ligado de casa, mas com medo que tivessem posto alguma escuta telefônica em meu ramal, preferi atravessar a rua e telefonar do vizinho, um arquiteto aposentado, metido a pintor, que acabara se tornando meu amigo e um excelente companheiro para o uísque nos sábados à tarde.
Enquanto o arquiteto mostrava seus quadros para Cristina, liguei para São Paulo.
— H & B — atendeu uma secretária.
— Preciso falar com o Henrique — disse, apressado — E com urgência. Diga-lhe que é o Sérgio... O escritor.
Segundos depois, a voz de Henrique Bittencourt, o proprietário da empresa, me atendeu:
— Sérgio! Mas que surpresa! O que é que manda?
— Preciso sair de Vitória neste instante — falei — Não tenho tempo para explicar coisa nenhuma, farei isso quando nós nos encontrarmos. Só posso lhe dizer que estamos correndo perigo, minha esposa e eu!
— Esposa?! — fez ele, abismado — Mas... Desde quando você...
Interrompeu-se e murmurou:
— Mas você está com pressa... Depois, nós conversaremos e você vai me explicar toda essa história...
Fez uma pequena pausa e perguntou:
— Para onde quer ir?
— Para o Rio de Janeiro, em primeiro lugar...
— Muito bem — falou Henrique, sua voz adquirindo o tom de determinação do homem que sabe tomar decisões — Vá para o aeroporto. Lá, procure o balcão da TAM. Fale com a Marlene.
Pude perceber que ele sorria quando finalizou:
— Terá a solução de seu problema.
Eu já ia desligar, quando ouvi Bittencourt perguntar:
— Precisa de mais alguma coisa? Dinheiro? Um automóvel no Rio?
— Um carro no Rio de Janeiro seria excelente — respondi — Mas precisa ser um automóvel rápido.
— Fique tranqüilo, Sérgio... Terá tudo o que está me pedindo.
Desliguei o aparelho bendizendo o momento em que eu fora apresentado àquele homem.
Literalmente arranquei Cristina do velho arquiteto que já começava a se mostrar encantado demais por seus olhos e, em passos rápidos, voltei para casa para apanhar algum dinheiro e minha arma.
Sim...
Não é de meu feitio andar armado, mas num país como este, em que os bandidos possuem arsenal melhor do que a própria Polícia, é preciso se precaver.
Assim, não custa nada ter à mão, de vez em quando, uma boa pistola.
Uma arma confiável como aquela minha Taurus 380 ACP.
Cristina se assustou quando me viu apanhar a pistola, conferir seu carregador e metê-la num coldre axilar, bem à maneira dos heróis que costumava criar para meus romances.
— Não gosto disso — falou — Você sempre soube que odeio armas de fogo, que tenho horror à violência...
— Não pretendo usá-la, Cristina — repliquei — Mas acho que mais vale eu me prevenir do que chorar, não acha?
Cristina não respondeu.
Limitou-se a me abraçar e a chorar, seus lindos ombros subindo e descendo com os soluços do pranto.
— Não fique assim, querida — pedi — Tudo vai dar certo... Pode ficar calma!
— Não quero que aconteça algo ruim agora, Sérgio — falou ela — Demorei quinze anos para reencontrar a felicidade! Seria o cúmulo perdê-la, seria o cúmulo não poder aproveitá-la!
— Não acontecerá nada — afirmei, sem muita convicção — Está tudo certo, tudo arranjado... Nós iremos para o Rio de Janeiro e, enquanto você apronta a nossa bagagem, eu irei telefonar mais uma vez.
— Vou junto — disse Cristina..
Sorri.
Sacudi a cabeça negativamente e falei:
— Nada disso. Esse arquiteto é capaz de roubá-la de mim. Fique aqui, bem trancada e ajeitando uma mala para nós dois.
Três minutos depois, eu estava na casa do vizinho e já telefonando para o Rio de Janeiro.
— Tadeu? — perguntei.
— Sim — respondeu uma voz firme do outro lado — Quem está falando?
— Sérgio. O escritor... Preciso me encontrar com você.
— Estou às suas ordens, Sérgio... Que tal no La Moglie do Barra Shopping?
— Ótimo! — exclamei — Estou saindo de avião, daqui de Vitória, dentro de no máximo uma hora...
— Terei de correr, então — murmurou Tadeu — Com o maldito trânsito do Rio de Janeiro, você é capaz de chegar antes de mim!

— . —

Exatamente como Bittencourt prometera, no Aeroporto de Goiabeiras, um HS-115 estava nos esperando, pronto para decolar.
O comandante Jacques, sorridente, levou-nos pessoalmente para o avião e, fechando a porta, disse:
— Nada como ser amigo de pessoas importantes, não é mesmo, doutor Sérgio? Este avião estava destinado a um vôo para Miami levando três deputados... Mas o doutor Henrique disse que a sua viagem teria prioridade absoluta e...
— O Henrique é fenomenal — interrompi — O que ele já fez por mim... Acho que jamais conseguirei agradecer-lhe o suficiente.
Assim que deixamos o solo, Cristina perguntou:
— Quem é que você vai encontrar no Rio e de que maneira ele poderá nos ajudar, se a própria Polícia está se mostrando tão ineficaz e reticente?
— Conheci Tadeu Junqueira durante as pesquisas que fiz para um romance — respondi, enquanto a luz de fasten set belts se apagava — Era um romance policial, uma história sobre o tráfico de drogas na Favela da Rocinha. Tadeu me foi indicado pela Polícia do Rio de Janeiro como sendo o especialista mais conceituado nesse assunto.
— Então ele é um policial — concluiu Cristina.
— Sim e não — falei — Podemos dizer, com mais exatidão, que ele é um colaborador da Polícia. Outrora, ele foi um criminoso vulgar, um traficante, um homem procurado pela Justiça. Mas, sua mãe e sua irmã foram assassinadas por um grupo rival e, a partir desse dia, ele decidiu que haveria de ajudar a Polícia a acabar com o crime na favela onde morava e, especialmente, a exterminar a quadrilha que assassinara sua família.
Tomei fôlego e prossegui:
— De fato, ele ajudou bastante. Foi esperto, trabalhou ao lado da Lei e hoje ele pode se considerar vingado já que teve a oportunidade de eliminar com as próprias mãos o bandido que matara sua mãe e sua irmã. Não parou mais de ajudar os policiais e, através de informações que ele fez chegar à Polícia Federal, uma quadrilha que estava agindo no seio da própria Polícia Civil, foi desbaratada. Em outra ocasião, ele ajudou a descobrir um grupo de policiais militares que estava envolvido com o roubo e contrabando de carros para o Paraguai.
Com um sorriso, concluí:
— De uma maneira geral, Tadeu tem ajudado muito, especialmente naqueles casos em que a Polícia se vê bloqueada, seja por motivos políticos, seja por interesses pessoais de delegados e outros policiais.
Muito séria, Cristina comentou:
— Não gosto disso. Homens que agem com violência... Ainda mais esses que poderiam ser chamados de parapoliciais! Pessoas que não estão ligadas oficialmente à Polícia, você me compreende. Isso é que faz a violência aumentar! Os bandidos se vêem com o direito de combater as autoridades como se estivessem em guerra aberta. Não há regras a serem seguidas por nenhum dos dois lados e isso é simplesmente péssimo!
Antes que eu pudesse protestar, Cristina disse:
— Um homem como esse Tadeu Junqueira, por exemplo... O fato de estar sempre denunciando os próprios policiais... Isso leva, forçosamente a crises e divisões no seio da corporação!
— Quer dizer que você prefere uma polícia unida e suja? Não acha melhor proceder a um saneamento rigoroso da corporação, mesmo que esse saneamento leve à demissão de muitos homens?
Cristina não teve o que dizer.
Acariciando seus cabelos, falei:
— Tadeu é um homem de valor. Está certo que ele já trilhou o caminho do mal, mas soube reconhecer o seu erro e se corrigiu. Hoje, ele é um dos grandes defensores da Lei no Rio de Janeiro e, no que diz respeito ao uso da violência...
Bati no lado esquerdo de meu peito, onde repousava a Taurus, e disse:
— Você sabe muito bem que eu também sou contrário ao uso da violência. Mas, o mundo não é como gostaríamos que fosse, Cris... Muitas vezes, somos obrigados a agir como selvagens unicamente para podermos sobreviver. Os bandidos, já por definição, sem qualquer lei ou regra de conduta, podem usar armamentos pesados para seus assaltos. Já soube de casos em que estavam utilizando metralhadoras potentes o bastante para fazer parar um blindado. Como acha que poderemos enfrentar tipos armados dessa maneira? Com espingardinhas de pressão? Ou com pistolinhas calibre 22? Você não acha que um povo desarmado é mais vulnerável?
— Nos Estados Unidos e em outros lugares, o cidadão comum tem acesso a armamentos pesados e nem por causa disso a criminalidade diminuiu — ponderou ela.
— Concordo — admiti — Mas pode estar certa que os cidadãos honestos se sentem mais seguros e, de uma maneira geral, os bandidos são mais cuidadosos. No mínimo, respeitam mais, têm mais medo...
— Sim — disse Cristina com um sorriso de escárnio — Eles matam do mesmo jeito que aqui, só que usando uma tecnologia melhor. A vítima sofre menos, pois a morte é via de regra, imediata...
Tese errada é, por definição, indefensável.
E, no fundo, eu sabia que Cristina estava certa.
Não seria a liberação de armas mais eficientes para a população que haveria de fazer diminuir o rio de sangue que todos os dias corre principalmente nas grandes cidades brasileiras. Isso só se conseguiria com a melhora do padrão de vida do povo e, em especial, com a melhora da educação que é oferecida ao brasileiro.
Sim...
Esse seria o caminho.
Claro, haveria muita coisa mais para fazer.
Por exemplo, o governo pagar melhor os professores, os médicos e os policiais.
Um país em que os funcionários das áreas de Educação, Saúde e Segurança se considerassem bem pagos, com certeza teria muito mais condições de se aproximar do Primeiro Mundo, ao invés de ficar rastejando no subdesenvolvimento com laivos de país desenvolvido.
Sacudi a cabeça com energia para afastar de mim esses pensamentos.
Não era hora de filosofar sobre política ou de criticar a maneira como estamos sendo governados.
Tínhamos um problema muito sério pela frente e era necessário resolvê-lo a qualquer custo.
E resolvê-lo dentro dos moldes que o país nos dava.
Bem precários, por sinal.
— No que nos diz respeito — falei — Tadeu poderá ser muito útil. Se nossa vida está correndo perigo, é mais do que necessário que saibamos alguma coisa das intenções dessas pessoas que nos querem ver com o couro virado ao contrário e ele poderá ajudar muito nessa investigação justamente por ter livre trânsito em lugares onde eu, ou mesmo um policial comum, jamais conseguiria penetrar. De mais a mais, Tadeu pode nos defender numa situação de perigo. É um homem bom de briga e que sabe manejar com extrema perícia qualquer espécie de arma.
— Você está querendo dizer que ele será nosso guarda-costas?! — indagou Cristina, horrorizada — Nunca imaginei que um dia fosse precisar me comportar como uma pessoa da Máfia!
Sorri, dei-lhe um beijo e murmurei:
— Você vê como são as coisas, Cris... Você, uma pessoa sensível, pacifista... Que adora pintar flores e campos... De repente, se encontra metida numa história que cheira a sangue, covardia e ambição!
Cristina ficou em silêncio por alguns instantes e, aconchegando-se a mim, comentou:
— Sim... Covardia... Assassinar Feijó foi uma tremenda covardia! Ele era um homem incapaz de fazer mal a uma mosca e, o que é pior, era incapaz de se defender!
— Eu também, querida... Não se esqueça que eu sou um escritor e não um guerreiro... Por isso mesmo, acho muito necessária a ajuda de Tadeu!
Q U A T R O
Passava um pouco de seis horas da tarde quando, de braço dado com Cristina, entrei no restaurante.
Não tive nenhuma dificuldade em localizar, numa mesa do fundo, a figura simpática de Tadeu e, imediatamente, percebi que Cristina se retesava ao meu lado.
— O que foi? — perguntei — Algo não vai bem?
— Os dois homens naquela mesa — disse ela, num sussurro — Eles também estiveram conversando com Feijó. Eles não me viram, mas eu os vi deixando o escritório dele. E, naquela ocasião, não pareciam nem um pouco satisfeitos!
Olhei para os dois homens que Cristina mostrara com um gesto discreto de cabeça.
Eram indivíduos comuns, como quaisquer dos outros executivos que ali se encontravam, comendo e bebendo displicentemente.
Em hipótese alguma tinham aspecto de pessoas que pudessem matar seus semelhantes.
— Não me parecem perigosos — comentei.
— Talvez não sejam, de fato — admitiu Cristina — Mas não acha que é coincidência demais? Tenho certeza de os ter visto saindo do escritório de Feijó. E mais ou menos uma semana antes de sua morte.
Sim...
Era coincidência demais.
Especialmente em se levando em consideração que eu ligara para Tadeu e para Henrique, da casa do vizinho.
Como é que eles poderiam saber que havia um encontro marcado naquele restaurante?
Fui arrancado de minhas conjecturas pela voz de Tadeu que me vira e, levantando-se da mesa, viera ao meu encontro.
— Doutor Sérgio! — exclamou, abraçando-me — Mas que satisfação encontrá-lo aqui!
E, voltando-se para Cristina, comentou:
— Não sabia que tinha se casado...
Sorri e, apresentando-lhe Cristina, falei:
— Pois agora está sabendo, Tadeu... E em primeira mão!
Sentamo-nos e, enquanto Tadeu comandava as bebidas para nós eu o observei.
Ele não mudara nada.
Continuava o mesmo indivíduo com aspecto de galã de telenovelas, extremamente bem vestido, a pele bem tratada, o cabelo penteado com esmero e puxado para trás. Bem queimado de sol, os olhos vivos e com um permanente sorriso no rosto, parecia ser o exemplo de homem em paz com a vida e com o mundo que o cercava.
Porém, a realidade era bem diferente.
Tão diferente que, segundos após o garçom se afastar, ele sussurrou, por sobre a mesa, o rosto fixo em um sorriso bem estudado:
— Dona Cristina está preocupada e eu já sei qual é o motivo... Aqueles dois homens na outra mesa estão olhando muito insistentemente para nós.
Cristina fez um quase imperceptível sinal afirmativo com a cabeça e Tadeu ampliou o seu sorriso.
— Não se preocupe — disse ele — Ninguém vai incomodá-los aqui.
Assim dizendo, tirou do bolso um lenço quase escarlate e passou-o pela testa.
Confesso que achei o gesto estranho, pois ele não estava suado e nem sequer com a pele do rosto brilhante...

— . —

O restaurante La Moglie, no Barra Shopping, bem como o seu vizinho, a Churrascaria Copacabana, têm as paredes de vidro de maneira que os clientes podem observar o que se passa no saguão do Shopping, como se estivessem olhando para um aquário.
Muitas vezes eu ri comigo mesmo pensando que, da mesma forma que era essa a impressão que eu tinha quando via as pessoas que estavam do lado de fora do restaurante, a recíproca era verdadeira e, no fundo, muito mais real. Nós, os que estávamos comendo no restaurante, é que estávamos no aquário e sendo observados.
Olhando pela grande vidraça, vi cinco homens, todos muito bem vestidos, usando terno e gravata, que estavam sentados em dois dos bancos de madeira, bem em frente ao restaurante.
Assim que Tadeu passou o lenço sobre a testa, os cinco se levantaram e entraram no restaurante, caminhando rapidamente, as mãos metidas nos bolsos dos paletós.
— Chamou, chefe? — perguntou um deles, o mais velho, dirigindo-se para a nossa mesa, enquanto os outros quatro ocupavam posições estratégicas no interior do estabelecimento.
Evidentemente, funcionários e clientes da casa se assustaram, mas um gesto de Tadeu teve o dom de restabelecer a calma, ao menos aparentemente.
Com um sorriso cínico e falando alto de maneira a se fazer ouvir em todo o salão, Tadeu falou:
— Sim, Pedro... Estou um pouco preocupado... Com remorsos... Esqueci de oferecer alguma coisa para vocês beberem...
Ostensivamente, olhou para os dois homens que estavam sentados, muito pálidos, três mesas à esquerda da nossa.
O aviso era mais do que evidente...
Pedro e os outros quatro homens sentaram-se na mesa ao lado da ocupada pelos dois indivíduos e, enquanto tomavam uma garrafa de vinho que o garçom, a mando de Tadeu, se apressou em servir, os dois suspeitos se levantaram, pagaram a conta e se retiraram.
No mesmo instante, três dos companheiros de Tadeu também deixaram o restaurante, seguindo os dois.
Tadeu explicou, olhando para Cristina:
— Esses dois podem tentar armar uma cilada. Por isso, é conveniente que os rapazes tenham uma conversinha de pé-de-ouvido com eles.
Sorriu, voltou-se para mim e indagou:
— E então? O que é que está acontecendo para o bacana pedir a minha ajuda?
Ri de sua maneira de falar e lembrando-o de que o único bacana ali era ele mesmo, respondi:
— Estamos com um problema, meu amigo... E correndo risco de vida.
Contei-lhe tudo o que sabia a respeito do caso, falei sobre o assassinato de Feijó, sobre a morte de Tozzi e encerrei dizendo:
— Sei muito bem que não é o seu ramo, Tadeu. Sei, também, que o palco de atuação é em São Paulo e você é daqui, do Rio de Janeiro. Mas você é a única pessoa que conheço capaz me ajudar numa situação dessas e, além do mais, é a única em quem eu posso confiar cegamente. Acho que desta vez, eu estou mexendo em um ninho de vespas bravas e...
Ergui os ombros, resignado e concluí:
— Bem... Sei que não estou preparado para isso. E nunca estive, na realidade!
Muito sério, Tadeu falou:
— Até hoje, Sérgio, eu só trabalhei com o pessoal que está nos morros, que na realidade são os chamados arraia miúda. Agora... O que você está me pedindo para fazer é participar de alguma coisa que mexe com os grandes... Com os que têm muito dinheiro e, é claro, muito poder!
Um frio me passou pela espinha.
— Não vai aceitar?
Tadeu riu e respondeu:
— Não falei isso... Só acho que vai ser um pouco mais difícil e perigoso.
Fez desaparecer o sorriso e, fixando-me com os olhos, acrescentou:
— Você vai ter de me ajudar. Vai ter de correr riscos, também.
Percebi que Cristina crispava o rosto, mas controlando-se, ela permaneceu calada enquanto Tadeu prosseguia:
— Não conheço muita coisa de São Paulo e de sua guerrilha urbana. Terei de fazer alguns contatos, procurar alguns conhecidos aqui no Rio e que disponham de meios para obter informações sobre esse assunto.
Nesse momento, os três amigos de Tadeu que tinham saído atrás dos dois suspeitos, voltaram para o restaurante.
Aproximando-se da mesa em que nos encontrávamos, um deles disse, em voz baixa:
— Eram matadores, chefe... Veja só!
Abriu o blusão e mostrou duas pistolas metidas em seu cinto, armas que imediatamente reconheci como sendo automáticas Smith & Wesson calibre 9mm.
— As duas estavam com silenciador — acrescentou — E isso não é equipamento de pé-de-chinelo...
— O que fizeram com eles? — quis saber Tadeu.
Um sorriso iluminou o rosto do homem, quando ele respondeu:
— Nunca mais incomodarão ninguém. E quando a Polícia os encontrar, a quantidade de pó que estará em seus bolsos será tão grande que ninguém há de pensar em outra coisa que não numa briga entre quadrilhas rivais pelo controle de algum ponto de tráfico.
Cristina estremeceu e, não suportando mais, gemeu:
— Meu Deus! Onde é que nós estamos nos metendo?!
Tadeu olhou carinhosamente para ela e disse:
— Vocês não estão se metendo. A realidade é outra. Vocês estão tentando sair de uma enrascada em que entraram de gaiatos. Pelo que o Sérgio falou, se não fizermos alguma coisa e bem depressa, pode acreditar que não permanecerão vivos por muito tempo. Esses dois que estavam aqui vieram para matá-los e, provavelmente, para matar-me também, uma vez que a esta altura dos acontecimentos, já é mais do que certo que saibam que eu estou do seu lado!
Voltando-se para mim, indagou:
— Quem mais poderia saber deste nosso encontro?
— Ninguém — respondi — Liguei do vizinho, já pensando na possibilidade de meu telefone estar grampeado.
— É... — fez Tadeu — Mas alguém escutou. Não há nenhuma outra explicação.
Torci meus miolos, virei-os do avesso e, de repente, a resposta me surgiu, como a coisa mais óbvia do mundo.
— Não há muitos telefones na Ilha do Boi — expliquei — Talvez tenha sido mais fácil para os bandidos, colocarem uma escuta geral. Um sistema de grampo que permita ouvir todas as conversas telefônicas da Ilha, ao mesmo tempo!
Tadeu franziu as sobrancelhas.
— Nesse caso, porque não os apanharam lá em Vitória? Porque os deixaram chegar até aqui, no Rio de Janeiro?
Foi a própria Cristina que respondeu:
— Acho que eles nos querem vivos. Pelo menos, um de nós dois. Há o envelope e acho que é isso que eles estão querendo, mais do que qualquer outra coisa!
— Pode ser — admitiu Tadeu — E eles não vacilariam em seqüestrá-la para forçar Sérgio a lhes entregar o que desejam.
Ficou calado por alguns momentos e disse:
— Espero que tenha guardado bem esses documentos...
— Fique tranqüilo — falei, por minha vez — Eles estão em lugar seguro.
Tadeu balançou afirmativamente a cabeça e, servindo mais bebida para nós, murmurou:
— Pelo menos isso... Temos agora de pensar nas pessoas que poderiam se beneficiar com a morte desses dois cientistas e que poderiam ter interesse na descontinuidade de suas pesquisas.
— Já tenho uma pista — falei — É muito frágil, mas... É tudo o que temos.
Tadeu olhou interessado para mim e eu prossegui:
— A Clavell & Smith Co., fabricante de fitocidas e de desfolhantes, poderia se ver prejudicada. Creio que seria bom começarmos por uma investigação nessa companhia. De mais a mais, Tozzi era seu funcionário e, ao mesmo tempo, amigo e parceiro de pesquisas de Feijó.
Olhando parado, Tadeu comentou:
— É engraçado que eles não tenham tentado apanhar esses documentos de Dona Cristina, ainda em São Paulo. Na minha opinião, seria muito mais fácil.
Cristina balançou a cabeça negativamente e explicou:
— Eles não estavam comigo. Foram entregues para mim pouco antes de minha viagem para Vitória. Na verdade, o doutor Jorge os entregou para mim, no aeroporto de Guarulhos.
Tadeu refletiu mais um pouco e disse:
— Mas ainda assim, as coisas não estão se encaixando muito bem. O normal é que um pesquisador guarde seus documentos, os resultados de seus trabalhos, na própria Universidade, no local onde realiza as investigações científicas. Se o professor Feijó preferiu guardá-los em casa, é por que, de alguma maneira, não confiava na segurança de seu laboratório, não é mesmo?
Sem nos dar chance de falar qualquer coisa, perguntou:
— Será que o doutor Feijó tinha suspeitas de alguém? Será que um de seus assistentes deixou, de repente de ser confiável?
Cristina, mais uma vez, balançou a cabeça negativamente.
— Não acredito nisso — murmurou — Feijó não dispunha quase de verbas. Por isso, o número de seus auxiliares era muito pequeno.
Pensou um pouco e falou:
— Havia o Sidney... Mas Feijó sempre depositou plena confiança nele. Eram amigos, antes de qualquer outra coisa, acima de qualquer outro tipo de relacionamento!
Com um sorriso triste, completou:
— Mas Feijó sempre foi bem esquisito. As coisas importantes e que deveriam ficar na Universidade, ele as trazia para casa, pois segundo o que dizia sempre, era em casa que conseguia estudar melhor e pensar com mais calma. Era uma de suas manias. E acho que ninguém sabia disso.
— Nem mesmo esse tal de Sidney? — perguntou Tadeu.
— Sidney sabia — respondeu Cristina — Tanto assim que muitas vezes ele passou noites inteiras com o Feijó, revisando teses e analisando pesquisas. Dizia que era mesmo melhor trabalhar com o chefe, em casa, pois o computador particular de Feijó era muito superior ao que ele utilizava na Universidade.
Olhando fixamente para mim, ela disse:
— Pode ser que o Sidney saiba de alguma coisa, sim... Eu não estive com ele desde o enterro de Feijó!
Tadeu tomou um gole de uísque e falou:
— Pois está bem na hora de providenciarmos esse encontro. Não tenho dúvida de que esse deverá ser o nosso primeiro passo!
— Podemos telefonar para ele — sugeriu Cristina — Ainda é cedo...
Tadeu não vacilou.
Pegando do cinto o telefone celular, entregou-o para Cristina e disse:
— Por favor, Dona Cristina... Ligue para ele. Mas não diga onde estamos. Diga, apenas que vamos nos encontrar com ele amanhã de manhã, de preferência em sua casa. Peça-lhe para nos esperar, mesmo que precise atrasar um pouco a sua chegada à Universidade.
Cristina ligou — ela sabia de cor o telefone da casa de Sidney, pois mais de mil vezes ligara para lá a pedido de Feijó — e ficou esperando, o aparelho ao ouvido.
— Não atendem — falou.
— Tente outra vez — pediu Tadeu.
— Talvez ainda não tenha chegado da Universidade — ponderei — Quem sabe, se ligarmos mais tarde...
— A essa hora, Sidney já deveria estar em casa — disse Cristina — Ele é um homem metódico. Jamais deixa de jantar e jamais vai a restaurantes. Acho que nestes quinze anos, nunca deixei de encontrá-lo em casa todas as vezes que o chamei...
Tentou mais quatro vezes, digitando os números com cuidado, para ter certeza de não estar cometendo nenhum erro.
Porém, o telefone continuava sem ser atendido.
Lembrando-me, de súbito, do que acontecera ao doutor Tozzi, eu falei, já nervoso:
— Só espero que não tenha acontecido o pior...
Os olhos muito verdes de Cristina se arregalaram e ela disse, angustiada:
— Estou me lembrando de algo que pode ser muito importante...
Tadeu olhou interessado para ela e eu a estimulei:
— Vamos, querida... Fale! Nas minhas novelas e romances, são sempre as lembranças de última hora que trazem as respostas para os enigmas e mistérios...
Ela esboçou um sorriso e falou:
— Feijó comentou comigo que encarregara Sidney de uma parte muito séria das experiências. Era algo que tinha a ver com mutações genéticas e cultura de tecidos...
Respirou fundo e continuou:
— Não entendo nada dessas coisas. Por isso, não me preocupei em pedir mais explicações. Mas tenho certeza de que é importante no andamento dos trabalhos, pois Feijó estava preocupado... Várias vezes chegou a comentar que achava Sidney ainda despreparado tecnicamente para isso. Disse que receava que ele cometesse erros graves nos cálculos e na montagem das experiências.
Pondo-se de pé, Tadeu disse, com determinação:
— Bem... Não nos resta outra coisa para fazer. Não podemos perder tempo! Precisamos estar em São Paulo o quanto antes, pois se as coisas se passaram como estou receando, pode ser até que já seja tarde demais!

— . —

Não era meia-noite quando chegamos ao Alto de Pinheiros, um bairro de classe média de São Paulo, onde Sidney morava.
Solteiro, celibatário realmente convicto, sem muitas exigências ou requintes, Sidney era um homem que vivia bem, numa casa pequena, mas graciosa situada no meio de um terreno de mais de mil metros quadrados e com um belo jardim.
Sozinho no mundo, dedicava suas horas de lazer e folga aos cães que, segundo Cristina, constituíam a sua única e verdadeira família.
— É aqui — disse ela, fazendo Tadeu estacionar o carro que alugáramos no aeroporto, diante da vivenda — Vim aqui várias vezes com o Feijó para que este discutisse com Sidney alguma coisa relativa às suas experiências. Duas outras vezes vim sozinha, visitar o Sidney quando ele esteve doente. É um homem frágil, de saúde muito delicada...
Tadeu desceu do automóvel e eu o acompanhei, ainda ouvindo Cristina recomendar:
— Cuidado com os cachorros! São grandes e bastante bravos!
Vi o furgão com os amigos de Tadeu estacionando bem atrás do carro em que estava Cristina e sorri.
Sim...
Com aquele pessoal, eu poderia me sentir seguro. E, o que era mais importante, podia ter certeza de que Cristina nada sofreria.
Com cuidado, Tadeu se aproximou do portão, olhando ao nosso redor, procurando avistar os cães para, eventualmente, podermos fugir deles.
Mas...
Eles não estavam por ali.
— É engraçado — murmurou ele — Dona Cristina falou que eram cachorros bravos... Eles deveriam estar aqui no portão, latindo como desesperados!
Tocou a campainha e nós a ouvimos soar, no interior da casa.
Porém, ninguém atendeu.
E, mais estranho, nenhum cachorro latiu.
— Algo vai mal — falou ele, saltando o portão e sacando o revólver da cintura.
Imitei-o e, depois de caminharmos cerca de cinquenta passos pelo jardim, encontramos os cachorros.
Eram três belos dobermans que estavam deitados, meio escondidos numa moita de azaléas.
Os animais estavam com o pescoço quebrado, mostrando que aqueles que os atacaram sabiam muito bem como fazer para se livrar de cães de grande porte.
Tadeu não perdeu tempo examinando mais detalhadamente os animais.
Dirigindo-se para a casa, falou:
— Chegamos muito tarde, Sérgio... Mas mesmo assim, é melhor tomar cuidado. Esteja pronto para atirar na primeira coisa que se mexer diante de seus olhos!
Estremeci.
Não me apetecia nem um pouco ter de disparar contra quem quer que fosse, mesmo um bandido...
Matar, eu o fazia no papel...
Imaginava que jamais teria condições de puxar, na vida real, o gatilho de uma arma que estivesse apontada para uma pessoa.
Acompanhei Tadeu como pude, tentando esconder o corpo por entre os arbustos do jardim, até chegarmos ao alpendre da entrada.
Ele me mostrou a porta entreaberta e indaguei:
— O que terá acontecido? Um assalto?
— Pode apostar que não. E pode apostar, também, que Sidney não nos será mais de nenhuma utilidade.
Empurrou a porta de entrada e, num movimento súbito, invadiu a sala às escuras.
Um silêncio de túmulo reinava no local e, mais do que ver, sentimos que ali não havia ninguém.
Tadeu girou o interruptor da luz e as lâmpadas se acenderam.
— Meu Deus! — exclamei — Parece que passou um furacão por aqui!
De fato, a desordem era assustadora.
Os móveis estavam revirados, o estofamento das poltronas estava rasgado e, pelo chão, roupas e papéis espalhados indicavam que alguém vasculhara a casa de cabo a rabo.
— Andaram procurando alguma coisa — comentou Tadeu — E, pelo visto, não encontraram, pois a casa está uniformemente desarrumada.
Antes que eu pudesse pedir uma explicação, ele falou:
— Se houvesse algum lugar ainda em ordem, significaria que o que estava sendo procurado tinha sido encontrado, Sérgio. Muito simples... Como diria Sherlock, elementar, meu caro... Elementar...
Mostrou-me pela porta aberta, o escritório de Sidney e eu, então, o vi.
Sidney ainda estava sentado em sua cadeira.
O rosto estava voltado em minha direção, os olhos baços, a boca muito aberta.
As duas mãos estavam à altura do peito onde um grande orifício deixara sair todo o sangue de seu corpo.
— Morto! — exclamei — Ele também está morto!
— Sim — confirmou Tadeu, tocando com os dedos o rosto do cadáver — E já faz algum tempo. O corpo está frio e o rigor mortis já passou.
Olhando para mim, ele disse, muito sério:
— Acho que vocês estão metidos em algo muito mais perigoso do que aparece em seus livros, Sérgio...
Com um suspiro, caminhou até o telefone, tirou-o do gancho e chamou a Polícia.
Depois de ter falado por mais de dez minutos com um delegado seu conhecido, desligou o telefone e disse:
— Vamos embora, Sérgio. Não vale a pena estarmos aqui quando os policiais chegarem. É preferível que não nos vejamos envolvidos diretamente nesse assunto, pelo menos no que diz respeito às investigações das autoridades.
— Mas isso poderá nos incriminar! — protestei — Se alguém nos viu entrar... Não será difícil que nos atribuam esse crime!
— Não se preocupe com isso — garantiu Tadeu — Por isso é que fiz questão de falar com esse delegado meu amigo. Ele está sabendo de tudo e, eventualmente, até poderá nos ajudar... Mas, de qualquer maneira, se tivermos de enfrentar a burocracia de prestar depoimentos agora, de comparecer a delegacias e coisas assim, nós perderemos muito tempo, daremos chance aos bandidos de nos alcançarem ou, no mínimo, de fugirem.
Literalmente empurrou-me para fora da casa e arrematou:
— Nós temos muito que fazer. Aliás, eu tenho... Eu irei falar com meus amigos policiais a respeito disso tudo. Mas, depois de deixá-los em algum lugar bem seguro...
Já entrando no carro, sorriu, cheio de malícia e sugeriu:
— Há um motel aqui perto. Um dos melhores de São Paulo. Vocês dois ficarão lá, tratarão de relaxar e, depois...
Arrancando com o automóvel, finalizou:
— Amanhã eu os apanharei para o almoço. Daí, conversaremos.

C I N C O
Tadeu serviu-se de mais um pedaço de carne assada, sorriu para Cristina, sorriu para mim, fez um comentário qualquer a respeito de nós dois estarmos com aspecto de cansados, as olheiras pelo meio da cara, e disse:
— A Polícia está começando a pensar com um pouco mais de clareza sobre o Caso Feijó. Aquele delegado meu amigo, da Décima Quarta, disse que vai forçar a reabertura do inquérito e partir à caça de fatos novos.
— Acha interessante que a Polícia reabra o inquérito? — perguntei — Isso não pode atrapalhar as nossas investigações ou se tornar ainda mais perigoso para nós?
— É claro que vai atrapalhar... — concordou Tadeu — Mas nós daremos um jeito de estar sempre à frente da Polícia.
Servindo vinho para Cristina, explicou:
— Normalmente, a Polícia é morosa. Há a burocracia, há a lentidão dos horários e uma porção de entraves que a própria Lei determina e que só servem para favorecer os bandidos. Nós teremos muito mais chances do que os policiais, se...
Olhou para nós dois e completou:
— Se vocês me ajudarem e seguirem à risca as minhas recomendações.
Olhei para ele, interessado, e ele prosseguiu:
— A primeira delas é que Dona Cristina se afaste de nós o mais rápido possível e para o mais distante que puder.
Sorri e falei:
— Isso já foi pensado. Inclusive, já telefonei para o Bittencourt, o meu salvador nessas ocasiões, e ele já me arrumou uma passagem para Paris. Cristina partirá hoje, às vinte e uma horas.
— Isso é muito bom — disse Tadeu, respirando aliviado — Sozinhos, teremos mais possibilidades de agir, mais liberdade de ação!
Eu também estava satisfeito com a idéia de que Cristina voltasse o quanto antes para a França.
Além de sabê-la em segurança por lá, era preciso que ela se encontrasse com Serginho para lhe explicar que o pai finalmente aparecera e que dentro de poucas semanas estaria com ele.
Como se lesse meus pensamentos, Cristina murmurou:
— Serginho vai ficar feliz. Encontrar o pai... Esse sempre foi o grande sonho de sua vida!
Com expressão de ansiedade, ela me pediu:
— Por isso, tome cuidado, querido... Seria o cúmulo se lhe acontecesse alguma coisa, justamente agora!
— Não se preocupe, Cris — falei — Pode acreditar que eu tenho todo o interesse de me cuidar. Ainda quero viver muitos anos ao seu lado, quero aproveitar a vida com você e com nosso filho...
Ficamos em silêncio por alguns momentos e, tomando mais um pouco de vinho, Cristina perguntou para Tadeu:
— Já tem idéia de por onde começar, Tadeu?
— Na realidade, já começamos, Dona Cristina — respondeu ele — Não temos muito mais o que fazer além de esperar. Acho que os bandidos que estamos perseguindo, não vão sossegar enquanto não conseguirem o que estão querendo.
Cristina empalideceu e Tadeu, sorrindo, concluiu:
— Mas nós vamos acabar com eles muito antes. Só quero que eles se mostrem. Só preciso que eles deixem aparecer o rabo para que eu possa agarrá-los!

— . —

Foi com o coração na mão que eu vi o 747 da Varig decolar do aeroporto de Cumbica.
Ao meu lado, Bittencourt — que viera pessoalmente, em especial consideração — falou:
— Não fique preocupado, Sérgio. Tudo vai dar certo.
Eu havia comentado com ele a respeito do risco que estávamos correndo e, com um sorriso, ele me disse:
— Cristina está com sorte. Todas as pessoas que estão nesse vôo são velhas conhecidas da Varig e das empresas de turismo. Gente que viaja com muita frequência, tive o cuidado de verificar eu mesmo a lista de passageiros.
— Mas sempre pode haver alguém à espera de Cristina lá na França... — aventei.
— Não seja pessimista — recomendou Bittencourt — Não se deve pensar em coisas desagradáveis.
Nesse momento, vindo das cabinas telefônicas, chegou Tadeu.
— Meus informantes me deram algumas notícias preocupadoras — disse ele.
Bittencourt se despediu, disse que precisava recepcionar um grupo de clientes seus que estava chegando do Japão e, em passos rápidos, se afastou.
Tadeu, levando-me para tomar um café, falou:
— Há um matador de aluguel muito famoso, um certo Meirelles, que está outra vez na praça... É um homem extremamente perigoso.
Baixando a voz, completou:
— Ele, além de agir com as próprias mãos, sempre sozinho, é um verdadeiro gênio para organizar assassinatos, para comandar grupos de extermínio.
— Mas isso não quer dizer que ele seja o responsável pela morte desses três cientistas — protestei.
— Há detalhes nessas três mortes que fazem pensar terem sido elas causadas pela mesma pessoa — rosnou Tadeu, com raiva — E esses detalhes têm as características dos crimes cometidos por Meirelles.
Acendi meu cachimbo e ele continuou:
— Pode ser que esses cientistas estivessem esbarrando com alguém cujos interesses não se casam com a proibição ou com estudos mais aprofundados de fitocidas...
— Acha que a Clavell & Smith Co. possa estar metida nessa história sórdida? — indaguei, incrédulo.
— Pode ser — respondeu Tadeu — Mas é difícil. Uma empresa do porte da Clavell & Smith Co. não precisaria recorrer à violência. Ainda mais aqui no Brasil, onde a maior parte dos problemas se resolve muito facilmente através da política e da corrupção.
— Mas suponha que esses três doutores não se deixassem comprar... — ponderei.
— Mesmo assim — murmurou Tadeu — Acho que uma empresa como essa de que estamos falando, jamais contrataria os serviços de um matador profissional. De mais a mais, pelo que andei sabendo, a Clavell & Smith Co. produz centenas de outras mercadorias. Os fitocidas representam pouco mais de cinco por cento de sua receita. Não haveria nenhuma justificativa para a companhia correr um risco tão grande por causa de algo que, no fundo, é pequeno demais perto do todo.
Sorriu, puxou-me pelo braço em direção à saída e arrematou:
— De mais a mais, o interesse que essa companhia poderia ter nos estudos de Feijó, poderia ser satisfeito simplesmente com a compra dos resultados de suas experiências. O departamento de pesquisas da empresa trataria de oferecer um bom dinheiro para Dona Cristina ou para o doutor Sidney. Jamais tentaria tirar a informação à força! Como eu disse, seria arriscado demais!

— . —

A caminho do centro da cidade, começamos a tentar organizar os dados de que dispúnhamos para, com mais eficácia, assumirmos uma posição.
— O que temos, até agora? — perguntou Tadeu.
— Três pessoas mortas. Três pesquisadores que estavam trabalhando em algo relacionado com os danos causados por determinados fitocidas, especialmente os que se assemelham ao Fator Laranja, segundo o que pude entender do relatório de Feijó — respondi.
— Muito bem — fez meu companheiro — E quais são as suposições, até agora?
— Há várias possibilidades — respondi — Em primeiro lugar, pode ser que Feijó, Sidney e Tozzi tenham se metido com um grupo cujo interesse maior seria a produção desses fitocidas. Para eles, um relatório científico que acabasse determinando a proibição desses produtos, seria altamente prejudicial. Em segundo lugar, alguém estaria interessado em produzir fitocidas que não fossem excessivamente danosos ao meio ambiente e estaria interessado nos resultados obtidos pelos três cientistas. Estaria disposto a obter esses dados a qualquer preço, mesmo que fosse à base da violência. E há a possibilidade de alguém estar querendo utilizar os fitocidas em alguma coisa muito grande, muito importante... A proibição de seu uso poderia acarretar prejuízos muito sérios e, assim, a melhor forma de evitar isso, seria eliminando os cientistas que estavam pesquisando sobre esse tema.
Tadeu ficou em silêncio enquanto deixava a pista central da Marginal do Tietê para pegar o acesso à Ponte das Bandeiras.
Já fazendo o contorno, perguntei-lhe:
— E quanto a esse matador, o Meirelles, o que você acha que ele está fazendo nisso tudo?
— Responda você — riu Tadeu — Afinal, você é que é o escritor e que está acostumado a montar tramas e mistérios...
Respirei fundo e, depois de pensar por alguns momentos, respondi:
— Na minha opinião, Meirelles foi contratado depois que os dois homens que nos perseguiram lá em Vitória morreram e esses dois que apareceram misteriosamente no restaurante... conversaram... com seus amigos. Meirelles deve ter recebido, se é que ele foi mesmo contratado para esse caso, a missão de vingar os que morreram.
Tadeu meneou a cabeça em sinal de dúvida e falou:
— Talvez você quase tenha acertado, Sérgio. O que pode estar errado é isso de ele estar com a função de vingador. A história pode não ser bem essa.
Olhei para Tadeu, intrigado e ele prosseguiu:
— Meirelles deve matá-lo, Sérgio. E isso para que alguém possa conseguir com mais facilidade os papéis de Feijó. Cristina fará qualquer coisa depois que o souber morto, pois estará com medo de que o mesmo venha a acontecer com seu filho. Já quanto a mim, também estou condenado à morte, pois para Meirelles, sou exatamente como uma pedra dentro do sapato, um impedimento dos mais desagradáveis para que ele atinja seu objetivo principal, ou seja, acabar com a sua vida!
Muito sério, ele completou:
— Não estou apenas supondo, Sérgio... Meus informantes afirmam ter base para dizer que Meirelles já recebeu até parte do dinheiro combinado pela morte de um escritor e de um alcaguete da Polícia carioca. O que quer dizer, simplesmente, você e eu!
— Muito animador... — resmunguei — Mas o que você está me dizendo é, de fato, extremamente animador, Tadeu! Muito obrigado!
Meu companheiro riu e eu perguntei:
— E o que nós podemos fazer para impedir que isso venha a acontecer?
— Nada — respondeu ele — Nós não vamos fazer nada. No máximo, podemos esperar e facilitar as coisas para que esse assassino nos encontre com mais facilidade.
Olhando intensamente para mim, disse:
— E, é claro, no momento e no local que nós quisermos, que for mais fácil para a nossa própria defesa!
— Iscas-vivas... — murmurei, preocupado — Você está querendo dizer que vai nos transformar em iscas-vivas...
Tadeu suspirou.
— Sinto muito, Sérgio — falou ele — Mas é isso mesmo. É o caminho mais curto e mais eficiente para forçar esse encontro. E vamos começar por uma visita à Clavell & Smith Co. Algo me diz que lá encontraremos algumas respostas às nossas perguntas ou, no mínimo, algumas pistas a mais para nos servir de orientação.
— Mas isso pode ser perigoso! — protestei — E se essa companhia estiver diretamente metida nessa história toda?
— Nós perceberemos, Sérgio — disse Tadeu — Mas, de qualquer maneira, pode ficar sossegado que ninguém vai tentar nos matar lá dentro da empresa. Seria muita ousadia e eu não acredito que isso possa acontecer!


— . —

Assustei-me quando, à minha chegada ao hotel para onde o próprio Tadeu levara minha bagagem durante o dia, um grupo de jornalistas espoucando seus flashes e acendendo os refletores de suas câmeras de vídeo sobre mim, literalmente me atacaram, fazendo perguntas a respeito do lançamento de meu mais recente romance.
Ora...
O título do livro que eles mencionavam nem sequer tinha passado por minha cabeça e, imediatamente, imaginei que aquilo tudo deveria ser obra de Tadeu.
Por alguma razão ele montara aquela farsa e a mim, cabia apenas dar andamento à idéia, fazer com que todos imaginassem que o tal livro seria mesmo lançado.
Minhas suposições se confirmaram quando Tadeu, avançando de encontro aos repórteres, protegendo-me com seu corpanzil, gritou:
— Por favor, senhores! Por favor! O doutor Sérgio precisa subir para o seu apartamento por alguns minutos! Em seguida, na sala de imprensa do hotel, ele dará uma entrevista coletiva! Por favor, aguardem mais um pouquinho!
No elevador, assim que começamos a subir, indaguei:
— Mas que diabo significa tudo isso?
— Quero que saibam onde é que você está — respondeu ele — E quero que todos pensem que esse livro que você vai lançar seja, nada mais e nada menos que o relatório de Feijó disfarçado num romance. Isso poderá fazer com que os coelhos saiam da toca...
Abrindo a porta do elevador assim que chegamos ao meu andar, ele desceu à minha frente, de arma em punho e pronto para qualquer eventualidade.
— Amanhã — disse Tadeu — Seu retrato estará na primeira página de todos os jornais. Sua imagem será transmitida pela televisão para metade do mundo civilizado. E é isso mesmo o que me interessa, Sérgio... Meirelles virá procurá-lo e, daí...
— Mas... — balbuciei — O que é que eu digo nessa entrevista?
— Fale sobre o livro, ora essa! — fez Tadeu — Invente! Relacione a morte de Tozzi e de Sidney com a de Feijó e a deste com os resultados de suas pesquisas. Diga que ele descobriu coisas importantes e que iriam provavelmente fazer com que a OMS proibisse a utilização de fitocidas e de desfolhantes!
Abrindo um sorriso, ele acrescentou;
— O que acha do título O Assassinato do Verde?
— Bom — respondi — É assim que deverá ser o título do meu livro?
Tadeu não respondeu.
Limitou-se a rir e, enquanto eu passava uma água no rosto, falei:
— O pior é que, quando isto tudo acabar, vou acabar sendo obrigado a escrever esse maldito livro...

S E I S
Pontualmente às onze horas da manhã, Cristina ligou de Paris, dizendo que a viagem tinha sido excelente e que naquele mesmo dia iria para Clermont-Ferrand ao encontro de Serginho.
— Não precisa se preocupar mais — disse ela — Sei que aqui na Europa, estou em perfeita segurança.
Com um tom de angústia na voz, acrescentou:
— Mas não posso dizer o mesmo em relação a você... Estou morrendo de medo que lhe aconteça alguma coisa!
Sosseguei-a da melhor maneira que pude, evidentemente omitindo qualquer referência à entrevista coletiva que eu dera na véspera ou aos planos de Tadeu de nos fazermos de iscas para os bandidos.
Quando desliguei o telefone, uma desagradável sensação de vazio se apossou de mim.
De vazio e de medo...
Eu estava me arriscando e sabia disso.
Na verdade, eu não tinha nenhuma obrigação de fazer aquela investigação, eu deveria deixar tudo aos cuidados da Polícia.
O que, aliás, seria o mais certo, o mais correto.
Mas...
Dentro de minha alma, alguma coisa me dizia que eu devia isso ao pobre Feijó.
Se eu lhe falhara quando em vida, se não lhe fora leal, ao menos agora, depois que ele já estava numa outra dimensão, eu precisava mostrar a minha fidelidade, a minha amizade.
Talvez fosse criancice...
Mas era o que eu estava sentindo naquele momento.
Eu tinha acabado de tomar banho quando Tadeu entrou no quarto trazendo os jornais do dia com as notícias a respeito do livro que eu iria lançar dentro de pouco tempo.
Um livro em que nem sequer tinha pensado e que jamais me passara pela cabeça escrevê-lo.
— Foi um sucesso — riu ele — Acho que vou exigir uma participação quando você realmente o fizer!
— Se eu chegar a escrever — falei, pessimista — Posso muito bem morrer antes disso.
Antes que Tadeu começasse a me xingar, dizendo que eu estava derrotista demais, perguntei:
— Alguma notícia sobre Meirelles?
— Por enquanto ainda não temos nada — respondeu ele, com um suspiro — Meus homens estão em campo, se aparecer alguma coisa nós logo saberemos.
Abriu um sorriso e acrescentou:
— Apresse-se. Temos uma reunião com a diretoria da Clavell & Smith Co. dentro de duas horas. Foram eles mesmos que pediram a sua presença na empresa.
Serviu-se de uma latinha de refrigerante do frigobar e explicou:
— Com toda a certeza eles vão tentar convencê-lo a não publicar esse romance. Talvez até lhe ofereçam um bom dinheiro para isso. Mas você recusará. Dirá que nada no mundo o faria desistir da idéia e que, realmente, você o está escrevendo baseado em dados científicos fornecidos pelo doutor Feijó, seu amigo íntimo desde os tempos de colégio.
Enquanto ele falava, eu terminei de me vestir e, antes de pôr o paletó, vacilei em apanhar o coldre axilar com a minha automática.
— Leve — falou Tadeu — Nunca se sabe quando é que vamos precisar de um reforço de... argumentos.
Olhando fixamente para mim, indagou:
— Sabe usá-la?
— Sim — respondi — Gosto de tiros.
— E usaria, se precisasse?
— Isso, não sei — falei, com sinceridade — É muito diferente atirar em alvos e em pessoas, não é mesmo?
— Não, se as pessoas estiverem fazendo você de alvo — retrucou Tadeu — Tenha isso em mente quando chegar o momento, Sérgio. Esteja sempre ciente que o outro, aquele que estiver atrás da arma apontada para você, não terá os mesmos escrúpulos e muito menos os mesmos valores na vida...
Com um pouco de relutância, verifiquei o carregador da Taurus e coloquei o coldre axilar.
Em meu íntimo, rezava a todos os santos para que não deixassem a situação chegar a esses extremos...

— . —

Fiquei impressionado com o luxo e a suntuosidade dos escritórios da Clavell & Smith Co.
Até parecia que eu estava entrando numa das biliardárias empresas da Quinta Avenida, em New York.
Uma secretária atraente, cheia de sorrisos e de olhares com quintas intenções, fez-nos entrar numa sala onde havia uma mesa com tampo de cristal, cadeiras giratórias estofadas em couro legítimo e uma verdadeira coleção de telefones.
— Tenham a bondade de aguardar um momento — disse ela — Vou avisar o doutor Fagundes que já estão aqui.
Com um andar que mostrava claramente de que maneira ela conseguira chegar a ser a secretária particular do presidente da empresa, ela se afastou, fechando a porta atrás de si.
— Juro que se eu tivesse uma secretária assim, não sairia do escritório! — disse Tadeu.
E, com uma risada, acrescentou:
— Esses bacanas sabem mesmo como fazer para viver bem! Com uma secretária assim, trabalhar é mais do que um prazer!
Com um gesto abrangente, mostrou a sala luxuosa e perguntou:
— O que mais pode querer um homem?
— Paz — respondi — Um homem pode simplesmente querer viver em paz. Como o pobre doutor Sidney, por exemplo.
Tadeu torceu o nariz.
— Você... — fez ele — Sempre estragando os meus sonhos e devaneios!
Ele ia continuar a falar alguma coisa, mas nesse momento, a porta da sala se abriu e um senhor de seus cinquenta e cinco anos de idade entrou, todo sorridente, acompanhado por um outro, carrancudo e gordo como uma pipa.
— Sou Fagundes — disse o primeiro — E tenho muito prazer em receber em nossos escritórios uma personalidade da literatura...
Apertando a minha mão, juntou:
— Li a entrevista que concedeu à imprensa ontem à noite. E foi por isso que pedi que viesse ao nosso encontro.
— Estou aqui — falei — Às suas ordens.
Fagundes fez sinal para que nós nos sentássemos e disse:
— Pelo que pude entender, seu romance está alicerçado em dados que lhe foram fornecidos pelo doutor Feijó, é isso?
— Sim — respondi.
Fagundes olhou para o gordo que estava ao seu lado e, depois de pigarrear, disse:
— Nós gostaríamos muito de saber alguma coisa mais a respeito desses dados, doutor Sérgio. Temos todo o interesse em melhorar nossos produtos, em torná-los menos agressivos ao meio ambiente como um todo...
— E mais fracos também — disse o gordo carrancudo, sem sorrir e mostrando não estar nem um pouco à vontade ali.
Fagundes ficou um pouco sem jeito com as palavras de seu companheiro e, forçando um sorriso, apresentou-o:
— Este é o senhor Rodrigues... Desculpem-me não tê-lo apresentado antes...
Voltando a olhar diretamente para mim, ele explicou:
— O senhor Rodrigues é o responsável pelo escoamento de uma grande porcentagem de nossos fitocidas. Além de utilizá-los em suas fazendas, ele é um revendedor muito forte desses produtos. Ao mesmo tempo, ele é o nosso diretor financeiro.
Sem qualquer rodeio, Rodrigues me perguntou:
— Seu livro conterá dados exatos e explícitos do relatório de Feijó?
— Sim — respondi, prontamente — Apesar de ser um romance, ele será bastante exato em sua parte científica. Quero dizer, nas partes em que são necessários dados técnicos.
Rodrigues sorriu.
Havia maldade na sua voz, quando ele disse:
— Se fosse eu, não publicaria. Pode ser que muitas pessoas venham a se sentir prejudicadas e isso pode não ser muito conveniente para o senhor mesmo...
Franzi as sobrancelhas e perguntei, sem esconder a agressividade:
— Está me ameaçando, senhor Rodrigues?
O gordo riu.
— Não, meu amigo — disse ele — Não estou ameaçando ninguém. Apenas estou lhe dando um conselho. Um relatório que pode suscitar o aparecimento de leis proibindo de maneira definitiva o uso de fitocidas, não deixa de ser uma verdadeira bomba. E uma bomba que vai atingir gente importante, gente que possui poderes quase ilimitados e recursos suficientes para usufruir algo que aqui no Brasil é quase uma instituição: a impunidade.
Olhei de lado para Tadeu e ia abrindo a boca para falar alguma coisa, quando Rodrigues perguntou:
— Quanto quer para não publicar seu livro e nos entregar os dados que possui a respeito das experiências de Feijó?

— . —

A pergunta foi feita tão de chofre e tão diretamente que eu, no momento, fiquei desarmado e sem ação.
Foi Tadeu quem falou:
— Precisamos pensar, senhor... Esse livro é muito importante para o doutor Sérgio. Ele acha que a obra tem de ser publicada!
Olhando para mim, acrescentou:
— Talvez possamos entrar em um acordo quanto ao teor da matéria... Quanto às menções sobre o relatório em si, sobre dados exatos...
A carranca de Rodrigues se abriu num sorriso, enquanto Tadeu encerrava:
— Vamos pensar, senhor... O doutor Sérgio e eu iremos jantar em Interlagos, e aproveitaremos para analisar com mais calma os originais. Poderemos ver quanto será preciso extirpar, de maneira a contentá-lo e a não mutilar demais o romance.
Rodrigues, animado, quase gritou:
— Podem ficar certos de que o preço será muito bom!
Tadeu olhou para mim e eu compreendi que deveria confirmar suas palavras.
— Não vou gostar de alterar o original. Mas, se meu empresário acha que é um bom negócio... — murmurei.
Tadeu se pôs de pé, nós todos o imitamos, Rodrigues, é verdade, bem mais devagar, pois sentia muita dificuldade em erguer todo aquele peso da cadeira.
— Ficamos assim, senhores — disse Fagundes com uma expressão alegre — Entraremos em contato novamente amanhã.
Enquanto caminhávamos pelo corredor, notei que Rodrigues segurava o braço de Tadeu, obrigando-o a se atrasar.
Pouco depois, com um sorriso, este estava novamente ao meu lado e se despedia quase eufórico de Fagundes, dizendo:
— Amanhã, doutor Fagundes... Amanhã nós voltaremos a conversar!

— . —

Assim que entramos no automóvel, Tadeu me mostrou um envelope cheio de notas de cem dólares, dizendo:
— Ele me deu isto... Como um adiantamento pelo meu serviço, para convencê-lo de que não deve publicar o livro.
— Posso ser sincero? — perguntei.
— Deve — respondeu Tadeu — O que é que o está atrapalhando?
— Não gosto disso. Você disse para esses dois que estaríamos em Interlagos estudando o original do livro. Não acha que isso pode ser perigoso?
— Tenho certeza — falou Tadeu, com um sorriso — E é por isso mesmo que falei. Quero que eles saibam que nós dois estaremos em Interlagos esta noite e com o seu original nas mãos.
— E estaremos? — indaguei.
— Mas é claro! — exclamou ele — Esta é a nossa primeira pescaria!
Ficando subitamente sério, acrescentou:
— E espero, sinceramente, que não precisemos de mais nenhuma outra.
Ficamos em silêncio por alguns instantes e, quando Tadeu já ia entrando na Avenida Rebouças, ele me perguntou:
— O que achou do Fagundes?
— Um homem castrado — respondi de imediato — Tive a impressão de que ele está ali apenas por obrigação, apenas para fazer número.
— Foi o que eu achei, também — falou Tadeu — Fagundes está completamente dominado por Rodrigues. Amarrado de pés e mãos!
No cruzamento com a Henrique Schaumann, comentei:
— Não me assustaria se descobrisse, de repente, que Rodrigues é o mentor de toda essa história sangrenta.
— Não acredito que seja — discordou Tadeu — Ele me pareceu ingênuo demais... Um homem que não tem preparo e nem estrutura para cometer esse tipo de crime. Ele joga aberto demais, fala o que lhe vem à cabeça, não mede as consequências de suas palavras. Acredito que Rodrigues não teria nem mesmo coragem de mandar matar essas pessoas. Acho que ele teria medo de ser assombrado por seus fantasmas, depois!
— Então — perguntei — quem é que está por trás de tudo isso?
— Ainda não sei — respondeu meu companheiro — Mas pode estar certo que ainda esta noite estaremos muito perto dessa resposta...
Olhou pelo retrovisor, viu que seus amigos, no furgão, estavam logo atrás e, voltando-se para mim, murmurou:
— Se estiver com medo, Sérgio...
— Estou com medo — assenti — Mas nem por causa disso eu vou desistir. Agora, que me meti nessa encrenca, quero chegar ao final.
Sorri, um pouco forçado, e arrematei:
— Seria a mesma coisa que não ler um livro até o fim... Um verdadeiro crime, na minha opinião.
Estávamos, nesse instante, entrando à direita na Henrique Schaumann e Tadeu, acelerando um pouco, disse:
— Temos companhia... Há uma camioneta de cabina dupla que está nos seguindo desde o momento em que saímos da garagem da Clavell & Smith Co., lá na Paulista...
Disfarçadamente, olhei para trás.
Não foi preciso nenhum esforço para constatar que Tadeu estava certo.
— Não se preocupe, Sérgio — falou ele — Os rapazes vão cuidar dessa camioneta agora mesmo...
Assim dizendo, Tadeu acelerou.
O automóvel deu um salto para a frente e eu pude ver que a camioneta também aumentava a velocidade, ultrapassando de maneira perigosa dois carros para poder manter a distância que a separava de nós.
Imediatamente, o furgão com os amigos de Tadeu começou a encostar nela, pelo seu lado direito.
Tadeu diminuiu a marcha e, com um golpe de direção, entrou na rua Teodoro Sampaio, subindo em direção ao Hospital das Clínicas.
A camioneta tentou fazer a mesma coisa, mas Pedro, que estava dirigindo o furgão, não o permitiu.
Encostando ainda mais, obrigou-a a seguir em frente, rumo à Avenida Sumaré.
Tadeu sorriu.
Acelerando fundo, ele subiu até a Oscar Freire e dobrou à direita, voltando em seguida para a Avenida Rebouças.
— Desse, nós estamos livres... — falou.
E, olhando novamente pelo retrovisor para se assegurar que ninguém mais nos estava seguindo, perguntou:
— Viu de onde era a camioneta?
— Sim — respondi — Tinha o logotipo da Clavell & Smith Co. pintado na porta...
— Aposto como isso é obra de Rodrigues — murmurou — Só um imbecil como ele poderia mandar que um veículo da própria empresa nos seguisse.
— Será que pretendiam nos matar?
— Não acredito — respondeu meu companheiro — Mais provavelmente, estavam tentado saber onde é que iríamos apanhar o original do livro. Depois, talvez tentassem nos tirar os papéis.
Riu e arrematou:
— Como eu disse, coisa muito infantil... Coisa de Rodrigues. Eu tinha certeza que ele ia tentar algo assim. Por isso, andei devagar desde a Paulista até aqui. Queria ter certeza de que eles conseguiriam nos acompanhar.
Fiquei calado por alguns momentos e, acendendo meu cachimbo, falei:
— Pelo que pude entender, você disse que estaríamos em Interlagos para atrair Rodrigues a uma armadilha. Agora, que já os despistamos, não há mais necessidade de dar continuidade ao plano. Podemos até voltar a contatar Rodrigues e assustá-lo, dizendo que não há mais negócio, não é mesmo?
— Não — respondeu Tadeu — Não é isso o que estou pretendendo mesmo por que eu acho que Rodrigues não tem muita coisa a ver com essa história. Durante a reunião, ele se mostrou imbecil demais para ser capaz de alguma coisa realmente séria e perigosa. Mas, ao mesmo tempo, essa ingenuidade, somada ao desespero, por exemplo, pode fazer com que ele tome uma atitude impensada. E seria aí que Rodrigues poderia estragar o meu plano...
Olhou de lado para mim e murmurou, entre os dentes:
— Eu quero apanhar o Meirelles... E não tenho a menor intenção de deixar que esse gordo idiota se meta no meio!
— Do jeito que você está falando, tenho a impressão de que há dois grupos atrás do relatório de Feijó... Um, seria o Rodrigues e o outro...
— O outro é o que está com o Meirelles. E este sim, é que é verdadeiramente perigoso, Sérgio. É desse que precisamos ter medo!
Com um sorriso, concluiu:
— Com a nossa ida a Interlagos, minha intenção número um é tentar fazer com que pelo menos um dos dois grupos deixe de nos incomodar. Se tivermos sorte, é claro...

— . —

Seguimos pela Marginal do Rio Pinheiros até a ponte do Jardim São Luiz e ali, Tadeu entrou à direita, em direção ao Campo Limpo.
Parou na primeira papelaria que encontrou e, depois de olhar com muita atenção para todos os lados e após se convencer que não havia nada suspeito, desceu do carro, deixando-o com o motor ligado e recomendando-me:
— Se houver alguma coisa de anormal, vá embora. Não se preocupe comigo. Posso me arrumar muito bem.
Porém, nada aconteceu e, cinco minutos mais tarde, ele voltou para o carro trazendo um pacote de papel sulfite, um envelope pardo grande e um rolo de fita adesiva larga.
— Monte um pacote de maneira a dar a impressão de que se trata de um original de livro — disse ele — Lacre-o com essa fita adesiva e fique segurando o tempo todo.
Obedeci sem discutir e, enquanto fazia o pacote, comentei:
— Não entendo como é que os bandidos vão nos descobrir, vão saber onde é que devem nos encontrar em Interlagos se nós despistamos a camioneta que nos estava seguindo...
Tadeu riu e falou:
— Pode estar certo que eles vão nos achar. Interlagos não é tão cheio de restaurantes, a ponto de ser impossível encontrar alguém por lá. Principalmente dois homens desacompanhados, não é mesmo? Eles começarão a procurar pelos restaurantes mais famosos e, com certeza, nos acharão.
Voltando para a Marginal, completou:
— Mesmo porque nós vamos estar num lugar de fácil acesso. E bem à vista de todos!
Senti um aperto no estômago.
Tadeu estava me parecendo excessivamente ousado.
— Mas eles podem nos ver e nos alvejar antes que tenhamos chance de percebê-los — argumentei.
— Isso é difícil — disse Tadeu — Inclusive, acho que não está em seus planos.
Olhei intrigado para meu companheiro e este explicou
— Não se esqueça que eu já estive do outro lado, Sérgio. Por isso, para mim, é muito fácil raciocinar como eles. Se estivesse no lugar dos homens que nos perseguem visando apanhar um pacote de documentos, antes de eliminar a única pessoa capaz de saber onde estão esses documentos, eu me certificaria de tê-los, realmente, em minhas mãos. Assim, o fato de vê-lo segurando um pacote, não me garante que você esteja com o que eu quero. Por isso, eu o apanharia vivo, primeiro. Depois, uma vez confirmado que o tal pacote é mesmo o que interessa, aí sim, poderia eliminá-lo.
Sorriu, olhou para mim e falou:
— Dessa forma, enquanto o relatório de Feijó não aparecer, pode acreditar que sua vida está garantida. Todos sabem que você é a única pessoa, atualmente, que tem conhecimento de onde esse maldito relatório efetivamente se encontra.
— Você disse que a minha vida estará garantida, Tadeu — murmurei — Mas... E a sua?
— O meu caso é diferente — admitiu ele, muito sério — Eu não sou de nenhum interesse para esses bandidos. Muito pelo contrário, para eles, é bem melhor que eu esteja morto. E aposto como eles vão tentar me eliminar assim que nos virem!
— Mas eu não quero que você se arrisque assim! — exclamei — Vamos mudar os planos!
— Não — fez Tadeu sacudindo a cabeça — É preciso que eles se mostrem. E vão se mostrar quando tentarem me eliminar.
— É um risco imbecil! — protestei — Isso é a mesma coisa que se meter na boca do lobo!
— É um risco calculado, meu amigo! Pode deixar que sei muito bem o que estou fazendo e, a esta altura dos acontecimentos, Pedro já deve ter se livrado dos homens da camioneta e já deve estar esperando por nós, bem escondido, no restaurante em que ficaremos...
Riu, acendeu um cigarro e arrematou:
— Não sou tão idiota assim, Sérgio... Posso arriscar a minha vida, mas... Jogá-la fora... Isso, não!
S E T E
De onde eu estava sentado, no amplo salão do Restaurante Interlagos, podia ver perfeitamente o movimento na avenida e, virando um pouco a cabeça para a direita, podia enxergar com facilidade quem entrasse ou quem saísse do estabelecimento.
Diante de mim, as costas contra a parede, Tadeu vigiava a ala esquerda do restaurante, enquanto tomava em goles lentos, um copo de uísque.
Já estávamos ali havia mais de duas horas e até então, nada acontecera.
— Acho que estamos perdendo tempo — comentei — Não vai aparecer ninguém, não vai acontecer nada...
— Pode estar certo que vai — replicou Tadeu — Conheço esse tipo de gente. Ainda não atacaram por que o restaurante está cheio. Espere só até que ele comece a se esvaziar...
Respirei fundo, resignado e, para ajudar a passar o tempo, pedi mais uma dose de uísque.
— Bem... — murmurei — Acho que, no fundo, eu estou torcendo para que nada aconteça. Se você pudesse avaliar o medo que estou sentindo...
Tadeu sorriu e ia abrindo a boca para dizer alguma coisa, quando a porta do restaurante se abriu com violência e quatro homens entraram, as armas nas mãos, o rosto coberto por máscaras de meia.
— Todos com as mãos sobre as mesas! — gritou um deles — Isto é um assalto!
Confesso que senti o sangue me fugir do rosto e, naquele momento, mesmo que estivesse empunhando minha pistola, não teria conseguido mover um só músculo, não teria tido a menor condição de reagir.
Como já falei antes, sou um escritor e não um guerreiro.
Desnorteado, pois nunca tinha vivido uma situação como aquela, a princípio obedeci, pondo ambas as mãos ao lado do copo de uísque que o garçom acabara de me servir.
Vi, cheio de surpresa, que Tadeu também obedecia à ordem do bandido e isso me deixou ainda mais preocupado.
Naquele instante, como se eu fosse uma criança indefesa, estava esperando que ele reagisse, como faria qualquer um dos heróis de minhas novelas.
— Obedeça — sussurrou ele — Nós sabemos o que é que eles querem... Quando chegar o momento, eu vou agir...
Os bandidos, muito rapidamente, recolheram tudo que havia na caixa do restaurante, as carteiras dos clientes e, é claro, as jóias das mulheres que ali se encontravam.
Dois deles, aproximaram-se de nós e o mais baixo deles apanhou o envelope que estava sobre a mesa, dizendo:
— Deve ter muito, aí...
A essa altura, eu já conseguira dominar um pouco os meus nervos e, movido pelo espírito de observação que deve ter um escritor, comecei a notar alguns detalhes nos bandidos.
Em primeiro lugar, vi que eles estavam usando armas automáticas, bem modernas. Segundo, percebi que eles as empunhavam com extrema desenvoltura, como se estivessem mais do que habituados a elas.
Eram profissionais e, portanto, homens muito perigosos.
O bandido que estava segurando o envelope, de repente, ergueu a mão armada e apontou a pistola para a cabeça de Tadeu.
Alguma coisa em sua atitude me fez entender que ele não estava brincando, que não estava fazendo aquilo apenas para ver Tadeu apavorado.
Ele ia disparar...
Meu coração começou a bater mais depressa, eu sabia que tinha de fazer alguma coisa, não poderia deixar que Tadeu fosse fuzilado na minha frente, daquela maneira.
Jamais poderei saber o que é que me fez raciocinar tão depressa e muito menos o que é que me deu tamanha precisão e rapidez de movimentos.
Com o pé esquerdo empurrei a cadeira de Tadeu e, ao mesmo tempo, minha mão direita mergulhava dentro de meu paletó, sacando a Taurus...
Apertei o gatilho, o estampido soou simultaneamente com o disparo que o bandido fazia.
Ainda escutei um gemido de Tadeu e vi o bandido desmoronar.
Notei sua cabeça ensangüentada, a têmpora esquerda perfurada pelo projétil que minha arma disparara e, instintivamente, preparei-me para o pior.
Era mais do que evidente que os outros três iriam atirar contra mim e, na posição em que me encontrava, seria absolutamente impossível tentar escapar, tentar encontrar abrigo.
Mas...
Isso não aconteceu.
Ouvindo os tiros, os companheiros de Tadeu, que estavam vigiando tudo do lado de fora do restaurante, entraram às pressas, já disparando suas submetralhadoras Uzi, uma eficientíssima arma de assalto do exército israelense.
Dois bandidos tombaram, já mortos antes mesmo de tocarem o chão e o último, ágil como um gato, agarrou o envelope que ainda estava nas mãos do que eu eliminara e, de um salto, passou por uma das janelas laterais do restaurante, desaparecendo na escuridão da noite.
Só então é que me lembrei que Tadeu estava ferido.
Abaixando-me ao seu lado, constatei que o ferimento não era de muita gravidade, a bala tendo atravessado o ombro direito de meu companheiro.
— Vou levá-lo para o Hospital das Clínicas — falei — Conheço alguns médicos de lá e...
— Não — disse Tadeu — Vamos para o Hospital do Barro Branco. É o hospital da Polícia... Lá que é o meu lugar.
Fez uma careta enquanto nós o ajeitávamos no banco traseiro do carro e disse, desolado:
— O pior é que eu terei que ficar fora do caso, Sérgio. E isso pode ser perigoso para você...
Respirei fundo, ergui os ombros, conformado e murmurei:
— Posso imaginar, Tadeu... Mas agora é muito tarde para fugir da raia...
— . —

Fiquei surpreso com a maneira como Tadeu foi recebido no Barro Branco.
Parecia que ele era um oficial graduado, tantas atenções recebia, tanta consideração lhe era dispensada.
Cerca de meia hora mais tarde, depois de tudo esclarecido da melhor maneira possível, pouco antes de ir para o Centro Cirúrgico, Tadeu disse:
— Subestimei Rodrigues, companheiro... Acho bom você tomar cuidado. Ele vai ficar uma fera quando descobrir que foi enganado.
— Estarei preparado — falei — E vou diretamente à delegacia para registrar uma queixa.
Para surpresa minha, ele replicou:
— Nada disso... Você não vai fazer nada. Deixe que os meus rapazes vão cuidar dele. E isso não vai demorar muito...
— E o Meirelles? — indaguei.
— Ele vai aparecer — respondeu ele — É preciso que você esteja de olhos bem abertos!
— Mas como, se nem sequer desconfio como é a cara dele?! — perguntei, angustiado.
— Não se preocupe — murmurou Tadeu — Você saberá facilmente quem ele é. Fique apenas bem esperto, Sérgio... As coisas estão começando a se precipitar...
Nesse momento, o médico entrou no quarto e disse que Tadeu seria levado para a sala de cirurgia.
Um dos seus companheiros puxou-me pelo braço, dizendo:
— Vamos, doutor Sérgio. Não temos mais nada para fazer aqui. Vamos voltar para o hotel e esperar. Depois, o senhor nos dirá o que é que precisaremos fazer!

— . —

Só consegui compreender o verdadeiro significado daquela frase bem mais tarde, já em meu apartamento no hotel, os companheiros de Tadeu na ante-sala de minha suite, aguardando ordens.
Com o afastamento de Tadeu, eu me vira, de repente, guindado à posição de chefe daquele estranho comando, muito embora não tivesse a menor experiência nesses assuntos.
Mas...
A situação era aquela mesma e eu teria de assumir minha posição.
Sentei-me na beirada da cama, tomei um uísque duplo na esperança de que ele me ajudasse a clarear um pouco as idéias e comecei a pensar.
Surpreso comigo mesmo, reparei que o fato de ter matado um homem, não estava mexendo com a minha cabeça como eu imaginava que iria acontecer.
Na verdade, eu me imbuíra da idéia que, se não tivesse agido daquela forma, Tadeu não estaria vivo e, muito provavelmente, nem eu, tampouco...
Assim, depois de ter me justificado perante mim mesmo por aquela selvageria, comecei a montar todos os acontecimentos como se eu estivesse escrevendo uma novela policial, tentando adivinhar os passos que os bandidos dariam para alcançar seus objetivos.
Em primeiro lugar, era importante que eu encontrasse, de uma vez por todas, as verdadeiras razões para eles estarem tão ansiosos em relação aos resultados das pesquisas de Feijó.
Eu já sabia que o relatório elaborado por ele era sério o suficiente para fazer com que empresas como a Clavell & Smith Co. fossem obrigadas a interromper a produção de fitocidas. Mas, nesse mesmo relatório, Feijó falava de fórmulas que provavelmente poderiam levar à produção de substâncias com o mesmo tipo de ação, mas muito menos nocivas ao meio ambiente e ao homem em si. Em resumo, naquele envelope que, pouco antes de partir de Vitória eu deixara em meu Banco, havia coisas que determinariam a desgraça de uns e... a fortuna de outros.
A desgraça daquelas empresas que não mais poderiam fabricar fitocidas e a fortuna daquelas que tivessem em mãos a tecnologia descoberta por Feijó para a produção de outras substâncias que a Lei permitiria a utilização.
Por um rápido momento passou por minha cabeça a idéia de que a maneira mais simples de me ver livre de tudo aquilo seria simplesmente apanhar o envelope e vendê-lo para Rodrigues...
Mas...
Eu jamais poderia fazer uma coisa dessas.
Em primeiro lugar, seria uma traição para com a memória de Feijó.
Se ele quisesse que o relatório fosse parar nas mãos do gordo e seboso empresário, já o teria feito e, com toda a certeza, não teria perdido a vida.
Em segundo lugar, seria uma traição das maiores para com a Ecologia e eu, justamente eu, acho que a maior obrigação do ser humano neste final de século, é a preservação incondicional da Natureza.
Acendi um cachimbo e, enquanto olhava a fumaça azulada subindo para o teto, comecei a enxergar alguns pontos que, até então, tinham passado sem que eu lhes desse o devido valor.
Um deles era o fato de que esse matador profissional, o tal de Meirelles, me parecia completamente deslocado naquele contexto.
Ele estava no circuito para algo muito mais sério do que simplesmente apanhar um relatório ou... me matar.
Havia alguma coisa a mais só que eu não estava conseguindo enxergar.
— Mas quem teria interesse em me matar? — perguntei-me — Para quem poderia ter tanta importância o meu silêncio?
Bati a cinza do cachimbo no cinzeiro tentado encontrar uma resposta para essa pergunta e, de repente, uma luz se fez dentro de minha cabeça.

— . —

Dormi mal aquela noite, o tempo todo pensando na idéia que tivera ao apagar o cachimbo.
Rolei na cama de um lado para o outro, o pensamento aceso, os olhos arregalados, o corpo cansado e a alma excitada, ansiando para que as horas passassem e assim, mais rapidamente eu pudesse pôr em prática o plano que estava se formando em minha mente.
Consegui adormecer só quando o dia principiava a raiar e, perto de dez horas da manhã, despertei.
Antes mesmo de pedir o desjejum, telefonei para meu editor dizendo-lhe que, dentro de no máximo quinze dias ele teria em mãos os originais do livro que fora anunciado na entrevista coletiva que eu dera na sala de imprensa do hotel. Expliquei que seria um livro que versaria sobre o emprego indiscriminado de fitocidas e acrescentei que dentro de dois ou três dias, eu estaria enviando para todos os jornais do país, um relatório científico que seria uma verdadeira bomba sobre esse assunto.
— Já houve mortes por causa disso — falei — E poderá haver mais ainda! Por isso, seria muito interessante que vocês, da editora, começassem a fazer algum barulho a respeito do assunto.
Para meu editor, não poderia haver nada melhor.
Um assunto trepidante, perigoso e envolvido num manto de suspense e violência...!
Nada melhor do que isso para vender livros!
Assim que desliguei o telefone, ele tocou, chegando até a me assustar.
Era Tadeu, já bem disposto, dizendo que estava apenas com o ombro imobilizado, pois a bala lascara-lhe um pedaço do omoplata.
— Estarei na ativa outra vez dentro de dez ou quinze dias — informou — Se puder ir cozinhando esse caso, acho que seria bem melhor...
— Sinto muito, amigo — repliquei — Mas as coisas não podem mais parar. Depois que elas saem da inércia... É impossível segurar a bola de neve rolando pela encosta!
Tadeu ficou em silêncio quase trinta segundos e, depois, disse:
— Você deve saber o que está fazendo, Sérgio. Peço-lhe apenas que tome cuidado e que não deixe de usar os rapazes... Pedro, Raimundo e Gustavo ficarão com você. Os outros dois estão aqui comigo e, se precisar deles é só dizer.
— Não vou precisar — afirmei — Estes três já serão mais do que suficientes.
Desliguei o telefone, pedi o desjejum e chamei Pedro, dizendo-lhe que iria a Vitória para apanhar o maldito relatório no cofre do Banco.
— Vou precisar de segurança — avisei — Pode ser que tentem tudo, desta vez. Muito provavelmente assim que eu estiver com o envelope nas mãos. Será nesse instante que eu vou precisar de proteção.
— Mas é uma loucura, doutor Sérgio! — protestou Pedro — Será muito perigoso!
— Mas não será impossível. Basta que você e os outros dois sigam exatamente as minhas instruções — falei.
À medida que eu ia explicando o meu plano para Pedro, um sorriso ia se abrindo em seu rosto.
Quando terminei, ele disse:
— Pois acho que vai dar certo, doutor Sérgio! Essa idéia é tão maluca que pode perfeitamente funcionar!
Ri, com ele, e acrescentei:
— O melhor é que poderemos matar dois coelhos com uma só cajadada. Publicaremos o relatório e ainda por cima, vamos apanhar os responsáveis por toda essa violência!
Fitando-o intensamente, murmurei:
— Mas, antes de irmos para Vitória, há algumas coisas que nós temos de fazer. Alguns pontos que precisam ser esclarecidos.
— Há o Meirelles — advertiu Pedro — Não se esqueça que ele é um matador experiente... Pode estar aí na esquina à sua espera...
— Não acredito — discordei — Se as coisas estão andando como imagino, a esta altura, ele já deve estar seguindo para Vitória. Ele deve saber muito bem que lá seria o único lugar onde o relatório poderia estar em relativa segurança. E sabe, por outro lado, que eu precisarei apanhá-lo para poder usá-lo nos jornais e em meu romance.
Enquanto Pedro se servia de uma xícara de café, liguei mais uma vez para Bittencourt.
— Preciso de informações sobre uma empresa — falei — Sobre a Clavell & Smith Co.
— Isso é fácil — disse ele — Dê-me dez minutos.
Efetivamente, dez minutos mais tarde, Bittencourt ligava para mim dando-me uma lista imensa de informações a respeito da empresa, inclusive o endereço de sua matriz, em New York.
— Essa empresa está passando por maus bocados aqui no Brasil — falou ele — Está sendo diretamente prejudicada pelas campanhas a favor da Ecologia. Pelo que ouvi dizer no meio do comércio exterior, há um projeto de se fechar a filial brasileira ou de, no mínimo, transformá-la em qualquer outra coisa.
Assim que Bittencourt desligou, tratei de entrar em contato com a matriz da Clavell & Smith Co., nos Estados Unidos.
Falei com um dos diretores da área de produção industrial, um certo Mr. Hudson, que se interessou muito pelo assunto e disse que poderia pagar muito bem pelo resultado das experiências de Feijó.
— O senhor entre em contato com o nosso diretor-presidente aí no Brasil — falou — Ele lhe dará o dinheiro e tratará de tudo.
— Não — recusei — Não posso falar com ninguém aqui e ponho como condição fundamental para que nós possamos negociar, que o senhor também não entre em contato com quem quer que seja, aqui no Brasil.
Fiz uma pequena pausa para dar mais ênfase às minhas palavras e acrescentei:
— Se eu desconfiar que houve qualquer vazamento de informações para a filial brasileira, não hesitarei em suspender nossos entendimentos e ir diretamente para Tóquio falar com as empresas japonesas desse ramo.
— Por favor! — exclamou o americano — Não faça isso! Dentro de no máximo duas horas, estarei tomando um avião para ir me encontrar com o senhor pessoalmente. E já estarei levando o dinheiro! Basta que me diga quanto quer e onde eu poderei encontrá-lo!
Refleti por alguns momentos e falei:
— Está certo... Eu estarei no Hotel Alice Vitória, em Vitória, Espírito Santo. Não se preocupe com o dinheiro. Poderemos tratar disso quando o senhor estiver aqui e depois que tomar conhecimento do teor desse relatório. Não quero que pague nem mais e nem menos do que realmente possa valer essa... mercadoria especial!
Desliguei o telefone e, em seguida, liguei para Rodrigues.
Para minha surpresa, a telefonista da Clavell & Smith Co. disse que Rodrigues e Fagundes não se encontravam na empresa.
— Foram viajar? — perguntei.
— Não que eu saiba — respondeu a moça — Tente um pouco mais tarde. Podem ter se atrasado por causa do trânsito...
O que, de fato, não seria de estranhar, uma vez que o tráfego, em São Paulo, parece piorar dia após dia.
Não havendo o que fazer em relação ao gordo e não podendo adiar por mais tempo minha ida para Vitória, resolvi deixar para depois o contato com Rodrigues.
Telefonaria para ele do aeroporto ou, até mesmo do Alice Vitória, quando chegasse ao Espírito Santo.
Saindo de meu quarto, passei para a ante-sala da suíte, onde Pedro estava assistindo televisão.
Foi nesse momento que, no vídeo, apareceu a vinheta do plantão noticioso e, logo em seguida o repórter do telejornal surgiu, dizendo:
— Esta manhã foi encontrado morto, por seus empregados, o empresário Carlos Rodrigues, assassinado violentamente. Rodrigues foi esgorjado em sua própria cama. A Polícia ainda não possui qualquer pista dos assassinos, mas pode afiançar que não foi um assalto uma vez que até mesmo a carteira de dinheiro da vítima estava sobre a mesa de cabeceira, intacta, com mais de dois mil dólares em seu interior.
— Bem... — comentei com Pedro — Um a menos. Estava mesmo achando que o fim de Rodrigues seria exatamente esse. Mas esperava que fosse um pouco mais tarde. Pelo visto, alguém está com muita pressa...
O telefone tocou, era Tadeu.
Ele também soubera da morte de Rodrigues e disse:
— Foi Meirelles. Essa maneira de matar é típica dele! Pode apostar que é ele que está por trás de mais esse assassinato!
Era o que eu também estava imaginando...
E, diga-se de passagem, o que estava me preocupando, e muito.
Meirelles mostrava ser um assassino muito perigoso e era com ele que eu esperava me defrontar quando chegasse a Vitória...
O I T O
Mais uma vez, Bittencourt me ajudou, pondo à minha disposição um jatinho para me levar o quanto antes a Vitória de modo a eu poder chegar ao Banco antes do término do expediente.
Ao meu lado, Pedro parecia nervoso e preocupado e os outros dois companheiros de Tadeu, durante todo o trajeto, não disseram uma só palavra, o que mostrava que eles também, estavam tensos.
Quando já estávamos nos preparando para o pouso, em Vitória, Pedro criou coragem e perguntou:
— Não seria melhor o senhor ficar em algum lugar seguro e nos deixar cuidar de tudo?
Sorri e respondi:
— Não se preocupe, Pedro. Tenho certeza que nada vai nos acontecer pelo menos até o momento em que deixarmos o Banco. Aí sim, é que o problema vai começar. A partir desse momento é que eu vou precisar que você e seus rapazes entrem em ação.
Pousamos no aeroporto de Goiabeiras e, muito depressa, Pedro alugou um carro, deixando o aeroporto em direção à cidade, levando consigo os dois outros rapazes.
De minha parte, tomei um táxi e ordenei ao motorista que seguisse para a Praia do Canto.
Não demorei a perceber que Pedro, dirigindo com habilidade, deixara que o táxi em que eu me encontrava passasse à sua frente e, mantendo uma distância segura, estava nos acompanhando
Chegando à Praia do Canto, eu disse ao motorista:
— Vou saltar naquela agência do BRADESCO, logo na avenida...
O motorista fez um sinal afirmativo com a cabeça e, nesse instante, passou por minha mente a possibilidade de Meirelles estar me esperando já no interior do Banco.
Na realidade, isso seria muito fácil de acontecer, pois seria simples ele descobrir onde é que eu tinha conta corrente e, a partir daí, concluir que seria nessa agência que haveria a maior probabilidade de eu ter deixado o envelope.
— Se ele estiver lá dentro — pensei — as coisas serão mais difíceis. Mesmo porque eu não faço a menor idéia de como seja esse homem...!
Disfarçadamente, olhei para trás, respirei aliviado ao constatar que o Santana dirigido por Pedro estava bem próximo.
Menos de dez minutos depois, chegamos ao Banco.
O motorista estacionou bem em frente à porta da agência e perguntou:
— Quer que eu o espere?
— Não será preciso — respondi, entregando-lhe o dinheiro da corrida — Acho que vou demorar...
Vi Pedro estacionando bem perto, num local estratégico de onde ele poderia sair rapidamente e, respirando fundo, empurrei a porta envidraçada do Banco.
A agência, apinhada de clientes, parecia um autêntico formigueiro.
Isso me preocupou, pois é mais do que sabido que, se alguém deseja se esconder, nenhum lugar é melhor do que o meio de uma multidão.
Avancei para a mesa do gerente caminhando cautelosamente, olhando desconfiado para os lados, esperando a todo instante ser abordado por Meirelles ou por um de seus homens.
Sentia minha mão direita suada, apertando nervosamente a coronha da automática, no bolso do paletó.
Algo inútil...
Eu tinha certeza que, mesmo que fosse abordado por alguém, não teria coragem de atirar num local onde houvesse tantas pessoas.
Bastaria uma bala perdida e um inocente seria morto ou, pelo menos, gravemente ferido...

— . —

Acompanhado pelo gerente, voltei da sala dos cofres já segurando na mão esquerda, o fatídico envelope.
Passara-se um quarto de hora desde que chegara ao Banco e eu pude notar que o movimento na agência praticamente se extinguira, restando apenas uma meia dúzia de clientes e um senhor que preenchia caprichosamente uma ordem de pagamento, consultando repetidas vezes uma caderneta de bolso.
No meio do saguão, um dos clientes interceptou o gerente querendo esclarecimentos sobre o seu extrato de conta corrente e este, pedindo-me desculpas por não poder me acompanhar até a porta, voltou para sua mesa de trabalho.
Um pouco mais inseguro, pois estava sozinho, apressei o passo em direção à porta.
Foi no momento em que passava diante do tal senhor que preenchia a ordem de pagamento, que as coisas aconteceram.
Ora...
Na realidade, eu estava esperando por isso...
Não tinha nenhum direito de entrar em pânico ou de me apavorar.
Assim, quando senti que algo duro cutucava minhas costelas, tratei de me controlar, de manter a calma o mais possível.
Aliás, uma tarefa das mais difíceis...
— Não faça nenhum movimento brusco, doutor Sérgio — disse o homem, com voz firme e baixa — Apenas quero esse envelope... Entregue-o para mim assim que chegarmos à rua e nada de ruim vai lhe acontecer...
Instintivamente, diminui a marcha e Meirelles — não era outro senão ele — sussurrou em meu ouvido:
— Não pare... Não estou brincando, assim como não estava brincando quando acabei com aquele gordo nojento!
Retomei o ritmo inicial e, sempre com a mão direita apertando a coronha da Taurus, pensei:
— Se eu for rápido o bastante... Se conseguir a velocidade de saque e a precisão de tiro que ponho nos heróis de minhas novelas...
Mas...
Novelas são novelas...
Era por demais arriscado.
Eu tinha certeza de não conseguir, assim como tinha certeza que Meirelles não hesitaria em puxar o gatilho da arma que, oculta em seu bolso, ainda cutucava minhas costelas...
Foi no momento em que eu ia puxando a porta da agência para sair, que Pedro e seus dois rapazes agiram.

— . —

Foi tudo muito rápido.
Os três homens empurraram a porta com brutalidade, derrubando-me no chão e, ao mesmo tempo, jogaram-se sobre Meirelles com violência e perícia, manietando-o.
Um par de algemas surgiu nas mãos de Pedro e, no instante seguinte, antes mesmo que os seguranças do Banco tivessem tido tempo de se recuperar do susto, o bandido bufava, as mãos presas às costas, o rosto virado para o chão.
Olhando para mim, Pedro falou:
— Vamos, chefe... Vamos levar este passarinho para a gaiola! E quanto antes fizermos isso, melhor será!
Ergueu Meirelles do chão como se ele não pesasse mais do que uma mala de viagem e, literalmente, arrastou-o para o Santana.
— Vou deixar o senhor no hotel — falou Pedro — Depois, vou levar esta peça para a Delegacia de Polícia Federal. Acho que ele tem muita coisa para contar...
Já arrancando em direção ao centro da cidade, Pedro perguntou para o bandido:
— Onde estão seus companheiros? Fique sabendo que se nós formos atacados, você será o primeiro a morrer! Não vou vacilar um instante sequer em jogá-lo para fora do carro, mesmo que esteja a cento e quarenta quilômetros por hora.
— Não tenho companheiros — grunhiu Meirelles — Não confio em ninguém e por isso, sempre trabalho sozinho.
— Porque matou Rodrigues? — indaguei — Ele não era o seu patrão?
— Não. Ele fazia parte do grupo. Mas recebi ordens de eliminá-lo por que estava querendo demais, estava começando a atrapalhar os planos do chefe.
— Chefe? — perguntei — E quem é o seu chefe?
Meirelles riu.
— Ora, doutor Sérgio! — fez ele — O senhor que está tão acostumado a escrever sobre esses assuntos...! Ainda não descobriu quem é o mandante disso tudo?
Olhei para Meirelles e indaguei:
— Fagundes?
— Sim — respondeu o bandido — Ele não quer que a filial brasileira seja desativada. Por isso a sua associação com o Rodrigues, um homem que estava produzindo carvão vegetal em quantidades astronômicas. E, é claro, forçando o consumo de fitocidas.
Soltou uma gargalhada e completou:
— Agora... Não sei como é que ele vai se arrumar...
Dei de ombros.
Para mim, pouco estava interessando de que forma Fagundes iria se ajeitar.
Com certeza, depois que Hudson chegasse, ele seria demitido e, então...
Além de todos os problemas financeiros que teria que enfrentar, estaria acusado de ser o mentor de uma bela soma de assassinatos.
Olhei para Meirelles e, por seu aspecto calmo e tranqüilo, deduzi que não seria ele a proteger o patrão.
— Muito pelo contrário — pensei — Meirelles trocará as denúncias por qualquer vantagem que possa ter na acusação, por qualquer atenuante em sua pena...
Pedro estacionou diante do hotel e, despedindo-me dele, desci.
Já estava me afastando quando ele me disse:
— Vou incluir o senhor na nossa relação de colaboradores, doutor Sérgio... Foi bom trabalhar com o senhor! Quando houver outro caso, vou pedir para o Tadeu chamá-lo!
Balancei negativamente a cabeça e respondi:
— Só se vocês me arrastarem da França até aqui, meu velho! Vou para Paris assim que receber o dinheiro de Hudson. E pode acreditar que não pretendo voltar de lá tão cedo!

— . —

Através do FAX do próprio hotel, passei para meus amigos jornalistas o relatório de Feijó, com a certeza de que ainda naquele dia, o noticiário das oito horas falaria alguma coisa sobre ele e, no dia seguinte, os jornais estariam dedicando um espaço respeitável para esse assunto.
Liguei para Tadeu relatando tudo o que acontecera e, em seguida, mais uma vez, telefonei para o meu anjo protetor, Henrique Bittencourt.
— Preciso ir para a França — disse—lhe.
— Pois pode se considerar lá, meu amigo — respondeu-me ele, com um sorriso na voz — Basta apenas que me diga que horas vai sair daí que eu mandarei um carro apanhá-lo!
E, um pouco mais baixo, indagou:
— Vai precisar de dólares ou de francos?
Com um sorriso, falei:
— Não, Henrique... Acho que não vou precisar... Mas, em todo caso... Se alguma coisa der errada, eu o avisarei, está bem?
Desliguei o telefone ainda sorridente.
Tinha certeza de que nada daria errado e que eu iria para Paris com os bolsos bem recheados de verdinhas...
EPÍLOGO
Assim que desembarquei no Aeroporto Charles de Gaulle, vi Cristina à minha espera, acompanhada por um rapazinho de cabelos bem pretos e que, quando o olhei com mais atenção, lembrou-me incrivelmente uma certa fotografia minha da época de adolescente.
De fato...
Era absolutamente impossível negar a genética...
— Sérgio! — exclamou Cristina, abraçando-me com paixão — Quanta saudade!
Beijei-a com carinho e Cristina, voltando-se para o filho, falou:
— Serginho... Este é seu pai.
O rapazinho sorriu, abraçou-me com força e disse, a voz um pouco embargada pela emoção:
— Você demorou a chegar, papai... Espero que nunca mais se afaste de nós!
E, antes que eu pudesse jurar que nunca mais os abandonaria, ele completou:
— Esta é a primeira vez que vejo no rosto de mamãe, uma expressão de verdadeira felicidade...
Não tive condições de dizer nada.
Limitei-me a abraçá-lo, a apertá-lo mais contra mim e me dizer, intimamente e pela milionésima vez, que eu tinha sido o mais canalha de todos os homens do mundo...
— Vamos — convidou Cristina — Não é muito perto, daqui até em casa...
Caminhando pelos corredores do aeroporto, Cristina indagou:
— E então? Como foi?
— Acabou, Cris — respondi — E acabou muito bem...
Ergui os ombros como quem pede desculpas e falei:
— É claro que poderia ter sido melhor. Poderia não ter acontecido tanta violência, tantas mortes. Mas, pelo menos para nós, tudo acabou dando certo.
Tomando fôlego, continuei:
— Hudson, um dos principais da Clavell & Smith Co., nos Estados Unidos, ficou satisfeitíssimo em pagar apenas um milhão de dólares pela fórmula de Feijó. Nem discutiu o preço, apenas deu uma olhada por cima no relatório, grunhiu alguma coisa e fez o cheque. Segundo ele, as pesquisas de Feijó vão permitir a produção de fitocidas muito específicos e que não trarão prejuízos sérios para o meio ambiente e para o homem. Em resumo, é a salvação de uma parte importante da empresa não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. E é uma garantia de continuidade na produção de maiores facilidades para os agricultores sérios que necessitam desses produtos para suas lavouras.
Já a caminho do amplo pátio de estacionamento do aeroporto, prossegui:
— Meirelles, o assassino profissional que tinha sido contratado para eliminar Feijó, Sidney, Tozzi, você e eu, nem sequer precisou ter receios de possíveis represálias ao denunciar Fagundes para a Polícia Federal. O diretor-presidente da Clavell & Smith Co. no Brasil se suicidou logo depois que o relatório de Feijó foi transmitido pela televisão. Ele sabia que estava completamente perdido, não suportou a tensão e meteu uma bala nos miolos. Era ambicioso demais, queria levar um padrão de vida muito alto e, por isso mesmo, jamais teria estrutura para suportar uma queda desse nível.
Cristina parou diante de um Renault Fuego Turbo e, abrindo a porta para que eu entrasse, perguntou:
— E agora, Sérgio? O que é que pretende fazer?
Sorri e respondi:
— Vou viver, Cristina... Viver o mais que puder...
Meu filho me abraçou mais uma vez e completei:
— Tenho uma família... Não tenho patrão... Estou com os bolsos cheios de dólares... O que mais pode desejar um homem?!
FIM